Centenário

VIEIRA DA SILVA
O LABIRINTO E A DÚVIDA

Guy Weelen; José Sommer Ribeiro

A pintura de Vieira da Silva, quaisquer que sejam os parâmetros em que se situou, ao longo do tempo, parece ser obra de uma artista independente. Quer estivesse em Portugal, em França ou no Brasil, Vieira da Silva seguia o seu percurso independentemente das grandes correntes com que deparou ou atravessou. Há no seu íntimo uma incapacidade de adaptação depois de se ter convencido, sem romantismo, de que deve trabalhar no silêncio, longe do bulício da sociedade. Em sua opinião é o público que deve ir ao encontro do artista para tentar estabelecer um diálogo e nunca o artista ao encontro do público. De começo, estudos atentos, uma vontade. Frequentemente afirma: "Eu não era dotada, mas obstinada".

Paris 1928 - o sentido da responsabilidade (a pintura é uma tarefa difícil, demasiado séria em que se arrisca a vida) uma viagem a Itália de onde regressa maravilhada com Piero Della Francesca, a pintura de Siena, os "efeitos da boa e má influência" de Ambrogio Lorensetti (1337-1340), e, sobretudo, o fresco premonitório de Simone Mattini e Guidoziccio da Fogliano(1328).

Egypte,1972

1929-1930 - Dois princípios parecem conduzi-la: reduzir as coisas à sua estrutura, dizer o máximo com o mínimo possível de meios. O mais depurado conjuga-se com o mais sóbrio. Dar às cores uma ressonância que por vezes a aproxima de Georges Rouault (as paisagens de Sintra, o violoncelista, etc...). Com esta simplificação pensa ir além da representação, deseja escapar ao sentido restrito das coisas. Começa a tentar a sua travessia das formas. De trabalho em trabalho, de estudo em estudo, segundo a sua apreciação dos óleos e gouaches desta época, passa da forma humana à forma dita geométrica. Uma geometria que nunca poderia ser rígida porque deformada pela força de uma emoção onde se insinua um temor, que procura esconder.

Percurso mais hesitante que caótico, porque Vieira da Silva é a vítima da dúvida. É assim que começa a elaborar o seu estilo influenciada por algumas obras de Torres Garcia que vê em Paris e que jamais esquecerá.

Por ordem cronológica: o Cubismo impressiona-a muito. Aprecia as formas semelhantes às figuras elementares da geometria, as engrenagens, os desmembramentos, os ritmos percucientes, as facetas subtis que correspondem assim à visão de uma sociedade à beira da industrialização. Do Futurismo, mais através de Marcel Duchamp "Le nu descendant un escalier" (1911), do que através dos Italianos, frequentemente demasiado demonstrativos, ela retém talvez uma dinâmica constante e nunca a análise do desenvolvimento da trajectória de um corpo no espaço. Do Simultaneísmo encarnado por Robert Delaunay, que nada tem a ver com o Futurismo com o qual o querem confundir, e logo Apollinaire, apenas o tempo de um quadro: "La machine optique" (1937) que para ela representa um estudo onde analisa o movimento das cores. Do Surrealismo, não subscreve nada da parte visível desse iceberg de escrita precisa, de técnica apurada, revista e corrigida por Messonnier, e quase nada da parte submersa, no sentido em que Vieira da Silva assume a alquimia da imaginação e recusa, não o inconsciente, porque é demasiado subtil para o ignorar, mas a sua influência na conduta dos homens, os seus poderes nas suas invenções. No essencial detém-se na filosofia antiga, particularmente na dos Estóicos, que descobriu quando era jovem. Encontrou as chaves que abrem essas portas.

Foi-lhe revelada, talvez por Torres Garcia, a importância das estruturas que a sua argúcia de portuguesa logo assimilou. Bonnard continua a confundi-la pela sua estratégia da cor. Por fim, do Impressionismo, o grande libertador da pintura desde o Séc. XIX, Vieira da Silva absorve a luz, que persegue constantemente de quadro em quadro, porque esta corresponde à sua luz interior, que lhe é tão necessária como o ar e, a seu ver, poeticamente redentora.

Vieira nada reteve do Expres-sionismo, qualquer que fosse a sua origem.

Impregnada das suas vivência anteriores (Suíça, Inglaterra, Portugal, França), e pela força das recordações e da nostalgia que a estimulam, foi-lhe vedada a procura de novas características nacionais. A vida interior prevalece sobre os acidentes da vida quotidiana. Embora aceitando que pudesse sofrer influências ou sugestões, a realidade histórica, ideológica, étnica e social pareceu-lhe, apesar do seu peso de sofrimento humano, demasiado frágil e aleatória para invadir e ocupar o domínio da sua expressão artística.

Mesmo se não tivesse havido a Guerra, seria possível imaginar que Vieira da Silva tivesse pintado dois quadros intitulados "Le desastre" (1942) e "Le Calvaire", (1943) que representam para ela, não só o horror da guerra, mas o horror de todas as guerras. O seu território é e será sempre este "Atelier" (1940), onde personagens fantasmagóricas, desertoras da cidade mas não da vida, quase desaparecem, procurando assim diminuir a tradicional separação entre a forma e o fundo.

"La Forêt des Erreurs" (1941) é uma observação que se compadece do irrisório da condição humana. Aqui a forma chega a afundar-se num espaço atormentado de tensões.

É um universo em que a verdade constantemente interrogada jamais poderá ser atingida, ao contrário daqueles que se empenham em fazer crer que são os seus únicos detentores.

Assim, como um eco, como por ricochete, aparece na obra de Vieira da Silva a presença da história. Nela perde a sua evidência. Uma angústia pessoal permite-lhe dar um sentido mais geral, mais amplo. Daí retira uma lição, uma moral. Nelson Aguilar está certo quando afirma que o rasto que ela deixou no Brasil é, sobretudo, de natureza ética. A oposição entre as pinturas figurativa e abstracta nunca representou para ela um verdadeiro problema. Vieira da Silva passou várias vezes da figuração ao espaço, mesmo quando em sentido inverso. Uma figura, tal como uma forma, deve gerar o seu próprio espaço, mesmo que uma e outra desencadeiem sensações que provoquem ideias diferentes.

O erro na interpretação consiste em referir uma com os termos apropriados à outra, e vice-versa. Uma maçã é, antes de tudo, um círculo, uma oval pode ser uma compoteira, uma garrafa nada mais é senão uma linha vertical. Os significados encaixam-se uns nos outros, são permutáveis. Mas para nos apercebermos desse facto foi preciso esperar por 1910.

Naturalmente que o espírito de Vieira da Silva é refractário à cópia, à aplicação das ideias admitidas por princípio.

Gosta de se compararao cão de circo que durante o seu número se compraz em desobedecer. É devidoàs inclinações particulares do seu espírito que cruza o caminho de Mário de Andrade para lutar contra a autoridade do Estado Novo, mas nem a argumentação nem o percurso são os mesmos.

É certo que se não se tivessem dado os cruéis acontecimentos que ocorreram, entre 1940 e 1947, ela não teria podido accionar os meios de que se soube munir. O problema coloca-se à altura do estilo. A concepção do tempo tinha mudado: perdeu a sua continuidade em benefício da descon-tinuidade. O tempo não decorria, quebrou-se. O próprio espaço tornou-se energia. O modo como o mundo tinha sido concebido era inoperante, era preciso imaginar um outro e reformá-lo.

Seria demasiado longo enumerar os artistas, tanto no campo literário como no da pintura, que foram os primeiros a lançar-se em análogas tentativas. Consciente ou inconscientemente, os artistas dessa geração sentiam-se mais ou menos autorizados a realizar as suas pesquisas, depois de terem sido abando-nadas pelos seus predecessores.

Foi-lhes necessário escrever com as palavras e as cores habituais um discurso novo, uma maneira diferente de representar o mundo, daí extraindo, segundo a sua psicologia, a parte de "realidade" que era a sua.

O fim procurado era nada me-nos que uma outra exploração do mundo para trazer essa realidade à luz do dia. E é sabido que o mundo responde consoante as perguntas que lhe fazem e o modo como são postas.

O perigo que não se conseguiu evitar foi o esoterismo, a percepção difícil. As reacções entre os jovens artistas foram rápidas e radicais. A negação foi o princípio da sua reacção. O público, primeiramente surpreendido, acabou por se interessar. Hoje, muitos já têm os olhos abertos.

Se considerarmos os vários pintores que durante esta viagem lhe fizeram companhia, verificamos que eles não navegaram no mesmo barco.

Metropoliano,1989-90.

A figura humana desapareceu da sua pintura, no entanto em "Les Gens" (1962) estão lá, bem vivas, agitadas, por vezes mesmo ruidosas. Nunca respeitou minimamente a aparência sacrossanta que a maior parte dos pintores se esforçou por manter, à custa de mil artifícios, inventando mil definições para evitar os efeitos da perspectiva. Explorou o império dos sinais para os utilizar em montagens especiais, onde os símbolos são ambíguos. Os atractivos do sonho descrito ou transcrito não exerceram o seu fas-cínio sobre ela, enquanto que muitos outros se convertiam a esta nova religião. Depois de alguns poetas da Antiguidade, no campo das artes plásticas Vieira da Silva actualizou, e utilizou depois, certas figuras linguísticas, entre as quais a metáfora,que reside no coração da poesia. O espaço, nas suas mãos, tornou-se um campo de forças onde se dão curto-circuitos e chispam faíscas.

A sua pintura foi buscar as formas à música desprezando as matemáticas.

Pintura difícil, misteriosa mesmo, não pela história relatada mas pelos meios utilizados.

Entre 1940 e 1960, foi proposta por esta geração uma visão do mundo que é ainda rica em investigações a realizar.

Constantemente surgem, a si própria e ao público, numerosas interrogações que, por momentos, ficam sem resposta.

É assim que, no campo cultural, Vieira da Silva tem sempre um princípio revolucionário, afastando-se dos dogmas adquiridos e ensinados e substituindo-os por outros.

A obra gravada de Vieira da Silva retoma o seu lugar no conjunto das realizações da artista sem perturbar o seu percurso nem modificar o seu significado.

As técnicas da água-forte, do buril, da ponta-seca, experimentadas em 1929, no Atelier 17, dirigido por Haytr, são interrompidas por um longo período. O buril reaparece em 1960, com a realização de 25 gravuras de "L'lnclémence Loin-taine". O mesmo se passa com a litografia, em que a primeira data de 1948, reaparecendo verdadeiramente em 1961, após algumas experiências que deixam Vieira da Silva insatisfeita.

Faz serigrafia apenas durante o tempo de realizar uma importante série, tanto por sugestão de Pierre Loeb como pela amizade a dois jovens artistas portugueses.

As diversas técnicas que utilizou, apesar de terem características específicas, não modificaram a sua criação.

Encontra-se sempre no cruzamento das mesma latitudes e longitudes - Bibliotecas, Labirintos imaginários, Cidades, Estações, Jardins, Azulejos - que surgem como em qualquer outro lugar, sob diversos títulos, tendo passado pelas mil transformações que lhes são imprimidas por uma imaginação espontânea nas suas variações.

É o mesmo que dizer que o significado-a descrição do tempo, a sugestão espaço- parece ser uma preocupação constante e privilegiada da artista.

Estes textos são extraídos do catálogo da exposição de gravuras de Vieira da Silva, realizada pelo ICM em Janeiro de 1991. Os títulos são da responsabilidade da Revista de Cultura.

Le Vieux Lisbonne,1988.

desde a p. 179
até a p.