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UMA TAPEÇARIA DO PAÇO DA RIBEIRA PARA O IMPERADOR YONGZHEN

João de Deus Ramos*

Onde está hoje a Praça do Comércio, em Lisboa, encontrava-se até ao terramoto de 1755 o Paço da Ribeira. Mandado construir por D. Manuel I, aquele sumptuoso palácio real acumulara, ao longo de mais de dois séculos, um riquíssimo recheio de pintura, mobiliário, tapeçarias, armaria, e uma das mais ricas livrarias da época. Tudo desapareceu naquela data, perda inestimável para o património artístico e cultural português e da humanidade.

Há algum tempo atrás foi-me chamada a atenção para o capítulo do livro de Matos Sequeira, Tempo Passado(1), referente às tapeçarias do Paço da Ribeira, onde se indica que uma delas fazia parte do opulento presente que D. João V mandou ao Imperador da China, pela mão do Embaixador Alexandre Metelo de Sousa e Meneses; e surgia a pergunta sobre qual o destino oriental dessa tapeçaria.

Matos Sequeira refere no seu trabalho a escassez das descrições sobre o recheio e as decorações do Paço da Ribeira; e diz ter-lhe chegado às mãos, por compra num alfarrabista, o livro Pyramide Natalicio e Baptismal, obra publicada em Lisboa, em 1670, na oficina de António de Melo, da autoria de D. Diego Enriques de Vilhegas (2). Aí se descrevem as festas e cerimónias na Capital por ocasião do nascimento da filha primogénita de D. Pedro II e da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, e do baptismo na Capela Real do Paço da Ribeira a 9 de Abril de 1669. D. Diego de Vilhegas aproveita esta última cerimónia - e aí está o primordial interesse do livro - para descrever as salas,escadarias, galerias e aposentos do Paço, e as ornamentações sumptuárias que para a solene ocasião foram preparadas. Ao longo de 12 páginas, seguindo a prosa de D. Diego, Matos Sequeira descreve cada uma das divisões por onde passava o cortejo baptismal e o dos dignitários estrangeiros e da Corte.

As tapeçarias, os panos-de-armar, eram numerosos e belíssimos. A nona sala do palácio abria para uma galeria onde se destacava a tapeçaria chamada de Nun'Álvares ou do Condestável, de seda, lã e ouro, forrada de "nobreza" e "primeira"de seda. (3) Escreve Matos Sequeira: "Não teve (esta) o mesmo destino que a maioria das outras que estavam colgando as paredes do Paço. Em 1725, D. João V, mandando à China, como Embaixador (...)(4) o Dr. Alexandre de Metelo de Sousa e Meneses, enviou por ele entre outros presentes ao Imperador Chinês, esses preciosos panos-de-armar como consta da relação da Embaixada feita pelo Dr. Alexandre Metelo (5) e de uma nota manuscrita lançada no ante-rosto de um exemplar da História Universal de Frei Manuel dos Anjos".

A "Relação" da Embaixada, publicada por Biker, não contém a lista dos presentes levados por Sousa e Meneses para Pequim, mas ela está nos manuscritos guardados em vários arquivos:

- Biblioteca Nacional de Lisboa, Reservados, Cod. 8075, "Relação dos Presentes..." sem paginação: "(...) Dous caixotes semilhantes, que levam huma tapessaria de nove panos que representam paizes e Cazas, Forrados de Seda carmezim".

- Academia das Ciências de Lisboa, "Série Vermelha", n. ° 355, "Memória do Presente...", pp. 267 e segs: "(...) Dois (caixões) similhantes, com huma tapessaria de dois (6) panos, com Paizes, e casas, forrados de carmezim".

- Arquivo Distrital de Évora, Cod. CXVI, "Memória do Presente... " (sem paginação): "(...) Dous caixoens semelhantes que levam dentro hua tapessaria de nove panos que reprezentam Paizes e casas forrados de seda carmezim".

Não há dúvida, portanto, de que no presente enviado por D. João V ao Imperador da China seguia, repartida em dois volumes, uma tapeçaria de nove panos. Subsiste porém a dúvida quanto à indicação feita por Matos Sequeira de que se tratava da tapeçaria do Condestável: primeiro, por não parecer corresponder à descrição de "paises e casas", segundo, tratando-se de Nun'Álvares, figura tão notável da nossa História, é de estranhar que se omita fazer-se--lhe referência explícita. Mas deixe-se este ponto aos conhecedores de História da Arte.

Embarcou Sousa e Meneses, juntamente com a comitiva, a 12 de Abril de 1725, na fragata Nossa Senhora da Oliveira (7), que se encontrava ancorada no porto de Lisboa ocidental. Só largaram a 17 do mesmo mês, por falta de vento. Sousa e Meneses ia à China como Embaixador de D. João V para agradecer o presente que o monarca português recebera, uns anos antes, de Kangxi; felicitar o Imperador Yongzhen pela sua subida ao trono; e tentar defender os interesses de Macau e dos missionários na China, postos em perigo pela política dura do novo Imperador, em relação aos estrangeiros (8). Depois de passarem o Inverno no Rio de Janeiro, chegaram a Batávia a 25 de Março, onde ficaram um mês. Avistaram finalmente Macau a 10 de Junho de 1726, e a 13 desembarcou o Embaixador e a comitiva com toda a solenidade. As caixas contendo o presente ficaram à guarda, por ordem de Sousa e Meneses, do Governador de Macau (9). Lê-se na "Relação" da Embaixada: "Logo que o Governador recebeu o mimo fez fazer disso termo, e entrou com cuidado a examinar as cousas, as quaes todas se acharam sem corrupção, menos os dois pannos de raz (10), que ao depois na côrte se acharem comidos da traça". Esta afirmação coincide com a que consta dum dos manuscritos (inéditos) conservados no Arquivo de Évora, que terá servido de rascunho à "Relação" do P. ē Rua.

A tapeçaria levada por Sousa e Meneses para a China era provavelmente, em 1725, já antiga e gasta, como tantas outras do Paço da Ribeira. Se efectivamente era a do Condestável, então teria já nessa altura quase dois séculos.Escreve Matos Sequeira: "A tapeçaria de seda e oiro (chamemos-lhe assim, embora tal designação seja imprópria), e que na descrição (de D. Diego Vilhegas) se diz do Condestável, era certamente aquela que o escriba do Cardeal Alexandrino, legado do Papa, viu em 1571 nos Paços Ducais de Vila Viçosa".

A viagem marítima, de Abril de 1725 a Junho de 1726, certamente contribuiu para a acelerada deterioração de uma peça já antiga e frágil. Da leitura dos documentos, parece poder-se concluir que só os panos sofreram com a viagem: "... as cousas... todas se acharam sem corrupção, menos os dous pannos de raz..."; que mesmo assim seguiram até Pequim, onde "... se acharam comidas da traça".

Certamente afagaria uma visão romântica da História poder-se imaginar uma tapeçaria do herói de Aljubarrota a guarnecer o palácio do Filho do Céu, em Pequim. Mas a realidade mais prosaica da humidade e da traça não o permitiram.

NOTAS

(1) Gustavo de Matos Sequeira, Tempo Passado (Crónicas Alfacinhas), Portugália Editora, Lisboa, 1923, p. 43 e seg..

(2) Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, I, 659, com o nome aportuguesado para Diogo Henriques Vilhegas. O Pyramide Natalicio é escrito em espanhol.

(3) A "nobreza" era um certo tipo de tecido de seda; a "primavera" era também uma espécie de tecido de seda ornado de flores e matizes (v. António de Morais e Silva, Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa).

(4) No texto de Matos Sequeira lê-se "... como embaixadores, o Dr. Alexandre Metelo de Sousa e Meneses e o jesuíta Padre José de Magalhães...", que abreviei na transcrição por conter duas inexactidões. A primeira, que o jesuíta em questão não era José de Magalhães mas sim António de Magalhães; a segunda, que o P.e Magalhães foi embaixador de Kangxi a D. João V, a quem trouxe os presentes do Imperador, tendo apenas acompanhado Sousa e Meneses na viagem para a China.

(5) Sousa e Meneses fez um relatório sobre a sua missão diplomática, mas o que é geralmente considerado como a "Relação" da Embaixada, é da autoria do p.e Francisco Xavier da Rua, enviado na qualidade de Secretário da mesma. Essa "Relação" foi publicada por Júlio Firmino Júdice Biker no vol. 6 da sua Collecçao de Tratados.... Imprensa Nacional, Lisboa, 1885. Nem o relatório do Embaixador nem a "Relação" do Secretário incluem a lista dos presentes, que consta dos manuscritos referidos no corpo do texto. Uma lista esquematizada dos presentes foi publicada, na segunda metade do século passado, no Archivo Pittoresco (vol. IV, p. 254), de onde o P e Manuel Teixeira colheu, como o próprio refere, a lista publicada no seu trabalho Macau no Séc. XVIII, Imprensa Nacional de Macau, 1984.

(6) Presumo tratar-se aqui de uma confusão entre o número dos panos e o número dos caixotes em que iam guardados, que eram dois. O documento da Academia das Ciências é uma transcrição mais recente, estando capeado com a indicação de "papéis do ex-Geral da Congregação da Terceira Ordem, Fr. Vicente Salgado".

(7) Houve efectivamente fragatas no séc. XVIII com esse nome. Mas nenhuma no período da embaixada de Sousa e Meneses. Tratava-se, sim, de uma nau e não de uma fragata. A nau "Nossa Senhora da Oliveira", de 50 peças, foi lançada ao mar em Lisboa em 1721, acto ao qual, segundo a Gazeta de Lisboa, "Suas Magestades e Altezas acompanhadas das damas e oficiais da casa real assistiram, em uma magnifica casa de madeira que expressamente se tinha formado na Ribeira das Naus, adornada de ricas tapeçarias e damascos guarnecidos de ouro, para onde tinham passado nos bergantins reais, e depois de Suas Magestades e Altezas se recolherem pela mesma ponte da Casa da Índia, onde se haviam embarcado, houve na Casa da Aula um copioso refresco de vários doces e bebidas na forma que sempre se costuma em semelhantes ocasioes". Tendo feito várias viagens ao Brasil e Oriente, deixou de constar das relações de navios a partir de 1737. (v. Com. António Marques Esparteiro Tres Séculos no Mar (1640-1910), Biblioteca Central da Marinha, 1972, nº5, p. 99 e segs.).

(8) D. João V recebera um ínfima parte do presente enviado por Kangxi (à excepção de uma "boceta de pérolas", tudo o resto ardeu no Rio de Janeiro com a nau em que seguia), das mãos do P.e António de Magalhães, em Dezembro de 1722. Yongzhen, 4º filho de Kangxi, reinou de 27 de Dezembro de 1722 até à data do seu falecimento, ocorrido a 8 de Outubro de 1735.

(9) Era António Carneiro de Alcáçova, que tomara posse a 6-4-1724. Porém, quando no ano seguinte Sousa e Meneses regressou a Macau, cumprida a sua missão em Pequim, o Governador era António Moniz Barreto. (v., inter alia, Pe Manuel Teixeira, Macau no Séc. XVIII, op. cit.).

(10) Panos ao estilo de Arras, cidade do Norte de França. Pela fama ganha na Europa de então, que se estendeu a Portugal, as tapeçarias francesas, italianas ou flamengas passaram a adoptar a designação genérica de panos-de-arrás ou de raz.

* Licenciado em Direito (Universidade de Lisboa): ingressou na carreiradiplomática(1967), com serviços em Tóquio e Genebra. Encarregado de Negócios na Embaixada em Pequim (1979); Chefe de Repartição da África, Ásia e Oceania da Direcção Geral dos Negócios Políticos (MNE), 1982; Embaixador no Maputo (1983); membro da Delegação portuguesa às conversações luso-chinesas sobre Macau e vogal da Comissão Internacional sobre Macau; Ministro Plenipotenciário de 2ª classe (1987); Chefe Adjunto do Grupo de Ligação Conjunto luso-chinês e Chefe do Grupo de Terras luso-chinês (1988). Comendador da Ordem de Isabel a Católica, de Espanha; Oficial da Ordem de Mayo Al Merito, da Argentina; Ordem do Tesouro Sagrado, do Japão; Cavaleiro da Ordem de Orange-Nassau, dos Países Baixos; Cavaleiro da Ordem do Rio Branco, do Brasil.

desde a p. 83
até a p.