Centenário

SILVA MENDES E O TAUÍSMO
PERSPECTIVAS SOBRE O TAU-TE CHING

Carlos Miguel Botão Alves*

INTRODUÇÃO

Tentaremos neste trabalho esclarecer e reflectir sobre as problemáticas que Manuel da Silva Mendes focou nos vários escritos que redigiu acerca do Tauísmo. Dado que este autor, que viveu grande parte da sua vida em Macau, é relativamente desconhecido, começaremos por lhe compor, sucintamente, a biografia.

Porém, são os temas de filosofia tauísta - a paixão filosófica da sua vida - que nos interessa apresentar com clareza. Aliás, a apresentação que faremos centrar-se-á nos dois aspectos fundamentais do pensamento de Láucio (Lau-Tse): o Tau como princípio metafísico e o Tau como princípio moral. Preocupar-nos-emos igualmente com os pressupostos e as implicações das perspectivas que Silva Mendes expõe, realizando, a seu pretexto e sempre que necessário, reflexões próprias, com o fim de esclarecer a doutrina do autor do Tau-Te Ching.

Para tal, recorreremos não só a ideias da filosofia ocidental, como a obras de sinólogos consagrados cujos trabalhos se encontram disponíveis em Macau. Devemos, contudo, registar aqui a impossibilidade de encontrar certos livros, como por exemplo, a tradução do Tau-Te Ching de Stanislas Julien, as obras de Léon Wieger, Paul Carus, Henri Maspero, de entre os mais importantes.

Pretendemos, pois, lançar as pistas para um possível encontro entre o pensamento ocidental e o oriental acerca dos temas tratados neste trabalho. Contudo, a vastidão, a complexidade e o fascínio do assunto são tais, que contamos voltar a estudá-lo posteriormente.

Os Senhores das Quatro Direcções: norte, oeste, sul e leste; um talismã tauísta do Século XIII para anular as maldições.

BREVE BIOGRAFIA DE MANUEL DA SILVA MENDES

A "personalidade invulgar" (1) do autor das obras sobre as quais me debruçarei neste trabalho é multifacetada, polivalente, de interesses vários e realizações díspares. "Manuel da Silva Mendes nasceu no distrito do Porto, em S. Miguel das Aves, a 30 de Novembro de 1876". (2) Cursou Direito em Coimbra e em 1898 publicou "apenas com 22 anos" (3) o seu primeiro trabalho, como tradutor: "Wilhelm Tell", de Schiller. Terminado o curso de Direito, abre escritório em Famalicão, onde recebeu,"a fazer um requerimento"(4), O telegrama em que o seu amigo Mons. Santos Viegas (5) Ihe anunciava que um lugar de professor vagara na Província de Macau. Casando entretanto, embarcou em 1901, numa viagem longa por si recontada com um humor queirosiano no seu artigo "De Lisboa a Macau".(6)

Como professor no Liceu, ensinou Português e Latim (a partir de 1901) ao longo de 25 anos, durante os quais se empenhou na vida da cidade, ocupando os cargos de Reitor interino do Liceu, de Presidente do Leal Senado e de Administrador do Concelho, atraindo a si inúmeros amigos, muitos deles chineses, "coisa pouco usual em quem vem de fora e não conhece a língua" (7), sendo destes, o mais célebre, o Governador da província de Guangdong, Sr. Chan Chek Yu.

Autor de um profícua actividade jornalística no "Vida Nova","O Macaense","O Progresso","A Pátria","Jornal de Macau","A Voz de Macau", e nas revistas "Oriente" e "Revista de Macau" donde se destacam muitos artigos em que o seu estilo crítico, mordaz e simultaneamente objectivo, não se dissocia de um fascínio por Macau e pelo Oriente -desenvolvendo um gosto pela arte chinesa, reflectindo este seu interesse e progressivo estudo sobre arquitectura sacra (8), mobiliário (9), arte (10) e pintura (11) que coleccionava, passeando amiúde pelas "antiqualhas e pelos bricabraques do bairro de Santo António". (12) Temos também da sua actividade como advogado de reputação no Território, vários trabalhos relacionados com os casos em que colaborou.

Para além de todas estas ocupações, deve destacar-se o estudo que desenvolveu acerca do Tauísmo, "interesse constante durante a sua vida em Macau". (13)

Várias fontes indicam que se deslocava com alguma frequência ao mosteiro de Choc Lam: Luís Gonzaga Gomes, que com Joaquim Paço d'Arcos foi seu aluno, afirma que "parte do seu tempo, passava-a Silva Mendes, no aprazível e agasalhador Pagode de Mong-Há, a entreter-se em amena conversa com os bonzos seus amigos". (14) Se estas tertúlias focavam os temas transcendentes e técnicos do Tauísmo, não se sabe, tendo-se porém, a certeza de que não dominava o chinês escrito, e que do falado tinha um conhecimento superficial (15), facto que o levou a estudar a obra de Láucio (16) por meio de traduções."Lau-Tse e a sua Doutrina segundo o Tao-Te Ching"(1908) - a conferência que pronunciou no Grémio Militar de Macau, e sobre a qual mais reflectirei neste trabalho - "Excertos de Filosofia Tauísta" (1930), bem como artigos dispersos-"Filosofia da Criação" (in "O Macaense",1920) e "Chiang, o Borboleta" (in "O Macaense",1919) -mostram as suas excelentes qualidades como estudioso e homem preocupado com o conhecimento interior da civilização chinesa, perto da qual, por desejo seu (17), acabou abruptamente os seus dias às onze horas do dia 30 de Dezembro de 1931, com 55 anos, na sua residência na Estrada do Engenheiro Trigo, na cidade de Macau.

Silva Mendes em 1924

TEMAS CENTRAIS DO PENSAMENTO CHINÊS

Se quisermos ater-nos às linhas unificadoras e explicitativas da cultura chinesa, podemos afirmar sem medo de cairmos em exagero, ou de termos uma visão reducionista, que o seu tema aglutinador é o Tau: o caminho que gera sábios, e que, simultaneamente e sem paradoxo, é a causa última e norma do Universo que impregna. Ideia dominante na filosofia chinesa, o Tau perpassa as suas reflexões assentes num axioma fundamental: o Homem e o Mundo formam uma unidade estreitada por laços íntimos de interinfluências.

Chen Li-Fu afirma que o "Cosmos é Ser ou Vida em grande totalidade" (18), sendo este um postulado aceite pelos sábios chineses no uso que fizeram, ao longo do milenar desenvolvimento desta cultura, da sua "sabedoria sublime e experiência cumulativa". (19) J. J. L. Duyvendak aponta que esta relação é na mentalidade chinesa tão íntima e indissociável que o Homem, o Céu e a Terra têm paralelismos, sendo os três planos em que o pensamento se move e a vida se desenvolve: "Assim como o trabalho do homem é tão necessário a seu tempo como a fertilidade da terra e a chuva do céu para fazer crescer a seara, também há uma correlação estreita em cada domínio da vida". (20) Este exemplo, próprio da sabedoria agrária da antiga China, remete-nos para outros vários aspectos, também eles próprios da cultura, filosofia e mentalidade chinesas. Consequência dessa unidade, é a impossibilidade de concepção de um percurso próprio e diferenciado para o Homem, pois que a sua Via-Tau se encontra in fieri envolvida e identificada na totalidade cósmica em desenvolvimento: "Este movimento é a Via, Tau, do Céu. A Via, Tau, da terra e a Via, Tau, do homem, correspondem-lhe". (21) Concepção afastada no Ocidente desde o emergir do pensamento filosófico autónomo! O desenvolvimento da vida do Cosmos não se faz, todavia, fora de um espaço e de um tempo, pois estes são, também eles, indissociáveis daquele (22), porque o caracterizam na sua essência. Esse desenvolvimento, aliás, não é senão a realização da substância (chih) de cada ser por meio da energia (neng) que lhe é própria, numa inter-rela-ção criativa de destruição/produção. Este princípio duplo, passivo-activo (que o "I Ching" - Livro das Mutações designa por Yin/Yang), bipolar e espácio-temporal (Shih, Wei) hermético a uma análise porque uno e absoluto, conduz os seres a um equilíbrio. de existência, ao desenvolvimento e adaptação à sua forma (T' 'i) na harmonia da sua realização cósmica (Chih chung ho). O problema metafísico do Uno e do Múltiplo, razão do movimento, põe-se aqui com acuidade no desenvolvimento da multiplicidade dos seres do Universo, segundo princípios que são uniformes para a pluralidade. Neste movimento dialéctico, o pensamento percorre todas estas instâncias da realidade, e o Homem, também ele indivisível, não é senão um dos seus elementos, pois que, como afirma H. Maspero: "para os chineses, que nunca separaram o Espírito da Matéria, mas para quem o mundo é um contínuo que passa sem interrupção do vazio aos seres materiais, a alma não tomou o papel de contrapartida invisível e espiritual do corpo visível e material" (23), como no Ocidente. A perspectiva analítica do pensamento ocidental perante este substracto cultural é inconsequente, já que para se lhe aceder é necessária uma postura intuicionista, a fim de não esquartejar a visão de totalidade. O esforço de abstracção é inútil e erróneo, porque conducente a uma visão fragmentária e unilateral do Real, que aqui se "põe" como Uno.

Nesta grande unidade cósmica, que em si é "uma Totalidade englobante, e não, nenhum elemento ou unidade: é 'vasta' e 'permanente' e é vida legando a vida e crescimento seguindo o crescimento, num processo infindo e auto-perpetuado", as qualidades próprias de cada ser influenciam espontaneamente os demais, numa cadeia dialéctica universal que tem o movimento como característica essencial.(24) A espontaneidade mesma, é a chave desta realização e satisfação de si dos seres, e do Homem inclusivé, pois segue o seu caminho, que é cósmico. O Universo desenvolve-se espontaneamente "sem fricção das partes deste mecanismo, sendo esta a condição ideal de cada parte do Todo se poder revelar completamente". (25) É, portanto, compreensível a abundância característica da cultura chinesa de obras com o intuito de dar "algumas regras de vida válidas para a comunidade dos homens". (26) O problema do Homem, portanto, equacionado nesta perspectiva, torna-se central na Cultura Chinesa dado que, não só se centra na sua vida, como procura ir além, visando alcançar o seu bom desenvolvimento e satisfação. Entende-se aqui por satisfação de si - não só do indivíduo, como do todo da sociedade humana - o devido cultivo de si do indivíduo em ordem ao desenvolvimento da família, para bom governo do estado, com vista à libertação universal do todo humano. Só assim o Homem não causará conflitos e o seu bom desenvolvimento seguirá curso. E Chen Li-Fu conclui que a cultura chinesa "dá grande ênfase ao Homem, e as suas maiores contribuições e realizações são efectuadas com vista a este fim". (27) Este microcosmos que é o Homem, envolvido, como uma parte, no macrocosmos, não só é visto no pensamento chinês como um problema do âmbito da filosofia da natureza (ou, talvez melhor, do âmbito cosmogónico), mas também, e num contínuo, uma questão de cariz ético-moral.

Este fundo cultural vitalista, universalista e naturalista (28), comum a uma civilização de longo desenvolvimento, que Marcel Granet (29) via como institucional e de origem social, forja-se e sistemati-za-se em representação do mundo, como o humanismo ético confuciano e o intuitivismo contemplativo tauísta, pólos aglutinadores entre os quais oscilará o pensamento chinês durante séculos.

Representação do Tao, o Indeterminado, sem forma nem nome,"mãe" de todas as coisas, do ser e do não-ser, futuro, presente e passado, infinito espaço e infinita mudança.

LÁUCIO E O TAU-TE CHING

Da vida deste sábio chinês unicamente podemos afirmar que "nada sabemos com certeza" (30), recorrendo os sinólogos, invariavelmente, às mesmas e reduzidas fontes de informação histórica tidas como dignas de crédito. Luís Gonzaga Gomes na introdução que faz à sua tradução do Tau-Te Ching, refere essas fontes, considerando "a brevíssima e pouco elucidativa biografia do filósofo" (31), "devida ao grande historiador Si-Ma-Ts'ien" (32) nas suas Memórias Históricas (Si-Kei), uma colecção de factos históricos considerados como autênticos, embora Duyvendak afirme, a propósito, que "não dá nenhum valor a esta tradição". (33) As demais informações são lendas fantásticas, suposições tradicionais, cuja origem se perde nos tempos. As célebres conversações, que teria tido com Confúcio, mencionadas por Chôncio (Tchong-Tchi) na sua obra "Nám-Vá Tchan-Keng" "o mais brilhante dos exegetas de Láucio comprazeu-se maleficamente em multiplicar estas narrações, sempre bastante humilhantes para Confúcio" (34), não têm "grande cunho de verosimilhança". (35) Ainda em relação ao relato "histórico" de Si-Ma-Ts'ien, Herrymon Maurer resume-o e considera que "nada tem de digno de referência a não ser o que se segue:

"Ele foi, com efeito, um homem... No Estado de Chou, ocupava o lugar de historiador dos arquivos secretos...

"Láucio praticou o Tau e a virtude. Os seus ensinamentos apelavam à conciliação do Eu e para o facto de não ter nomes. Ele viveu muito tempo no Estado de Chou, mas antevendo a sua ruína partiu na direcção da fronteira. O oficial da fronteira chamava-se Yin Hsi. Ele disse: 'Senhor, estais prestes a partir. Peço-vos que escrevais um livro para mim'.

Láucio, então, escreveu um livro com duas partes, discutindo o Tau e a Virtude, e escreveu cinco mil e tal caracteres. E depois partiu.

Ninguém sabe onde ele morreu". (36)

É muito escassa, pois, a informação biográfica sobre este mestre chinês.

Tal como Homero, espírito precursor no amanhecer de uma cultura, Láucio é por vezes visto como um conjunto de autores, de heterónimos ou de pseudónimos (37) que a tradição foi personificando(38). Láucio, contudo, teria vivido no Século. IV a. C., pois que "as ideias do Tau-Te Ching fazem inteiramente parte do clima intelectual que existia na China por volta do ano 300 a. C.". (39)

Esta obra, objecto da reflexão de Manuel da Silva Mendes, tem uma forma muito peculiar e de difícil penetração para o leigo no tema. Geralmente traduzido por "O Livro da Via e da Virtude" ("Le Livre de La Voie et de La Vertu", ou "Tão, the Way of the Ways ") é um livro de estilo lapidar em que "a interpretação depende inteiramente do contexto e em que, se as suas linhas estão dispostas incorrectamente, tornam-se ininteligíveis'".(40) Poderíamos vê-lo, se o paralelo é permitido, como os escritos órficos no mundo helénico (41), de cariz intimista, dirigido ao Homem e simultaneamente sibilino e misterioso. Não é uma obra em que apareça ou se exerça o espírito analítico-racional próprio da filosofia ocidental, nem esse parece ser o caminho que lhe dá acesso. Estamos, antes, perante um conjunto de máximas em que o todo se encontra nas partes e vice-versa, parecendo ser a via intuicionista, que persegue a sugestão e a insinuação poéticas, tão próprias da língua e da lógica orientais, a via mais acertada para a elas acedermos. Aliás, Chen-Li Fu, a propósito da forma do texto e da linguagem usada, diz que "a escrita chinesa desenvolveu ao longo dos séculos uma linguagem esteticamente bela e cientificamente pragmática, muito independente e totalmente estranha a todas as línguas ocidentais." (42)

Encontrar as linhas unificadoras que formam um contexto correcto é o trabalho basilar e fundamental do leitor. Assim, vários sinólogos lançam o que poderíamos chamar pistas de leitura, das quais realçamos as de Luís Gonzaga Gomes e de H. Maspero. Aquele sinólogo macaense vê a doutrina de Láucio como uma negação dos ensinamentos escolásticos (que na China se identificam com a escola confucionista) (43) e como uma heterodoxia relativamente ao pensamento institucional da Antiga China. Diz, portanto, que "Lei-I (Láucio) pregou a auto-transformação, por meio da inacção, e a rectidão por meio da calma pura" (44), sendo estes os dois horizontes de compreensão que, em nossa opinião, conduzem ao bom entendimento da obra. Corroborando em certa medida esta posição e ultrapassando-a até, H. Maspero declara que "o Tauísmo foi a tentativa chinesa de criar uma religião pessoal ", dado que na China aquela "não dava nenhum lugar ao indivíduo". É, portanto, "uma religião de salvação que se propõe conduzir os fiéis à Vida Eterna". (45)

A Escola do Tau, considerada e desenvolvida à margem do pensamento e da religião oficiais, teve, contudo, durante a dinastia T'ang (Século VIII) (46) um momento de glória em que o Tau-Te Ching foi considerado livro oficial e colocado na Biblioteca Imperial na secção dos clássicos (King) (47), objecto de estudo da classe letrada. Porém, este estatuto foi momentâneo e rapidamente cedeu lugar aos clássicos confucionistas.(48)

Seja como fôr, para o mundo moderno esta obra é considerada central na filosofia e cultura chinesas: "ainda que certas passagens continuem obscuras, a ideia mestra deste livro é perfeitamente clara. Nele está encerrado um verdadeiro tesouro de sabedoria, mas, depois de tantos séculos, este pequeno livro continua a ser digno da nossa admiração e interesse ". (49)

MANUEL DA SILVA MENDES: O TAU COSMOGÓNICO E O TAU MORAL

Após estas considerações introdutórias que são já, e sobretudo, um trilhar do caminho no interior do pensamento de Láucio, penso que estaremos aptos a uma melhor compreensão dos escritos de Manuel da Silva Mendes sobre o Tauísmo.

Para Silva Mendes, "toda a doutrina de Lau-Tse se encontra no Tau-Te Ching" (50), sendo a análise desta obra o fulcro do entendimento do Tauísmo filosófico, e considera como comentários chineses, com referências dignas de fé, os Analectos de Confúcio e o Thienyun de Choang-Tzé (Chôncio)".

Silva Mendes inicia a conferência com uma breve apresentação de Láucio, sem grandes preocupações de rigor histórico, e sem se querer embrenhar nas polémicas que acerca deste ponto se desenrolam entre os sinólogos. Parece-nos que esta questão é, contudo, de certa importância para determinar a situação intelectual e o clima de pensamento do Tau-Te Ching, a fim de termos um entendimento mais claro de certas passagens. Contudo, o próprio Silva Mendes cita Abel Rémusat, que diz: "nós temos tão poucos meios de adquirir uma inteligência perfeita deste livro pelo limitado conhecimento das circunstâncias". (51) A densidade do texto e o "estilo condensado" são, segundo Silva Mendes, as características que o tomam pouco claro. Parece-lhe que "o seu autor se propôs escrevê-lo com palavras dez vezes menos numerosas do que as necessárias para poder exprimir-se com clareza".(52) Porém, não terá sido só um gosto pelo laconismo que levou Láucio a utilizar só cinco mil caracteres nesta obra. A própria temática explica as suas "tendências místicas", o "temperamento poético (...) obscuro, (e) enigmático". (53) É que, como veremos adiante, a língua fala de seres com nome e deles não se fala aqui, e a realidade que se trata ou se sugere aqui, não é adequada à língua (ou vice-versa), pois que, "O Tau que pode ser dito/não é o Tau absoluto"(54), donde "tudo o que se diz não é senão aproximação". (55) Estamos, por conseguinte, perante um texto que encerra uma doutrina que pretende falar do inefável.(56) O paradoxo que reside entre a intenção da obra e a obra em si, transporta-se, naturalmente, para a linguagem usada por Láucio, que recorre a todo o momento do paradoxo, como instrumento de "mostração", e não de demonstração (57) e muito menos de explicação, do Real porque "discuti-lo é vão / Mais vale retê-lo ".(58)

Para além desta questão propedêutica já referida na terceira parte deste trabalho, Silva Mendes considera o texto do Tau-Te Ching um pequeno tratado de cosmogonia e de moral acerca do qual pensa, tal como Stanislas Julien, ser unicamente possível apresentar o sentido geral da doutrina.

Tentando, pois, apresentar e analisar linhas unificadoras da obra, dividiremos este capítulo em duas partes, consoante os temas que Silva Mendes seguiu, a saber: o "Tau", ou a Cosmogonia e a Moral, sendo a divisão meramente metódica.

1. O TAU, PRINCÍPIO COSMOGÓNICO

Este termo, que acarreta consigo uma pluralidade de polémicas e exige uma variedade de esclarecimentos, não é exclusivo da escola Tauísta, sendo, como vimos anteriormente no capítulo II, o tema dominante na filosofia chinesa, que todas as escolas tomam para si como objecto de reflexão, embora com perspectivas diversas.

Na escola Tauísta (59), o Tau é concebido como o Saber do Absoluto.(60) Henri Maspero, seguindo uma análise própria da filosofia e do pensamento ocidental, separa a Ciência das coisas sensíveis, da Ciência que transcende aquela, a que apelida de Ciência do Absoluto (61) (prefiro, contudo, a designação de Saber, dado que este termo é mais englobante, por razões que mais à frente veremos). O objecto desta área do conhecimento seria o que os Tauístas chamam Tau.

Este termo, segundo Silva Mendes, designa o cerne da ordem das ideias "relativa às causas primeiras" e, assim, o Tau-Te Ching é um tratado que versa sobre a "existência e atributos do Ser primordial, sobre a origem das coisas".(62) Este é, talvez, um dos pontos em que a sua visão ocidental se manifesta mais claramente, projectando-se na sua leitura uma perspectiva analítica que o leva a identificar o Saber do Tau com a Metafísica (Filosofia Primeira): "Ciência do Ser enquanto Ser".(63)

Por ser obscuro e complexo, "muitos sinólo-gos preferem não traduzir a palavra Tau" (64); muitos deles tentam definir ou, pelo menos, iluminar e delimitar o conteúdo deste termo. Assim, os missionários Prémare, Montucci e Amiot não viram outra tradução e sentido senão o de "Ente Supremo ou Deus"(65), o que, segundo Silva Mendes, conduzia a uma identificação da doutrina de Láucio com a dos Evangelhos (66), aventando Montucci a possibilidade de o conteúdo ter sido "revelado aos chineses mais de cinco séculos antes da vinda de Cristo". (67)

O paralelo entre a Bíblia e o Tau-Te Ching foi igualmente feito por Stanislas Julien (autor bastamente citado por Silva Mendes) e Abel Rémusat durante o Século XIX. Este, comungara da opinião dos primeiros missionários, e vira o Tau como "Razão Suprema, ou Deus", o que torna as suas traduções, por vezes, "simples glosas do texto hebraico" (68), enquanto que aquele o vira como logos, no triplo sentido do Ser soberano, razão e verbo; "o logos tal como definiu Platão". (69) Este sentido platónico é corroborado pelo sinólogo alemão Richard Wilhelm que, procurando para o Tau um termo que fosse a síntese de Verbo e Via, o encontrou no logos grego, mediador entre o invisível e o visível. Esta mediação, nota Silva Mendes (70), assemelha-se ao logos de Heráclito: a alma universal como destino dos seres no seu desenvolvimento (Moїra) (71), e também possibilidade de ser conhecida pelo Homem, porque é uma razão universal.

Relativamente ao sentido de Ser Soberano e norma universal, traz como esclarecimento as afini-dades que tem em relação ao "Verbo", da expressão do Evangelho de S. João: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus". (72)

Porém, se seguida a etimologia (73), o Tau em sentido próprio é um caminho e uma via, o que, por conseguinte, lhe dá um carácter dinâmico. A via serve para comunicar e tomar comum, e em sentido figurado, o pôr em comum usa a palavra como meio. De uma forma ou de outra, a via é igualmente um caminho que se pode percorrer e o seu percurso, se entendido em sentido lato, é "con-forme" à via ela própria, o que nos faz aproximar do vocábulo grego Meta-ódos (método).

A J. J. L. Duyvendak, este sentido dinâmico, viático, é essencial à compreensão do Tau, pois a via "não é uma Causa Primeira, e não é um Logos. Ela não é senão o processus da mudança e do crescimento entendido em si mesmo. O mundo não é mais concebido em termos estáticos, mas em termos dinâmicos" (74) Este dinamismo, que exclui qualquer tradução do Tau como Princípio imóvel, transcendente, ou pensamento estático, conceptualizado ou categorizado, dá-nos mais um aspecto importante do termo Tau: o dinâmico implica uma potencialidade.(75) Ora, neste aspecto, o Tau-Te Ching tem fortes relações com o I Ching, pois este último, quando explica a mutação perpétua segundo os princípios do Yin e do Yang (76), polarizadores dos opostos que se manifestam na realidade, afirma que "uma alternância do Yin e do Yang é chamada A Via"(77). Esta Via, ou Tau, tem, portanto, "um valor metafísico: designa um Princípio Superior totalizante que rege as alternâncias do Yin e do Yang" (78); Silva Mendes partilha desta posição dizendo que "O Tau é, pois, para os seres a Via, (...) é a Via e é também o Viandante, é a causa e o efeito de tudo".(79)

Os Oito Imortais. Nesta gravura, os Imortais estão representados dentro de círculos ornamentais, plenos de significados simbólicos. Canonizados no Século XII, adquiriram a imortalidade por diversas acções meritórias e simbolizam diferentes capacidades e poderes.

Todas estas contribuições para o esclarecimento deste termo nos dão conta da sua complexidade, sendo "inadmissível atribuir-se ao Tou (Tau) o sentido restrito de razão primordial ou de inteligência sublime que criou e rege o mundo" (80), semelhante a uma concepção deísta. A sua compreensão não é do domínio do conhecimento unicamente teórico nem a sua essência tem a fixidez de um universal criado pelo entendimento humano. O saber ocidental cria conceitos que são a resposta da inteligên-cia e da vontade humanas ao real, no sentido de o dominar: são um esforço de domínio do perigo de ser dominando pelo real.(81)

O caracter shou (longa vida), assinado porYeh Chih, de 85 anos, com o selo do artista. Data do primeiro dia da primeira lua de 1886, Dinastia Ching.

Para a escola de Láucio, tal via não é a Via, porque é nomeável.(82) No Saber oriental a abordagem teórica do real não tem verdadeiro carácter de conhecimento (83), porque, tal como os gregos já o tinham miticamente observado, o conceito é como a visão de Apolo, o qual, com cabeça de Górgona, quando vê, petrifica, numa fixidez imóvel, acrónica e desarticulada do movimento universal.(84)

Para os orientais "nunca o fundamento /lhe (ao pensamento) foi dado do ser ou da existência/ Descobrir. Luta vã baldado intento".(85) O conhecimento não é um esforço de afirmação do "Eu" do Sujeito face ao objecto, não é um saber fenomenoló-gico. E aqui emerge o horizonte cultural do Oriente, do sábio que vive em paz e na "Ataraxia". O Saber e o caminho do Saber são a aceitação do real e não a oposição ou a confrontação. E, para tal, o vazio, ou processo prévio de esvaziamento do Homem, é basilar. O Tau é, assim, o real da factualidade não subjectiva, um Todo, sem aspectos ou perspectivas forjadas pelo espírito humano, sem separação, não cognoscível pelo conhecimento parcial das categorias do entendimento. O Saber do Tau é entendido como um domínio ante-predicativo (porque não dominado pelo conceito), para o qual o Nada, o Vazio, o Silêncio são o caminho do Homem: "Ao moldar-se, o barro torna-se um pote: / no Vazio reside a utilidade do pote./ Pode-se obter o ganho de qualquer coisa ("Somethingness") / Mas o uso pode-se obter do nada ("nothingness")". (86) O saber oriental tende, portanto, a par de uma desconfiança nas categorias abstractas (os universais), a atingir um conhecimento da totalidade da realidade por um caminho de conhecimento imediato (87), que só se encontra com a vivência contemplativa:

"Fala o vulgo, discute, discreteia E cuida em seu orgulho saber tudo: Contempla o sábio o mundo que o rodeia E, por fim, recolhido, fica mudo! ..." (88)

Dizer o que se entende por esta vivência contemplativa, entendida como o acesso ao real, é uma dificuldade insuperável, já que, à partida, o que se vive é incomunicável, e a experiência é singular, e o singular não é conceptualizável.(89)

Como consequência destes vários sentidos apresentados, o Tau é o caminho que leva ao Tau (90); é uma experiência de intimidade com a realidade. É, portanto, a experiência, a prática, que conduz ao Tau - não para dominar o real e seguir um qualquer preceito moral (a escola Confucionista reduziu o Tau a um ideal moral) (91), decorrente de um universal intelectual - mas para entrar na vida desse real, para além de qualquer visão unilateral ou parcial (92). Descortina-se o Tau por uma mudança de postura (93) teórico-prática no interior da verdadeira realidade do Homem, que é o mesmo que dizer, na verdadeira realidade do Mundo. Só a experiência nos permite atingir o Tau e viver nele, estando ele em nós, numa fusão de imanência e transcendência (94), de vazio e plenitude. O Homem acede ao Uno nesta experiência singular de singularidade:

    "Tudo é mar (movimento): tudo é Tau e 
    Tudo é Um 
    Na evolução universal.- Nenhum 
    Ente senão em Tau sustém a vida. 
    (...) Esta alma é Tau: é a alma universal: 
    Da vida a eterna fonte, una na essência. 
    Múltipla, repartida na aparência 
    Das formas vãs em que se gera o Mal" (95)

E é atingido este estádio (que poderíamos chamar ascético, e que os pensadores cristãos, analogicamente, chamam "via purgativa"), que o paradoxo se mostra real e manifestação desse real.(96) O Paradoxo é a alternativa, para além da lógica dos nomes, de um conhecimento que se preenche na experiência silenciosa, contemplativa, da Existência.(97)

Láucio propõe, como vimos, um conhecimento do Todo (que não tem necessariamente de ser entendido como um conhecimento místico, reservado a escolhidos) (98), que não constrói abstracções (porque abstrair - abstrahere - é separar, considerando isoladamente do Todo), sobre esse Todo: é conhecimento pelo "Não-Conhecimento", ou seja, um conhecimento por intimidade, aberto à aceitação.(99)

Digamos que é um sucesso interior, que compreende e supera a impossibilidade de sucesso exterior. Desta superação, o interior e o exterior encon-tram-se, porque o Homem se coloca no Caminho (Tau) a que o conduziu o seu interior, de aceitação do Real como ele é, e esse é o sentido da Vida.

Da concepção metafísica tauísta do Ser como imanente e transcendente, englobante na individuali-dade dos seres, advém esta perspectiva de uma gnoseologia baseada no "não-dizer" e na intuição contemplativa do Real como Totalidade: estas duas vertentes são de uma só entidade que os tauístas referem pelo termo Tau.

2. O TAU, PRINCÍPIO MORAL (WOU-WEI)

Vimos como o conhecimento humano do Tau se processa por uma mudança na atitude do Homem face ao Real: uma interiorização sem afirmação, um conhecimento sem dizer. O sucesso individual falha na captação do Tau, e o Homem, após tal falta, vol-ta-se para o Caminho (Tau), e aí procura o sentido da Realidade: procura o Uno no meio do Múltiplo, o meio de os Seres realizarem o (seu) Ser.

Assim, com base no que fica dito, a procura faz-se em direcção ao Caminho que conduz os seres a viverem em co-existência. O Homem deve, portanto, desenvolver a sua "pureza primordial" (Ch'eng) (100), e realizar-se a si próprio no (seu) caminho (hsiu tau). Nota Silva Mendes que "Lao-Tzé aconselha o regresso à simplicidade dos costumes primitivos, ao naturalmente inculto mas virtuoso, do Homem que, sendo bom por natureza, a civilização e a sociedade corromperam". (101)

Para além das óbvias conexões desta interpretação com as teorias rousseaunianas do bon sauvage, interessa nos realçar que Láucio se para aqui a gnoseologia, do caminho do Homem, da sua conduta ético-moral. Estamos, portanto, longe do intelec-tualismo ético!

Aceitando e seguindo esse caminho, o Homem rectifica a sua mente, porque desenvolve a sua essência como mais uma de todas as partes do todo. Tal como o Universo ao desenvolver-se espontaneamente se satisfaz, e a cada uma das suas partes, assim também a sociedade humana (Humanidade) e o Homem se satisfazem: seguindo o Caminho, sem agir intencional e conscientemente.(102) A espontaneidade é, mais uma vez, a chave para se alcançar o Caminho: os caminhos do Mundo e do Homem são, no fundo, o mesmo e um só.

Seguindo este curso, o Homem atinge o Sentido (Chung) (103), isto é, o ponto em que o Homem encontra o justo equilíbrio, de satisfação no seu desenvolvimento no Mundo. O (seu) sentido é o Sentido e a sua conduta decorre da conduta do Mundo.Portanto,"a doutrina de Lau-Tse representa essencialmente um esforço para harmonizar a vida do Homem na Terra com a existência e a Lei do Universo (Tau)".(104)

Vimos antes que o Tau em tudo está e tudo sustém como suporte ontológico, e a sua manifestação no Mundo é a Virtude, porque, se seguida, conduz à unificação com ele. "O Tao é para o Homem a via, e a sua conduta deve consistir na imitação do Tao, pela prática inconsciente ou intencional da virtude". (105) A virtude de que Silva Mendes aqui fala designam-na os chineses por To designa "um poder de realização em domínios particulares, ao passo o Tao implica uma eficiência universal. (...) Neste caso pode falar-se (...) de Tao-To".(106)

Assim, que prática é, pois, requerida para que o Homem aceda à virtude? Láucio aconselha que cada qual deve seguir a sua natureza, por meio de um aperfeiçoamento passivo. Ora, este aperfeiçoa-mento sem afirmação mas por recepção, é um aper-feiçoamento pela "não-acção", que os chineses denominam Wou-Wei.(107) Esta "não-acção" não se deve confundir com uma "inacção", porque se caracteriza por uma atitude de não intervenção no decurso e desenvolvimento do Universo.(108)

Da mudança de atitude teórica (da afirmação à aceitação / contemplação) decorre, portanto, esta postura prática. O respeito pelo outro ser (em termos metafísicos) na sua autonomia e evolução, é para o Homem a não-acção: "Pratica a não-acção / e tudo se fará " (109), diz Láucio.

A "não-acção" (Wou-Wei) é o meio de o Homem encontrar o Tau, descentrando-se do Mundo pela abstracção de acções que influam no devir universal.(110) É mais do que uma não interferência, já que pelo Wou Wei o Eu não se pro jecta, nem teórica nem praticamente, no centro do real. Praticar pois a "não-acção" é encontrar o caminho, e "conformar-se com o próprio Tao."

O Homem que cultiva esta virtude (To), que tem por essência o Wou-Wei, não persegue na sua existência qualquer fim. Este sistema moral caracte-riza-se por ser uma formalidade (nega qualquer conteúdo substancial), sem fim porque se identifica com o Tau (via), quedando-se "passivo". A bem dizer, já tem um fim, que é o Wou-Wei. Abstém-se é de o querer.

O Wou-Wei, por conseguinte, emerge de uma (Epochê)(112)) prática: não se deixa de agir, mas não se dá significado de conhecimento às acções exteriores (Poiésis), e, ao invés, centra-se a atenção nas interiores (Teoria) que conduzem à verdadeira realidade sem acção. Esta "acção não-activa" que perpassa tudo e em tudo está, é o Tau e o Homem, por meio da acção teorética, torna-se semelhante e comunga do Tau. Deve, pois, o Homem "libertar-se de todos os vícios" (113) e tornar-se "con-forme" ao Tau, afastando-se "de tudo o que o possa desviar da imitação e contemplação do Tau." (114)

Silva Mendes identifica os obstáculos à imitação do Tau com "tudo o que seja terreno"(115), projectando aqui uma separação analítica própria do horizonte de compreensão ocidental. Ajuda-nos na nossa compreensão esta separação, se por "terreno" entendermos tudo o que é um obstáculo ao sereno fluir e desenvolver do ar. O Homem que aspira à "con-formidade" com o Tau pela prática da virtude, tem por modelo a "Ataraxia" e a serenidade naturais: não se esforça, não quer, não conhece, não deseja, porque não age, já que a acção é contrária ao Tau. Quem pratica a virtude "ignora a sua virtude" (116) e tem "a sua alma (...) tranquila, calma como a alma do recém-nascido, pura como a neve, simples como a criança."(117)Sem as coacções decorrentes de "algo-fazer", de "algo-conhecer" e de "algo-querer", o sujeito conforma-se com o Tau e o Tau aparece espontaneamente ao sujeito: o "verdadeiro-fazer", o "verdadei-ro-conhecer" e o "verdadeiro-querer".(118) Digamos que, para o sucesso e desenvolvimento no Caminho, está é a propedêutica necessária. Em conclusão, este conjunto de ideias forma o sistema moral de Láucio, que decorre do seu entendimento do Tau.(119) O pensamento da escola Tauísta tem, portanto, "em mira fazer conformar as acções humanas com o procedimento ou processusdo Tau, isto é, com a ordem natural do Universo". (120)

    "Láucio converteu o povo 
    À não-acção 
    E, por meio da pureza e da calma, 
    Conduziu-o à Origem"(121)

CONCLUSÃO

Após estas perspectivas que apresentámos acerca de um dos pouquíssimos autores que em Macau pensaram questões de cariz filosófico, e contribuíram para o seu esclarecimento sobre a essência mesma dessas problemáticas, é conveniente realçar alguns dos pontos que nos parecem mais importantes. Tentámos restabelecer o contacto de Manuel da Silva Mendes com o pensamento de Láucio, reavivando as questões que aquele estudou, tecendo nós algumas reflexões no intuito de tomar mais claro e vivo o conteúdo das obras tratadas.

Assim, das leituras das obras de Manuel da Silva Mendes que versam sobre o Tauísmo e a doutrina geral de Láucio, ficou patente que faz uso de uma perspectiva categorial e analítica, embora por vezes se afaste dela, usando invariavelmente formas poético-simbólicas. Esta postura teórica em que a doutrina de Láucio se enquadra numa sistema conceptual e discursivo, é própria do "pré-conheci-mento" e horizonte de compreensão ocidentais, lógica bivalente e discursiva, e da necessidade que temos de abstrair para conhecer, herdada longinquamente dos gregos e, quiçá em Silva Mendes, agravada pela sua formação clássica e jurídica.

Esta característica das suas perspectivas, por seu turno, parece chocar com a forma do texto de Láucio (lido em traduções para línguas europeias), recorrente do símbolo, onde nenhuma parte deixa de referir o Todo e que a nós, à primeira vista, parece desorganizado quanto à apresentação do tema.

Não obedecendo a preocupações temáticas de organização, nem a um encadeamento de raciocínio, o texto aparece-nos como se nenhuma das partes sobressaísse das demais, onde todos os capítulos remetem para a totalidade da obra. Compreende-se, portanto, que as referidas linhas de leitura que os sinólogos apresentam, sejam essenciais, quanto a nós, para a sua compreensão.

Um outro ponto que se destaca no final deste trabalho, é o paralelo do estilo e da obra (de Láucio) com o tema tratado: ambos não são passíveis de análises parcelares e ambos são um todo que trata da Totalidade. Por conseguinte, estamos perante um estilo peculiar que segue um processo aditivo, onde não existe perspectiva (privilegiada), porque todos os elementos são fulcrais para encontrar o sentido e a significação do Todo.

Silva Mendes esforça-se por nos transmitir este sentido íntimo da obra do mestre chinês. Não o instrumentaliza nas suas reflexões e tenta não perder a objectividade, apesar de conhecer vários críticos com opiniões diversas, e de ele próprio não poder transpor a sua perspectiva. Não pretendeu elaborar uma doxografia, nem, muito menos, uma obra acabada, e deixa que "os leitores 'interpretem 'a minha (de Silva Mendes) interpretação como melhor lhes parecer"(122).

NOTAS

(1) MENDES, Manuel da Silva, Macau-Impressões e Recordações, op. cit., pp.56.

(2) Idem, p.7.

(3) MENDES, Manuel da Silva, Colectânea de Artigos, vol. I, op. cit, p.5.

(4) MENDES, Manuel da Silva, Macau-Impressões e Recordações, op. cit., p.9.

(5) Mons. Santos Viegas era então Presidente da Câmara dos Deputados e, em sua opinião, "um político graúdo " (id. p.10).

(6) Ibidem, pp.9 a 25.

(7) Ibidem, p.6.

(8) Vide Arquitectura Sacra em Macau, in "O Macaense",1919.

(9) Antiga e moderna mobília em Macau, in "O Macaense",1920.

(10) Notas sobre a arte chinesa, in "Macau",1918,1919.

(11) Pintura chineza in"O Progresso",1914; A pintura chineza, in "Oriente",1915. A pintura na China. Apontamentos para a História da Arte na primeira metade do XIX Século. In "O Progresso",1916.

(12) MENDES, Manuel da Silva, Colectânea de Artigos, op. cit. p. VI.

(13) MENDES, Manuel da Silva, Macau - Impressões e Recordações, op. cit., p.6.

(14) MENDES, Manuel da Silva, Colectânea de Artigos, vol. I. op. cit, p. VI.

(15) Idem, p.5.

(16) Dada a diversidade de transcrições romanizadas do nome do fundador do Tauísmo, nas várias línguas com que deparamos, optaremos ao longo deste trabalho pela designação "Láucio", derivada da de "Lautius", feita pelos primeiros Jesuítas que vieram à China, a partir dos caracteres "Lou tchi"que em pequinense se pronunciam."Lau tse".

(17) "Estou com imenso desejo de voltar para Macau", dizia em carta de Novembro de 1927, (in MENDES, Manuel da Silva, Colectânea, op. cit. vol. l, p.7).

(18) CHEN Ll FU, op. cit., p.20.

(19) Idem, p.20.

(20) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit. p. X.

(21) Idem, p. X.

(22) "O Cosmos que em chinês se exprime por "Yu Chou", é identificável pelos seus dois componentes: tempo e espaço", (Chen Li Fu, op. cit., p.20).

(23) MASPERO, H., Le Taoisme. op. cit., p.17.

(24) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit., p. XII.

(25) Ibidem, p. X.

(26) "Nada é constante (...) sendo unicamente constante a mutação". (Ibidem. p. Xl).

(27) CHEN Ll FU, op. cit., p.27.

(28) KALTENMARK, Max. op. cit., p.10.

(29) GRANET, Marcel, La civilization chinoise: la vie publique et privée. Paris, A. Michel.

(30) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit., p. IX.

(31) GOMES, Luís Gonzaga, op. cit., p.1.

(32) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit., p. IX.

(33) PRAAG, H. Van, op. cit., p.55.

(34) GOMES, Luís Gonzaga, op. cit., p.2.

(35) MAURER, Herrymon, op. cit., pp.3 4.

(36) Tais opiniões são ventiladas, nomeadamente por Ho Seóng Kông (163 a. C.) um dos primeiros comentaristas do Tao-Te Ching, e por Si Ma Ts'ein já referido antes.

(37) "Lao Tseu est ainsi un nom traditionel qui s 'attache à un système philosophique (já que Lao Tsé significa em chinês filósofo velho) et religieux plutot qu'à une personne". In "Grande Dictionnaire Universal Larousse", citado em MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.63.

(38) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit., p. IX.

(39) Ibidem, p. IX.

(40) MASPERO, H., Le Taoisme, op. cit. p.15.

(41) CHEN LI FU, op. cit., p.19.

(42) A propósito afirma Duyvendak que, no Tau Te King, "em várias passagens as ideias da escola de Confúcio são atacadas". (DUYVENDAK, J. J. L., op. cit., p. IX).

(43) GOMES, Luís Gonzaga, op. cit., p.9.

(44) MASPERO, H., op. cit., pp.15 17.

(45) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit., p Xll.

(46) KALTENMARK, Max. op. cit., p.9.

(47) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit., p. XII.

(48) Idem. p. XIII.

(49) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.64.

(50) Ibidem. p.68.

(51) Ibidem, p.68.

(52) Ibidem, p.68.

(53) PRAAG, H. van. op. cit., p.67.

(54) Ibidem, p.66.

(55) MAURER, Herrymon, op. cit., p.11.

(56) KALTENMARK, Max, op. cit., p.39.

(57) Tao-Te Ching, V.

(58) KALTENMARK, Max. op. cit., p.10.

(59) Tao-Te Ching, IV.

(60) ARISTOTELES, Metafísica. E.1025 b.1026 a.

(61) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit. p.69.

(62) ARISTOTELES, Metafísica, 1060 b: MENDES, Manuel da Silva, ibidem, p.71.

(63) PRAAG, H. van. op. cit., p.61.

(64) GOMES, Luís Gonzaga, op. cit., p.12.

(65) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.73.

(66) Idem. p.73.

(67) GOMES, Luís Gonzaga, op. cit., p.13.

(68) Ibidem. p.12.

(69) MENDES, Manuel da Silva, Excertos, op. cit., p.125.

(70) Ibidem. p.131.

(71) Evangelho de S. João. I. l.

(72) GOMES, Luís Gonzaga, op. cit., p.11.

(73) DUYVENDAK, J. J. L., op. cit, p.10; PRAAG, H. van. op. cit., p.64.

(74) Devemos entender esta "potencialidade" em termos me tafísicos: como "DUNAMIS"oupotencialidade de uma coisa única passar de um estado a outro: de um ente se desenvolver nos limites da sua essência.)Vide ARISTÓTELES, Metafísica. 1045 b ss.: Tao-Te Ching XXXII, LI e LII.).

(75) MENDES, Manuel da Silva, Excertos, op. cit., p.134.

(76) DUYVENDAK, J. J. L. op. cit., p. Xl.

(77) KALTENMARK, Max. op. cit., p.34.

(78) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.72 e Excertos, op. cit., p.135.

(79) GOMES; Luís Gonzaga, op. cit., p.13. Tao-Te Ching, LIII. XXV.

(80) MAURER, Herrymon, pp.6,10. Tao-Te Ching XXXII.

(81) Tao-Te Ching, I e LXXXI. MENDES, Manuel da Silva, Excertos, op. cit., p.133.

(82) MENDES, Manuel da Silva, idem, p.133.

(83) Esta questão do método do conhecimento é igualmente posta no Ocidente por razões pedagógicas: como ensinar uma verdade se esta não é captável por conceitos? (vide ARISTOTELES, Metafísica).

(84) MENDES, Manuel da Silva, Excertos, op. cit., p.128.

(85) Tao-Te Ching, XI.

MENDES, Manuel da Silva, Excertos, op. cit., p.135.

Idem. p.129.

(88) Tao-Te Ching II, XII.

(89) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit, p.87.

(90) KALTENMARK, Max, op. cit., p.34.

(91) MAURER, Herrymon, op. cit., p.2.

(92) Vide nota 15, capítulo III.

(93) Tao-Te Ching. XXIII.

(94) MENDES, Manuel da Silva, Excertos, op. cit., p.134.

(95) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., pp.69 72.

(96) Tao-Te Ching, LVI.

(97) MAURER, Herrymon, op. cit., p.27.

(98) Tao-Te Ching, XLVII.

(99) CHEN LI FU, op. cit., p.25.

(100) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.79.

(101) MENDES, Manuel da Silva, idem, p.78.

(102) CHEN Ll FU, op. cit., p.25.

(103) PIRES, Benjamim Videira, op. cit., p.1442.

(104) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.78.

(105) KALTENMARK, Max, op. cit., pp.34 35.

(106) Sobre a etimologia deste termo vide PRAAG, H. van. op. cit., pp.61,62 e 198.

(107) Tao-Te Ching, XXXVII.

(108) Tao-Te Ching, LXIII.

(109) Tao-Te Ching, V.

(110) KALTENMARK, Max, op. cit., p.38.

Termo grego que designa a suspensão do juízo sobre algo.

(112) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.78.

(113) Idem. p.79.

(114) Ibidem, p.79.

(115) Ibidem, p.79. Tao-Te Ching, XI.

(116) MENDES, Manuel da Silva, ibidem, p.80. Tao-Te Ching, LV.

(117) Tao-Te Ching, XLVII.

(118) MENDES, Manuel da Silva, Sobre Filosofia, op. cit., p.78.

(119) MENDES, Manuel da Silva, Ibidem, p.102.

(120) PRAAG, H. van. p.55.

(121) MENDES, Manuel da Silva, Excertos, op. cit., p.115.

(122) Ibidem.

*Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa - Secção de Lisboa. Actualmente exerce actividade docente em Macau e prepara um mestrado na área dos estudos Luso-Asiáticos.

desde a p. 151
até a p.