Linguística

FRAGMENTOS PRIVADOS - I

"Pela tarde, em Macau, quando o corpo, depois de concentrado trabalho, já não tolerava o estirar de músculos do ténis benéfico e refrescante, costumava procurar refúgio espiritual no quarto do poeta."

"O poeta estava sempre em casa àquela hora, sempre na cama; passava assim as tardes inteiras e só por excepção saía. Aberta a porta, atravessava as duas salas-museus, dobrando em ângulo recto para chegar ao quarto. Levantava o reposteiro e via, através das grades amarelas, as barbas ainda negras e aqueles olhos pequenos e luminosos do sonhador."

"O poeta lá estava, no seu vestuário rudimentar, estendido ao longo, a lembrar um místico ou faquir indiano, e a dizer-me: Entre, entre.... com sua voz fraca de crescentes agudos. Chegava a cadeira para junto dele, e os cães, que me tinham seguido, saltavam agora para cima e para baixo do leito em palhaçadas doidas. Mas sempre Arminho, o preferido, acabava por expulsar os demais e instalar-se no seu domínio incontestado, junto ao dono, muito chegado, sobre as pernas, sobre a cabeça reclinada do poeta, lambendo-lhe o cabelo. Assim dormia todas as noites.

"Pessanha lia e fumava a esta hora, em camisola curta, cobrindo-o apenas e mal o lençol queimado de cigarro. Ao lado a mesa de cabeceira, também império, com suas ferragens muito luzentes, recém--doiradas na oficina de um amigo (indigno da sua amizade) em fácil e pobre gratidão de alguns desembaraços de complicações judiciais. Sobre ela a lâmpada, cachimbo e latinha de ópio. Aos pés uma cadeira pequena atulhada de livros. Do dossel da cama, encimado de coroa ducal, pendiam dois fantásticos peixes de latão. À cabeceira um rosário antigo que o poeta me contou, com lágrimas nos olhos, ter pertencido à sua defunta mãe e nunca mais o ter deixado. Era a melhor recordação daquela alma que andara errante e mendigando às portas dos casais. "

"Neste ambiente recebia Camilo Pessanha todos os seus visitantes.

"Discreteávamos depois sobre coisas mil: a história, a arte chinesa, a poesia universal ou a nossa contemporânea eram os temas predilectos. Pessanha falava com vivacidade, quase sem conceder ao seu interlocutor uma observação, um juízo, e entrecortava a dicção de inúmeros heim! heim! agudos, e risinhos curtos, escancarando a boca negra de fumador de ópio, abismo cavernoso e hediondo.

"O papagaio junto à janela fronteira gritava uma outra vez em uníssono. E ele continuava perorando ou retalhando com azedume crítico os factos e os homens. A sua alma, como a de todos nós, era de claridades e sombras. A fama que se fizera da sua maledicência tinha alguma razão. Quando um dia abordámos o mérito dos nossos poetas, da nova geração e da antecedente, nem um só se salvou no seu conceito."

"Não desdenhava de baixar de vez em quando até às intrigas e vergonhas locais, daquela estrumei-ra moral. Ele que era honesto (nada ávido de dinheiro) e se o não fosse poderia ter sido milionário, não poupava, nem perdoava, àqueles portugueses que vendiam a sua consciência e a honra da nação por alguns milhares de patacas1."

"O arrepio que lhe causaram as mortes na greve revolucionária de 1922, é naturalmente explicável pela sua emotividade vibrátil de poeta a quem todas as violências repugnavam."

"Depois destas excursões artísticas voltámos ao quarto. À medida que a tarde ia caindo a tensão vital do poeta diminuía, amortecia-se o olhar; faltava-lhe alguma coisa, o excitante já agora indispensável da sua vida. Das primeiras vezes ainda fez cerimónia, depois, pediu desculpa, tocou a campainha a chamar a concubina chinesa e mandou preparar o ópio. A bolinha cor de mel três vezes inchava ao fogo da lâmpada: três cachimbadas. Cada uma sorvia o poeta em dois ou três haustos, e não num único como os adestrados fumadores chineses.

"Assistia a um capítulo de Quincey ou Claude Farrère. Depois nenhum torpor; pelo contrário, um recuperar de lucidez e viveza, um acordar de nervos; mais palavras, mais ideias, mais fogo."

"Todas as tardes à mesma hora (disseram-me que igualmente uma vez de manhã) repetia as três bolinhas, o que representava uma dose ainda moderada, se o compararmos com os fumadores orientais, e uma despesa mensal de umas cem patacas. Os seus amigos chinas sabiam que o melhor presente era para ele umas latinhas do estupefaciente, e não se esqueciam de lhe enviar uma vez ou outra algumas da «Macao Opium Farm», o mais famoso e apreciado ópio entre os fumadores.

"Falava quase sempre animadamente em chinês com a companheira durante a operação, em seguida retomava o fio da conversa. O perfil junquei-resco, pergaminhado e terroso, pelo clima e pelo ópio, os olhos um pouco vesgos, o olhar estranho2 e louco davam-lhe o semblante de aedo redivivo que nos viesse contar as lendas do seu tempo. Quando me dizia algum poema chinês posto em versos seus, a ilusão quase se tornava realidade. Era um fantasma declamando coisas profundas e velhas como o mundo.

"Arminho ao lado ora se espreguiçava indolente, ora se erguia e nos olhava interrogativo, lembrando aqueles leõezinhos de loiça que custodiam os Budas nos altares. A sua genealogia explicaria essa parecença.

"Quando acompanhava Pessanha ao Liceu, ficava sob a mesa do professor e bocejava, sem respeito, ante as infindas orações daquele historiador de improviso, ao aproximar-se a hora do almoço; mas não se movia dali: a fidelidade vencia a fome."

Sebastião da Costa

Seara Nova n. ° 85, 29 de Abril de 1926

"Efectivamente, Camilo Pessanha, professor liceal e advogado brilhante dos auditórios desta comarca, espírito cintilante e irreverentemente cáustico, deleitando-se com os seus ditos escarninhos de sardónica mordacidade, era uma vítima de angustiosos sofrimentos físicos que minavam a sua adoentada existência e da aniquiladora acção do ópio a cujo gozo se entregava imoderadamente e, na sua arte, um torturado, que vivia acicatado pelo anseio de perfectibilidade, sempre em demanda do que merecesse ser publicado, O que obrigava a riscar, emendar, rasurar, ressalvar e refazer não se sabe quantas vezes um mesmo poema, daí a deplorável escassez da sua produção poética".

Ilustração de carlos Merreiros (fragmento).

Luís Gonzaga Gomes

Notícias de Macau, 11 de Fevereiro de 1962

"A figura central deste tríptico foi o poeta Camilo Pessanha, figura estranha e popular nesta Colónia, onde viveu uma grande parte da sua vida, que o ilustre conferente definiu como sendo a sua própria caricatura: magro, confrangedoramente magro --, o arcaboiço derreado, as pernas a dobrarem-se-lhe pelos curvilhões, o passo arrastado e miudinho...; a rabona do fraque ao dependurão; as calças mais compridas que as pernas, refegadas sobre os tornozelos; a sua barba espessa de muçulmano; a roupa a dançar-lhe no corpo, na qual se poderiam estudar, como num mapa-mundo, pela variedade das nódoas, todos os acidentes da orografia terrestre... Uma larga flor, repolhuda e fresca, na botoeira da lapela... e um cumprimento rasgado, espalhafatoso, grande estilo à século XVII..."

O Eco Macaense, 7 de Maio de 1932

"A sua indumentária era sempre a mesma; como estávamos no verão, uma camisola decotada e sem mangas, que tinha sido branca, e um lençol sujo com que cobria as pernas até à barriga. E era sempre na cama que recebia todos que ali iam. Dava impressão de que era um esqueleto que se movimentava por artes mágicas, onde nos olhos, apesar de ser vesgo e terem cor diferente, mantinha todas as suas energias, falando sempre com certa eloquência. Foi assim que o grande escritor Blasco Ibañez, acompanhado do governador Dr. Rodrigo Rodrigues, a quem pediu para visitar o poeta Camilo Pessanha, o foi encontrar."

José de Carvalho e Rego

Notícias de Macau, 11 de Fevereiro de 1968

"Durante a sua longa vida em Macau não houve jurisconsulto que o igualasse: ele foi sempre a palavra última, como tal tida e como tal respeitada por colegas e magistrados, se bem que porque, indolente, indisciplinado no viver e de modos nem sempre sociáveis, não teve nunca grande clientela."

Ilustraç ão de Carlos Marreiros (fragmento)

"Nos seus discursos forenses, se bem que lhe faltassem alguns dotes oratórios, era completo na análise das questões, que escalpelizava, como um professor em uma sala de anatomia, até lhes deixar a nú todos os músculos, todos os nervos, todas as fibras.

"E, se forte no direito se sentia, depois de, com argumentos jurídicos, derrubar o adversário, não hesitava em recorrer por último, como um felino, à crueldade, esfrangalhando-o com sarcasmos, correndo-o a pontapés - e isto dito por tais palavras e feito com tais modos, que a sua vítima, para não se tornar mais ridícula, o encarava, não com hostil sobrecenho, mas como que contente e agradecida: morituri te salutant."

Silva Mendes

Ideia Nova n. ō13, 18 de Março de 1929

"Pessanha desembrulhou o livro, que reconheceu, e em seguida abriu a carta para a ler.

"Leu-a de fugida, e ia a colocá-la junto do livro, quando, pondo-a de novo diante dos olhos faiscantes, releu a parte final dela e subitamente arrebatado, a lançou para longe, com violência.

"Não entendi aquela súbita mudança. Vi-lhe o corpo inteiriçar-se e reparei na sua fisionomia vincada pela cólera.

"Não eram habituais nele estas atitudes. Eu conhecia o poeta havia alguns anos já, e reparava que as frequentes reacções violentas do seu feitio de homem profundamente emotivo, exteriorizava-as em ironias e mordacidades que traziam fogo, mas eram desacompanhadas de gestos que denunciassem comoções."

O Homem do Chapéu Verde

A Voz de Macau, 18 de Abril de 1944

"A sua cultura jurídica era vastíssima e, servida pela extraordinária inteligência de que era dotado, fez dele o advogado de muitos advogados que, ao cair da tarde, e fora das vistas do público, iam consultá-lo sobre as causas mais insignificantes.

"A sua vaidade, então, tocada pela ignorância de alguns colegas, levava-o a dizer aos amigos estranhos ao assunto, no dia seguinte:

"-Lá foi ontem mais um. Mas que aprendeu esta gente? Não sabem nada de nada, nem fazer um simples requerimento, porque não sabem escrever."

"Orava mal, com dificuldade, intercalando as frases com um vagido gutural que lhe saía da boca escancarada, ornada de restos de dentes enegrecidos pelo fumo do ópio.

"As suas gargalhadas, que soltava a propósito de tudo e de nada, eram satânicas, e a sua fisionomia estranha e macabra impressionava pela barba hirsuta e por um estrabismo impertinente que nunca permitia que se soubesse para onde olhava...

"Punha em dúvida a honestidade, a probidade e a competência de todos, e principalmente dos colegas, com tal desfaçatez que, por vezes, se viu em situações difíceis, chegando a ser agredido pelo Delegado da Comarca, Dr. Lencastre da Veiga.

"Certo da impunidade, que o seu físico lhe garantia, era irreverente a ponto de chegar à insolência, retratando-se e desfazendo-se em desculpas, logo que se visse em risco de ser castigado, como muitas vezes merecia.

"A sua distracção e desprezo absoluto pelo traje, faziam com que quase sempre se apresentasse ridiculamente vestido, sendo vulgar calçar uma meia verde, por exemplo, e outra branca.

"Conheci-o durante anos e anos, sempre com o mesmo chapéu 'panamá', que deveria ter sido branco, mas que chegou a ser objecto imundo, da cor dos seus dedos - âmbar escuro -, queimados pelo cigarro e pelo ópio.

"Em casa, no verão, era vulgar receber os amigos de mais intimidade, sem o que quer que fosse que lhe cobrisse o corpo, estendido sobre uma cama sempre desfeita, cheia de processos, de farrapos e de cães, que dizia serem os seus melhores amigos.

"Sob o efeito do ópio, que fumava quatro e cinco vezes por dia, quedava-se absorto, estendido sobre o leito, como um feixe de ossos envolto em engelhada e sarrosa pele pálida, parecendo um defunto que aguardasse mortalha.

"Não conhecia horas para o que quer que fosse e, assim, nunca comparecia a tempo nos julgamentos, nas aulas, na Conservatória, ou em quaisquer reuniões para que o convocassem.

"O relógio, que sempre o acompanhava, chegava a estar parado por dias e dias."

Francisco Penajóia

Renascimento, vol. 4, n. ō 4, Outubro de 1944

"Camilo era conhecidíssimo e estimado entre os Chinas, que o rodeavam muito pela rua quando passava, e ficavam com ele a papaguear nessa multimilenária língua dos Celestes, que, com ficar monossilábica, se enriquecera todavia de um elemento prosódico, os tons, que não tem correspondente em nenhuma outra língua, e é de alto valor oratório e poético, como ouvi a Camilo."

"Antes da tarde marcada para a nossa visita ao seu museu, procurei matinalmente o Camilo no seu vasto casarão antigo, que quinze familiares seus, todos chins, e como família, animavam pachorrentamente e filosoficamente. Levado logo cerimoniosa e silenciosamente para o seu quarto, como o «grande amigo», fui encontrá-lo ainda enconchado no seu leito espartano, aliás americano, de ferro e arame, de estudante desarranjado e dorminhoco. Parecia assim, sonolento e de joelhos à boca, uma folhecazita encarquilhada e amarelecida de salgueiro ao cair da folha.

Ngan Yen, a "Águia de Prata", companheira de Camilo Pes-sanha (Foto publicada na "Revista de Portugal", Novembro de 1940).

"Diante da janela toda aberta, um Buda doirado de bronze, cujo rosto extático vagamente sorria, numa expressão de transcendente serenidade.

"Dois pivetes ardiam de leve em frente da janela aberta, com um aromático fumo alvo de pau de aguila, o incenso do maravilhoso templo de Angkor, e de todo o Extremo-Oriente ritual.

"Subia à janela um ramo em flor da linda Aglaia da China.

"Os pivetes ardiam devagar ante a luz, em homenagem da terra e das almas, como depois me disse Camilo, ao Desconhecido.

"Sem ruído dos seus sapatinhos negros de seda altamente feltrados, airosinha e senhoril, de negra trança enrolada, muito lustrosa de óleo de camélia, calcinhas estreitas de seda azul, cabaia de seda negra como os sapatos, Same-Khun entrava cerimoniosamente com a bandeja lacada do chá para mim, o amigo de Camilo, e a divina droga para ele.

"A bolinha negra, levemente amolecida e incendida à chama de álcool, entrou a fumegar no longo cachimbo popular de bambu, preparado silenciosa e pacientemente por Same-Khun, e a esparzir no quarto a acre emanação da sua magia de Além--Mundo.

"O Camilo fumava a longos haustos caladamente, e reanimava-se pouco a pouco como se o tocara vara de condão.

"Ficou outro, cheio de vida, de alegria expansiva. Rapidamente se vestiu, e viemos ambos almoçar com minha mulher ao Hotel da Boa Vista de que também era comensal.

"Voltámos a sua casa todos três, ainda na animação esfuziante, na euforia física que lhe dera o ópio da manhã (...)"

"E não era já o mesmo Camilo do passado, o mesmo Camilo de Macau. Na carência do ópio, difícil de adquirir em Lisboa, Camilo recorria ao álcool, et quel démon est plus terrible que l' alcool?, como disse Baudelaire a propósito do pobre Edgar Poe.

"O trabalho contínuo do meu tribunal absorvia-me. Não tinha tempo de o acompanhar nos seus passos de noctâmbulo até horas mortas pelos cafés ou botequins da Baixa, a começar pelo da praça do fundo da Rua do Alecrim.

"A excitação frenética dos cocktails e dos grogs empolgava-o, e se ficava sempre cintilante de espírito, de graça, de inteligência crítica, diziam-me que por vezes era percuciente a sua ironia, como que demoníaco o rictus do seu sarcasmo. Só a sua China podia dar realmente serenidade e equilíbrio aos seus pobres nervos exasperados de escorchado vivo, de crucificado."

"Camilo fez em todos os que o avistaram ou pessoalmente trataram no Extremo-Oriente uma profunda impressão.

"Quase já só alma, docemente irónico e bondoso, emaciado até ao extremo, de grandes olhos escuros e ardentes, a longa barba negra resistente ao encanecimento, era já então no Extremo Oriente português uma figura de lenda mística bizantina, de génio poético e inspiração alta, que a imaginação oriental prenderá um dia, para as bandas da Gruta de Camões a algum rochedo pensativo e solitário, arrostando desgrenhado de algas e indiferente ao tumulto e à fúria delirante dos tufões."

Alberto Osório de Castro

Atlântico, 1942

"De facto, havia em Camilo Pessanha algo de Verlaine - e ele mesmo gostava de recitar, na boémia literária, o grande poeta francês: - fazendo vida semelhante, noctívago impenitente, mas mais requintado, porque substituía o choppe de cerveja ou o absinto do Café Procope, de Paris, pelo ópio chinês e na Europa, pelo whisky escocês..."

"Estranha figura a de Camilo Pessanha! Meão de estatura, enxuto de carnes, cabeça de um 'mate' esverdeado, emoldurada numa barba negra, que ele afirmava ser idêntica à de João de Deus, mas mais lembrava - tão intensa e esquálida era -, a das personagens lendárias dos primitivos Hermínios... Uma paralisia facial imobilizara-lhe o olho direito, daí, o estrabismo que o caracterizava. De noite, aqueles olhos de um verde glauco, tinham qualquer coisa de felino - e eram, igualmente, de felino, as atitudes que assumia ao criticar, brilhante mas depreciativamente, outros poetas, inclusivé Camões e Antero... Ao longo das Ruas do Arsenal e do Ouro, noite velha, e de regresso ao hotel, parava para recitar os seus versos, que ecoavam, no silêncio da madrugada, como... Arcadas do violoncelo..."

Armando Boaventura

O Século Ilustrado, 2 de Agosto de 1952

Minha Exª Amiga e Senhora Dona Ana de Castro Osório

"Fala-me, ainda, a minha Ex. ma Amiga do breve regresso de Camilo. Estou a vê-lo, com o mesmíssimo chapelinho, as calças curtas, os nastros das ceroulas de fora, o casaquinho justo... a sair do bote e subir a rua do Ouro, Rossio, 'té ao Martinho tomar um whisky!... deve ser o mesmo de há dois anos e deixe-me dizer-lhe que tenho por ele a mesmíssima simpatia, estima e apreço. Vou estampá-lo aqui, para que a minha Ex. ma Amiga me diga depois se eu errei...

"Parece-me vê-lo assim:

... E o meu brasão?!

"Não creio que o nosso Camilo mudasse de toillette e que nos apareça, agora, burguesmente, metido num frack domingueiro, de sapatinhos de verniz, de polainas... Não! Seria ridículo. Quer ver?

... A hora do jardim...

"Não, não pode ser! O nosso Camilo tem de trazer o mesmo fatinho, as mesmas botas, o mesmo chapéu, e até... as mesmas ceroulas por causa dos mesmos atilhos!...

"Não compreendo um Camilo-caixeiro em dia de descanso semanal, bien rasé, bien poseur... incensado de violetas de Parma ou qualquer água cheirosa de perfumaria barata, meter-se num eléctrico, aí ao Campo Grande, dar um passeio de bote, tomar uma salsa e... fazer a corte à dengosa filha do patrão, dengosa e enchapeladíssima, enfarinhada e pedante!... Seria horrível assim o nosso Camilo!

"Não lhe parece? Para mim que me habituei ao seu convívio às mesas do «Martinho» ou do «Londres» entre esguios buchs e espirais de fumo... não o compreendo senão como o pintei atrás, a recitar-me, cantante, as Tatuagens complicadas do seu peito!..."

Armando Boaventura

Porto, 2 de Dezembro de 1917

(Carta inédita existente no espólio de C. Pessanha)

"De posse da minha credencial, corri ao Francforte e, poucos minutos depois, estava junto à cama onde ainda se encontrava Camilo Pessanha, de longas barbas, lendo o jornal «A Luta» com uns enormes óculos de aros negros articulados nas hastes, coisa que eu nunca vira. Correspondeu enternecido, aos meus cumprimentos, releu, na carta o meu nome e aquele com que, familiarmente me tratavam, interrogou-me acerca dos meus estudos liceais, felizmente para mim interrompidos nesse ano, mostrou--me o mais bondoso sorriso quando lhe afirmei que poderia esperar, que o levaria comigo e pediu-me, então, que o aguardasse um pouco na sala do hotel, enquanto se aprontava. Mandou-me chamar quando já só lhe faltava o colete e o casaco, que o ajudei a vestir. Sobre a camisa, pendente do pescoço, um cordão de oiro que lhe prendia o monóculo. Como lhe notei desalinhado o nó da gravata, pedi licença para o ajustar, o que me logo, sorrindo, consentiu e agradeceu, mas foi-me dizendo, da mais engraçada maneira, que, para abrandar a crítica de pecados destes, costumava trazer, pronto para mostrar, o retrato de um parente, esse janota... Devo acrescentar que ao ver assim - criança que eu era - pela primeira vez o dr. Camilo Pessanha, sem que contasse para mim, nessa altura, a grande tradição da sua personalidade e do seu nome na minha família, julguei ter visto alguém que me parecia um santo. Ainda hoje, mais de cinquenta anos passados, a impressão inicial que produziram em mim o seu sorriso, as suas mãos esguias, espalmadas, certo gemido da sua magoada voz e fragilidade da sua figura, dá-me os pontos e as linhas com que desenho, irresistivelmente, a imagem sonhada de um poeta."

António Osório de Castro

Diário Popular, 7 de Abril de 1967

"Et je m' en vais Au vent mauvais..."

"Lembram-se vocês, amigos, como ele nos dizia adeus? Era assim que Camilo Pessanha sempre nos deixava, após o encanto, por vezes bem terrível, da sua palestra, os dois versos de Verlaine substituindo-se na sua tristeza às fórmulas banais das despedidas.

"Incapaz, como sou, de, ante os que o não conheceram, saber evocar a singular figura deste grande Artista, consola-me contudo a certeza de que todos os que o amaram o estão vendo, neste momento, como eu o estou vendo, na sua magreza incomparável, na sua marcha inquieta ao longo das ruas, como folha morta que o vento levasse, em seu ar de Príncipe e de vagabundo, na sua imensa humildade e no seu infinito orgulho, e, sobretudo, na expressão dolorosíssima da sua face que, em certos instantes, era iluminada a relâmpagos de deslumbrante e sobrenatural beleza!

"Nas raras horas serenas dalgum pacífico parênteses aberto entre as crises dolorosas, o seu perfil reproduzia fielmente o perfil de João de Deus.

"Quantas vezes o fomos surpreender às mesas do Royal e do Londres, seus cafés preferidos, estrangeiro entre a estrangeira fauna que ali poisava - gente dos barcos, fumadores de cachimbo, bebedores de whisky e de cerveja -, isolado e desconhecido, a cabeça caída para trás, como que decepada, na boca um sorriso, só igual ao sorriso que costumam ter os mortos. Estava Camilo fazendo a sua toillette de cadáver, gozando sozinho e para si mesmo a imensa e terrível volúpia de não existir, dando-se a ilusão dum além-túmulo que o libertasse de todo o sofrimento!

"Descuidado da glória a que tinha direito, incapaz de cultivar por natural pobreza os vários processos de reclame que estão em uso, mantido pela própria dor numa sempre elevada atitude moral, não descendo jamais à planície literária onde ramalham os vastos tremoçais da pretensão e da mediocridade, o Poeta Camilo Pessanha levou a pompa dos seus desdéns até ao crime imperdoável de não querer bem-amar a sua própria Obra. Sirvam-lhe de perdão a fatalidade do seu desgraçado temperamento, a amargura constante da sua alma agitada."

Carlos Amaro (Frei Carlos)

Ilustração, n. ō6,16 de Março de 1926

"- De há muito conheço Camilo Pessanha. É um verdadeiro poeta e um verdadeiro sonhador. Mas é também um tímido e um misantropo. Camilo Pessanha nunca escreveu um só dos seus versos. Compõe-nos nas suas horas de inspiração, e guarda--os na memória. Só consente em dizê-los às pessoas de mais intimidade. Há tempos, tendo eu ouvido alguém recitar versos seus, deturpando-os e truncando-os sem piedade, pensei que era absolutamente necessário reunir num volume algumas das suas melhores poesias. Então, sem dizer ao poeta os meus planos, pedi-lhe que fosse ditando versos seus, pois queria guardá-los num caderno. Camilo Pessanha ditou-me algumas belas poesias. E foi assim que nasceu a «Clepsidra».

"- É curiosíssimo, na verdade. E tanto o poeta, como o público, lhe devem, minha senhora, um grande reconhecimento... Mas, naturalmente, agora Camilo Pessanha, animado pelo êxito dos seus versos, volta a publicar...

"- Ah, isso sim! Camilo Pessanha está em Macau e não dá novas de si. Creia, nele não existe, nem mesmo em estado latente, o mais pequeno desejo de glória."

Maria Fernanda

Da entrevista a Ana de Castro Osório pela escritora Fernanda de Castro, in Diário de Lisboa, 21 de Abril de 1921 e O Liberal, nº34, 30 de Abril de 1922.

"- Quando vinha a Lisboa, procurava os cafés que lhe dessem a impressão dos grandes bars de todos os cais do mundo. Um dia disse-lhe, depois de o contemplar de longe, figura iluminada de Cristo, singular, moreno, olhos devorantes, grandes barbas: Você é lindo! Ficou o espanto - o meu espanto.

"E ele:

"- Eu sou o aborto duma grande beleza!"

(Relato de Carlos Amaro)

Diário de Lisboa, 3 de Março de 1926

"É com um carinho especial que Henriqueta Pacheco Jorge Barreiros fala do seu professor Camilo Pessanha. Hoje na casa dos 80, Henriqueta tinha 16 anos quando foi aluna do Poeta.

"Ela recorda: Era um professor diferente de todos os outros. Tinha uma maneira de apresentar as aulas que nos punha mais à vontade.

"Pessanha dava as aulas ao lado dos alunos. De uma forma pouco usual para a época, sentava-se ao nível dos seus discípulos e não no estrado. Tinha sempre o «Arminho» ao colo. O seu cãozinho preto e branco era um companheiro inseparável, mesmo nas aulas.

O Padre António Maria de Morais Sarmento, que assistiu aos últimos momentos e escutou as últimas palavras de Camilo Pessanha, ditas com impressionante calma: "está tudo a acabar... tudo podridão... tudo matéria..." (Foto cedida por Luís Sá Cunha).

"O Poeta ensinava os mais variados temas nas aulas de História, tocando apenas algumas vezes no programa:... nunca passámos do Egipto! Nas aulas, Camilo Pessanha dispersava-se. Falava de tudo: das viagens, das aventuras e dos livros. A partir de um qualquer tema histórico, transformava-o num discurso totalmente improvisado, sem nunca se socorrer dos livros (...) tinha uma memória prodigiosa...

"Um Professor adorado, claro está: Nós gostávamos muito dele. Quando a aula acabava ficávamos sempre admiradas. O tempo corria tão depressa que nem dávamos por ele passar; a aula chegava ao fim, e queríamos mais (...). Embora a matéria fosse posta de lado, era um excelente professor.

"Este homem, que no Verão se vestia sempre de branco, tinha um visual curioso. No entanto, as alunas não o achavam feio, muito menos repelente: Não o achávamos feio. Ele era muito magro, tinha grandes olheiras e andava sempre curvado - mas feio não era..."

André Barreiros

Lisboa, 10 de Março de 1990 (inédito)

"Não me lembra de haver professor que tivesse conseguido dar o tempo regulamentar das aulas. Com a excepção dos doutores Silva Mendes, Camilo Pessanha, Avelar e o engenheiro Mateus de Lima, os restantes professores eram todos interinos, ou melhor improvisados, isto é, oficiais de exército, oficiais de Marinha, médicos, sacerdotes, etc..

"O meio de transporte mais usado era então o riquexó, puxado por um cule e empurrado por outro. O Lara Reis, porém, ia dar as aulas de bicicleta. Automóveis não era veículo que abundasse na cidade e dos professores do Liceu, só mais tarde, é que o Dr. Santas Almas possuía um Buick verde azeitonado, que tratava com esmerado mimo. Mas, nas mãos do seu possuidor, não valia muito como meio de transporte veloz. Este carro e o Chevrolet do saudoso Padre Sarmento eram as duas viaturas que porfiavam em andar o mais pachorrentamente pelas ruas da cidade. A paz de alma desses dois ases do volante era na verdade aflitiva. Tanto o Mateus de Lima como o Pessanha possuíam riquexós privativos. Mas, nesse tempo, em que acabavam, por iniciativa de Luís Aires da Silva, de serem introduzidos os então modernos riquexós de Xangai, de linhas elegantemente airosas, corpo luzidiamente acharoado, de rodas baixas e equipadas com pneumáticos, portanto, muito mais fáceis de serem puxados, os dois altos riquexós do Pessanha e de Mateus de Lima, com altas rodas, forradas de borracha maciça com o verniz a estalar de velho, eram, certamente, duas viaturas mais dignas de figurar num museu do que para transportar duas individualidades de tanta respeitabilidade como eram os seus donos.

"Como ainda se não tivesse registado na cidade o advento da chegada de velozes meios de transporte, não era de admirar que passasse a ser costume chegarem os professores ao liceu depois da hora e, quando tivessem de dar mais de uma aula consecutiva, ficavam, habitualmente no intervalo de entre duas aulas, entretidos na conversa, quase completamente esquecidos dos alunos.

"Pessanha chegava quinze ou dez minutos antes de se tocar a sineta para acabar a aula e, quando acontecia ser o último tempo, a tortura da fome fa-zia-se sentir, insidiosamente, pois o Dr. Pessanha só nos deixava sair para almoçar depois de o contínuo vir pela sexta ou sétima vez avisá-lo de que há muito deveria ter terminado a sua aula (...)."

Luís Gonzaga Gomes

(extracto de original do espólio do AHM)

"O que acima de tudo vai ressaltando do que colho na memória dos que com ele privaram é o traço que o define como o tipo de ser inadaptável à dimensão acanhada do nosso mundo de convenções; do homem que faz seus todos os caminhos, todas as experiências, todos os sonhos, uma vez que julgue que esses caminhos, essas experiências e esses sonhos são plano propício para o enriquecimento das suas virtualidades de homem e de artista. Considerações morais sobre a legitimidade destas vias, só as indispensáveis para que a vida lhe fosse materialmente possível. Por isso viveu sempre "à margem" -à margem da sociedade, à margem do que os outros esperavam de si, mas dentro da linha que se impusera como ser talhado para prosseguir rotas de mistério e de aventura."

"A sua distracção, o seu alheamento, a sua falta de senso prático são nota unânime dos a quem interrogo.

"Um dia, ao vestir-se para uma festa, enfiou o colete antes da camisa. Quando ia para vestir aquele não o encontrou. Grande borburinho porque o poeta tinha lá guardadas, num bolso, 'umas libras'. Meteu prisão de criados e não sei que mais. Só de volta, ao despir-se, é que o mistério se esclareceu...

O Padre Sarmento, "uma das figuras profundamente características do seu tempo em Macau" (H. Senna Fernandes), no quadro descrito por Luís Gonzaga Gomes. (Foto cedida por Luís Sá Cunha; finais dos anos 20).

"Muito poucas vezes tinha caneta de que se servisse. Na Conservatória, onde foi funcionário, parece que nada zeloso, há muitos actos, dizem, assi-nados por ele com um fósforo que mergulhava no tinteiro.

"As sentenças no tribunal, dava-as em regra verbalmente. Às vezes, só muito depois é que as reduzia a escrito, ditando-as ao escrivão. Não obstante, nunca se esquecia das circunstâncias concretas do caso, mesmo que tivesse passado muito tempo. As suas deduções jurídicas, afirmam-me, eram modelares pelo conhecimento do Direito e pela clareza do raciocínio."

Guilherme de Castilho

O Comércio do Porto, 13 de Abril de 1954

"Estranha figura que o Chiado ainda viu passar em 1916, último ano em que goza licença em Portugal, licença que ele próprio requer seja interrompida antes do seu termo, tão inadaptado se sentia já aos costumes ocidentais. De fraque, flor na lapela, um panamá sebento na cabeça, luvas e bengala, assim ele se apresentava em Lisboa, assim ele habitualmente se exibia em Macau antes de entrar na derradeira fase da sua vida, que essa a passa quase sempre deitado ('morto-vivo' lhe chamavam os chinas), um feixe de ossos, a pele sarrosa e pálida, defunto que aguarda a mortalha..."

"O padre que o viu nos últimos momentos confessaria, mais tarde, tê-lo encontrado num estado de espírito que jamais verificara em qualquer moribundo.

"E a morte não se fez tardar. Na manhã do dia l de Março de 1926 fechava o poeta os olhos para sempre, ele que os tinha há muito já cerrados para a podridão e a miséria que o rodeavam, na cama onde por tanto tempo vivera entre a realidade e o sonho. Não o faria, porém, sem deitar a língua de fora às convenções deste mundo. Certo de que teria um enterro oficial, professor do liceu que fora e seu reitor, juiz de Direito, advogado no foro local, prestigioso sinólogo e habituado a assistir ao saimento pomposo das outras personalidades locais, quis precaver-se pelo menos contra um dos números obrigatórios do programa. Eis por que, depois de consignar no testamento que pretendia que o seu enterro fosse o menos dispendioso e aparatoso possível, exige que não seja acompanhado de música. Porquê tal recomendação? Porque fazia parte de todos os funerais solenes de Macau a banda dos alunos do colégio católico da província. Ora o poeta, fina sensibilidade musical, preferia o silêncio ao fungagá dos metais soprados pelos meninos chinas. Obrigado a ouvir ainda, nessa pátria ideal onde o melhor enfim é não ouvir nem ver, os discursos oficiais, pelo menos não ouviu a desafinação agressiva da charanga implacável."

Campa de Camilo Pessanha, seu filho e nora, no Cemitério de S. Miguel Arcanjo em Macau.

João Gaspar Simões

O Primeiro de Janeiro, 30 de Novembro de 1969

"Os últimos momentos passou-os falando no enterro. Não queria ser transportado no carro funerário de Macau: embirrava com essa carripana. Desejava ser conduzido num armão de artilharia e por soldados, o que dizia, talvez não fosse difícil conseguir, visto ter sido frequentemente auditor no Tribunal Militar de Macau. Pobre Camilo Pessanha, bem fácil foi dar satisfação ao seu desejo! E sobre dois pequenos armões, de peças japonesas, assim se efectuou a última jornada de um dos mais curiosos espíritos, de um dos maiores, dos mais preciosos poetas portugueses."

A. de Albuquerque

Diário de Lisboa

"Peço-te desculpa de há mais tempo não te ter escrito, quando nas cartas para a tia tanto te interessavas pela minha sorte - o que há-de ser do Camilo? Não é ingratidão, bem o sabes, mas esta tristeza que me vem das pequeninas misérias, das restrições deprimentes da vida, e da minha própria fraqueza, que me condena a um isolamento, em que por mim próprio me vou afundando sem remédio, não respondendo sequer às cartas dos amigos.

"E compreendes bem que umas cartas que escrevi logo que cheguei a dizer da minha satisfação não representavam, além do relativo bem-estar que traz sempre aos meus nervos a mudança de paisagem, senão, convenço-me agora, um desejo momentâneo de me iludir e de iludir os outros. "

Camilo Pessanha

Carta a seu primo José Benedito,

Óbidos, 9 de Agosto, 1893

"Por meu pai deverás ter sabido do estado lastimável a que cheguei. Parti de Macau sem esperança de arribar a este torrão das minhas saudades, ao qual exclusivamente a minha alma pertence, como bem sabes. Os ossos, mesquinhos, ai de mim!, esses pertencem, por um destino invencível e absurdo ao chão antipático do exílio. Tantas vezes o tenho dito: quanto eu desejaria vir a morrer aí, nessa velha e afectuosa casa de Marmelos de caquexia como o D. Roberto!...

"O desejo, porém, de ainda me tornar a sentir entre as coisas e as pessoas amadas nunca foi tão veemente como quando um médico em que eu acreditava me declarou que eu nunca mais poderia ter forças bastantes para a viagem de regresso. Hoje pasmo da energia de desesperado que me fez levantar da cama onde estava havia cinco meses, e embarcar; e pasmo da resistência deste meu pobre corpo enfermiço, que foi capaz de vencer os quase quarenta dias de viagem penível, sem médico, sem tratamento, sem dieta, sem enfermeiro, ou, sequer, uma pessoa amiga ou simplesmente boa que por mim olhasse..."

Camilo Pessanha

Carta a seu primo José Benedito, 1905

"A força que eu tenho em mim depois de cinco ou seis dias de Portugal! Sinto a vida a subir-me da terra pelos pés. Se não fosse constantemente andar, já estava transformado em velho carvalho.

"Amanhã estou em Lisboa, a tratar da licença da junta, depois de amanhã vou ao Arelho ser moído pelas ondas vivas contra as pedras vivas. E depois irei a Mouronho rachar lenha, irei a Lamego, irei a São Pedro de Val do Conde jogar o pau - irei andar com ciganos e com contrabandistas e com assassinos (eu tenho um grande amigo, que ainda resta da quadrilha do João Brandão) pelas feiras e pelas romarias. "E daqui por seis meses, toca outra vez para o buraco."

Camilo Pessanha

Carta a Alberto Osório de Castro, 1896

"Mas falta-me energia para dar ainda outro rumo à vida. No estado de exaltação impotente a que me levou a implacável opressão de fatalidade, em um trabalho contínuo de tantos anos, um só desejo, uma única esperança, ficou de pé entre os escombros de todas as bem modestas felicidades que conheci: fugir, fugir sempre, de um lado para o outro, até que a morte me recolha."

Camilo Pessanha

Carta a Alberto Osório de Castro, 1908

"Não lhe escrevi até hoje porque desde que embarquei ainda não escrevi a ninguém. É este estado de cabulice em que por longuíssimos períodos irresistivelmente me deixo cair - e que me consente trabalhar em processos, que me consente ler livros e estudar chino -, tudo enfim que seja distrair a atenção e fatigar o espírito - mas me inibe por completo de me dobrar um momento sobre mim mesmo para escrever uma carta.

"Aqui cheguei, a 21 de Maio, e por cá vou indo menos mal. Ao menos tenho o tempo quase sempre ocupado, e nas horas vagas entretenho-me a ler. Aí nem isso: vivia em um estado de exaltação convulsiva que não me deixava o repouso bastante para poder seguir com alguma curiosidade duas linhas fosse do que fosse. E o mesmo a bordo. Acredita que passei essa viagem de mais de cinquenta dias amadornado em uma cadeira, sem poder tragar nem Ruben Dario - cujas obras tinha comprado em Barcelona?"

Camilo Pessanha

Carta a Alberto Osório de Castro, 1918

"P. S. - Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca... Ir assim, a bordo de um navio, sem destino.

"Veja com o destino varia. Nos últimos dias de Lisboa, o terror que verdadeiramente me oprimia era este mar morto da viagem, entre dois abismos tão distantes um do outro, e no fundo de cada um dos quais a minha alma perpetuamente agoniza."

Camilo Pessanha

Carla a Carlos Amaro, Janeiro de 1909

"Adeus. Esta monótona vida de bordo entorpece, embrutece. Demais, tem havido hoje um pequeno balanço que me tem muito mal disposto do estômago e da cabeça. E o pior é a dor latente que há no fundo deste torpor. Os paralíticos devem sentir uma dor contínua e surda aproximadamente assim..."

Camilo Pessanha

Carta a Carlos Amaro, Fevereiro de 1909

"- Adeus, meu querido amigo. De Macau lhe direi a permanente dor surda da minha alma, dor quase adormecida enquanto os meus olhos se distraem, de dia nos espectáculos em que vão repousando; mas que se vinga de noite (nestas noites horríveis de calor, desde Singapura) em pesadelos atrozmente aflitivos, de que acordo gritando, dorido, exausto, com a cabeça alagada em suor. Na noite de anteontem para ontem foi uma angústia em que altercávamos eu e meu irmão Francisco, que por vezes era meu irmão Manuel, e em que eu tinha os braços presos. Os braços presos, era a constante referência de todos os meus terrores..."

Camilo Pessanha

Carta a Carlos Amaro, Fevereiro de 1909

"Posso bem dizer que tenho dentro do coração um altar com três ou quatro imagens, e que diante dele passo a vida em ininterrompido êxtase. Fora dessas poucas afeições (uma delas sabe V. Ex. ª que é toda a pavorosa agonia da minha alma; de outra está em um soneto, que julgo V. Ex. ª ama, a síntese trágica) nada verdadeiramente e para mim tem realidade no mundo - por onde tenho passado como um sonâmbulo."

Camilo Pessanha

Carta a Ana de Castro Osório, Novembro de 1966

"Eu próprio fui à estação postal, registar tudocom aviso de recepção, visto que, segundo a informação dos jornais, esses mares ocidentais estão pouco seguros -; e, de regresso a casa, deitei-me, segundo o costume, ao comprido - perinde ac cadaver - a remirar-me no bom acabamento da obra feita. Naturalmente, enquanto Águia de Prata (em breve mandarei ao Sr. Trindade Coelho um retrato da pobre bicheza) ia preparando e dando-me a aspirar o inefável tóxico consolador produzia-se pouco a pouco em mim esse delírio lúcido, característico, dizem, da intoxicação pelos hipnóticos, em que, sem se perder a consciência da situação em que se está, se evoca no espírito, com absoluta fidelidade e perfeita nitidez, uma outra situação, em outro lugar ou em ou-tro tempo, como se se vivessem simultaneamente duas vidas, muito distantes uma da outra. A imaginação, já se vê, transportou-me para aí, para a agitação estéril desse meio lisboeta, para esse tumulto, agressivo e vão, por entre o qual andei a ser amachu-cado e sovado durante cinco angustiosos meses. Vieram todas essas figuras delirantes, de segundo plano, que sustive melhor ocasião de conhecer: o Braga da peça, os olhos, aflitivos de demência, do Américo de Oliveira, o Rocha corticeiro, o Burnay dos camochos, o caricaturista, o poeta Antunes Belo, o judicioso Solano; e mais a formiga preta, e a formiga branca, e os elementos civis, e os redentores da Ilíria, e os Adelaides, e os da Nutrícia e a apoteose patriótica do Dominó, e o paneleiro do Diabo a quatro..."

Camilo Pessanha

Carta a Henrique Trindade Coelho

Novembro de 1916

Ilustração de Victor Hugo Marrciros (técnica mista)

1 Quando na rua encontrava algum desses indesejáveis, dizia-se que lhes fazia um cumprimento especial, muito reverente, levando o chapéu ao coração, o que significava que os remetia, cordialmente, ao diabo. Seria um esconjuro classificável de Sympathetic magic segundo James Frazer (The Golden Bough).

2 Tinha num dos olhos (parece-me que o direito) uma névoa que quase o cegava e no outro, em que usava monóculo, uma visão também deficiente.

desde a p. 11
até a p.