Linguística

FRAGMENTOS PRIVADOS - II

"Pela Praia Grande afora, com as angulo-sidades próprias da imprevisão portuguesa, desalinham-se uns palacetes de ostentosa aparência, de mistura com casotas fuscas e tacanhas. Em frente, as águas turvas dos dois rios se confundem, separando a península das ilhas fronteiras, verdejantes, ao longe. Mal tinha mirado o espectáculo dos graciosos juncos, bordejando a entrar a barra, aves fantásticas de grandes asas amarelas; e estava já à grade verde daquela casinha escura e recolhida, onde o poeta habitava. No chafariz ao lado, chins, em vozearia nasal, fazem provisão de água em vasilhame de variada forma. Uma placa dourada dizia, em ideogramas chineses, que ali praticava o advogado Camilo Pessanha.

"Não era preciso bater, levantava-se a tramela e eis o pátio largo que poderia ser de casa minhota, com escada para o primeiro andar e alpendre ao cimo. Lá dentro rompiam ladridos mil dos guardas da habitação, e à varanda acudiam três ou quatro cachorretes em volta das minhas pernas e, após eles, o rosto sorridente da donzela chinesa, luzindo no marfim e oiro dos seus dentes."

"O poeta estava sempre em casa àquela hora, sempre na cama; passava assim as tardes inteiras e só por excepção saía. Aberta a porta, atravessava as duas salas museus, dobrando em ângulo recto para chegar ao quarto. Levantava o reposteiro e via, através das grades amarelas, as barbas ainda negras e aqueles olhos pequenos e luminosos do sonhador.

"Que assombro para quem subitamente ali surgisse, vindo de longe, e não conhecesse a falta de asseio e confusão chinesa. Se não fora a larga cama europeia de reluzente metal e uns quantos livros mal arrumados num armário e sobre as cadeiras, poderíamos estar em casa de qualquer china da localidade. Para o meu espírito de contextura clássica aquele desalinho romântico era afligente. Pelo chão, por sobre os armários, enchendo uma consola estilo império, atravancando os cantos, quase impedindo os nossos movimentos, uma infinidade de bonecos, jarras, vasos, porcelanas e bronzes chineses de variada forma, beleza e valor. Ao lado da cama grande outra pequena, fora de uso e mal coberta por um biombo baixo, obra de fancaria. Por detrás daquela um cabide alto e desengonçado, sobre o qual se amontoavam rolos de pintura chinesa. Nas paredes, desenroladas, muitas outras apodrecendo no contacto da alvenaria humidíssima, naquela China de atmosfera saturada muitos dias do ano. Por sobre o móvel império, uma bela pintura em seda, um açafate de flores, cheio de vida, rico de cor".

"As duas salas tinham as paredes cobertas de pratos, travessas e quadros. Diferentes móveis, armários e mostradores, continham as mais variadas peças de porcelana brilhante, azul esta, vermelha aquela, doirada, branca de Fukien, azul e branca Quine-Lung, amarela de Pequim. A um canto figuras de todos os tamanhos. Pelo chão heróis e divindades da crença búdica ou da superstição local. Nos vãos das portas rimas de pratos cobertos de pó e teias de aranha. Pelo chão três lindos tapetes persas, com vestígios evidentes de irreverências dos mal educados pequinenses. Nesta barafunda descobri, sob muitos outros sem valor, um precioso prato Quang-hi que me confessou havia anos ter perdido de vista.

"O seu amor pela Arte era uma calamidade para a Arte: aquelas pinturas estariam dentro em breve reduzidas a tiras e os belos tapetes a trapos cobertos de nódoas. Peças de loiça muitas os cães partiram."

Sebastião da Costa

Seara Nova, n° 85, 29 de Abril de 1926

"Da Calçada do Tronco Velho, Camilo Pes-sanha mudou para a Rua da Praia Grande, n.º 75, casa que foi demolida e é hoje um jardim particular. Nesta casa, que era maior, foi-lhe mais fácil distribuir o seu museu, onde tinha de tudo, à laia de tin-tin. A entrada dava acesso a duas salas, onde, na segunda havia uma porta, à direita, que dava para o seu quarto de dormir. Neste quarto nada havia de chinês; uma cama de ferro, uma mesa de cabeceira vulgar, dois móveis antigos ingleses e um armário, guarda-fato, em teca. Na cama, em frente da janela, livros, jornais, vários papéis, processos do tribunal, a bandeja com a lamparina e os respectivos cachimbos para fumar ópio."

José de Carvalho e Rego

Notícias de Macau, 11 de Fevereiro de 1968

"Vi Camilo Pessanha pela antepenúltima vez na vida, em fins do verão de 1912, e em Macau, à minha volta de Timor por Manila e Hong Kong, a caminho de Lisboa e da África Ocidental. Em Macau, e no seu curioso casarão antigo, dos séculos XVII ou XVIII, cerca do Hotel da Boa Vista onde me alojei com minha mulher, e tão lindo nas suas galerias ou alvas varandas, abrindo sobre as águas em que desli-zavam lorchas amareladas ou cor de sépia; casarão em cujas espaçosas salas e largos corredores se desenrolava a suave e ridente fantasmagoria do seu museu chinês..."

Alberto Osório de Castro

Atlântico, 1942

"Macau, Junho de 1953

Cá vim hoje ver o que havia dele. Além daquele punhado de versos, que bastaram para o fazer um dos maiores da poesia portuguesa, que mais conhecia eu do das arcadas do violoncelo ?

"Que aqui vivera grande parte da sua vida, que usava barbas, que fumava ópio e que cá morrera.

"Pouco, muito pouco, para tentar saber mais é que cá vim. Até máquina fotográfica trouxe, para fotografar a casa em que vivera. Deitada a baixo, arrasada; nem sombra dela!"

Guilherme de Castilho

O Comércio do Porto, 13 de Abril de 1954

"- Fui a sua casa: uma larga porta, um átrio, dois lanços de escadas, uma outra porta, de grades esta: um inferno de vozes de chinas confundindo-se com latidos de cães."

A. de Albuquerque

Diário de Lisboa

desde a p. 34
até a p.