Poesia

MANUEL DA SILVA MENDES HISTORIADOR DO SOCIALISMO LIBERTÁRIO
(apresentação de uma obra desconhecida)

António Aresta*

Nos primeiros trinta anos da história contemporânea de Macau, agiganta-se a figura de Manuel da Silva Mendes mercê da sua porfiada intervenção cívico-política, da sua adesão à metafísica da perflexidade superiormente modelada na poética do tauísmo e da apurada sensibilidade com que dissecou as características nucleares da arte chinesa.

Para completar o retrato desta voz solitária, há, ainda, as magnas tarefas educativas em que se viu envolvido como professor e as actividades estritamente forenses, decorrentes da sua situação de advogado.

Quis o acaso que Macau fosse o porto de abrigo para a errância intelectual e psico--afectiva de dois outros grandes vultos da literatura e da cultura portuguesas, como o são Venceslau de Morais e Camilo Pessanha. E esse acaso coloca no mesmo palco, acanhado e provinciano, esses três actores da vida, da cultura e do espírito, que protagonizaram fortunas diferentes. Só a grande dispersão, de objectivos e de interesses problemáticos, dos investigadores da cultura portuguesa, particularmente em Macau e no Oriente em geral, é que poderão explicar, de algum modo, o silêncio ou a indiferença a que foi votada a sua obra e o seu pensamento.

Constata-se, também, que a temática da cultura portuguesa no Oriente tem sido um monopólio da história-crónica, sendo, incompreensivelmente, escassas as abordagens económico--sociais ou as perspectivas que valorizem o estudo compreensivo das mentalidades. Razão teria Karl Popper para denunciar as misérias de algum historicismo, começando por pôr em causa a celebrada ideia hegeliana do espírito da época. E se a história se constrói dentro dos parâmetros, extraordinariamente dinâmicos, dos factos sociais totais, de acordo com Marcel Mauss, parece razoável inferir-se que a linhagem das ideias e do poder das ideias se incompatibilizam com quaisquer espécie de subsídios exegéticos, meritoriamente redutores. É que, do visível e do dizível ao noético, vai toda uma platónica alegoria da caverna. E é nesta ordem de ideias, que poderemos inscrever o pensamento, fundado, de Henrique de Senna Fernandes, quando diz que,"a cidade nas pri- meiras décadas deste século que já teve o seu retrato na obra de Manuel da Silva Mendes, observador arguto, crítico contundente, reverente apaixonado de arte chinesa, cultor e poeta do taoísmo. Um perfil de homem público e de letras, injusta e inteiramente desconhecido pelos portugueses de Portugal, mas que está no coração e na admiração dos macaenses, muito mais, e a grande distância, do que Wenceslau de Morais ou Camilo Pessanha"(1).

Dentro deste rumo, move-se também a intuição de António da Conceição Júnior: "os seus escritos podem complementar o que dele se disse, mas são, fundamentalmente, uma matéria extraordinariamente rica para todo aquele que, lendo Português, se não quer limitar, em Macau, a ser um transitório pobremente enriquecido. O sortilégio existe. Basta querer descobri-lo. Que o digam os escritos de Silva Mendes e a distância de cinquenta anos"(2).

E se a figura e a obra de Manuel da Silva Mendes beneficiam de esporádicas referências valorativas, emocionais ou de indignação pelo seu olvido, isso deve-se principalmente à no-tabilíssima intervenção de Luís Gonzaga Gomes, antigo aluno, amigo e admirador que, com uma paciência beneditina, fez republicar os seus escritos no jornal "Notícias de Macau" coroando, posteriormente, essa actividade pedagógica com a edição de diversos volumes intitulados "Colectâneas de Artigos".

Apesar do porfiado esforço de Gonzaga Gomes, continua a ignorar-se o paradeiro do manuscrito que deveria dar corpo ao anunciado segundo volume dos "Excerptos de Filosofia Taoísta", o que não pode deixar de lamentar-se.

Acresce, ainda, que foi deliberadamente destruída, numa tipografia católica, uma obra irónica e corrosiva dedicada à sociedade macaense, em nome de uma moral hipócrita e duvidosa, émula da censura inquisitorial. Contudo, até aos nossos dias, há um imenso vazio apenas preenchido por algumas notações ou referências, tão breves quanto interessantes (3), o que é compreensível se atentarmos no pluralismo da dispersão temática nas investigações dedicadas à cultura portuguesa no Oriente.

Este pequeno estudo,'work in progress', realizado no âmbito de um projecto de investigação dedicado às ideias de Manuel da Silva Mendes, sob os auspícios da Fundação Oriente, pretende apresentar, de um modo sumário, uma obra esquecida e fundamental, ("Socialismo Libertario ou Anarchismo: história e doutrina", de 1896), e ao mesmo tempo indicia algumas referências problemáticas e metodológicas.

Em todas as transcrições foi, sempre, respeitada a ortografia original do autor.

(...) Dos três chefes, passava eu, no público, por ser o mais vermelho. Os meus inimigos políticos iam mais longe. Para me prejudicarem casamento com menina de boa (rica)família, apontavam-me como anarquista... perigoso, muito perigoso... e ateu!"(4).

Esta impressiva recordação contém alguns fumos de verdade, anteriores, mesmo, à sua colaboração na imprensa política regional. Será útil e interessante traçar uma breve perspectiva, centrada nos vectores ideológico-filo-sóficos, da realidade portuguesa até à sua entrada para a Universidade de Coimbra.

Em Portugal, desde a segunda metade do Século XIX até aos anos da República, viviam--se tempos agitados. Eram anos de viragem, marcados por diversas rupturas episte-mológicas, no campo da literatura, das artes, das ideologias, da economia ou das ideias. E o caminho das ideias traçava uma tripla encruzilhada: a geração de 1852, com Amorim Viana e a análise das contradições económicas de Proudhon; a geração de 1870, com o seu pluralismo estético, ideológico e filosófico; a doutrinação positivista, seguindo a óptica da escola de Littré. Na marginália ficam, entre outros, o enciclopedismo de Sampaio Bruno e esse romântico perdido no realismo que foi Camilo Castelo Branco.

A revolução republicana de 31 de Janeiro de 1891 marcava o início, do inconformismo nacional, no dizer de Guerra Junqueiro, em relação a um sistema político que não se coadunava com o mais esclarecido sentir colectivo. Daí que as rupturas epistemológicas, descentradas do poder, principalmente nas artes, nas ideias e na literatura, tivessem a necessidade de criar um espaço para um saber tão polémico quanto incómodo em ordem a gerir um novo poder, um poder simbólico (5).

O suicídio de Antero de Quental, também em 1891, dava uma nota insólita porquanto uma tragédia existencial poderia ter tido uma das suas motivações mais profundas na incapacidade de afirmação do poder simbólico, a que alguma mística budista(6) poderia ter emprestado uma inusitada veemência.

Antero escrevia: "somos republicanos, porque se não compreendemos que haja República verdadeira fora do Socialismo, não compreendemos igualmente que fora da República possa o Socialismo realizar-se completamente"(7), assim subsistia a necessidade de um enfoque idealista e romântico, bem ao jeito de um manifesto: "Não vos pedimos que nos dêem o Socialismo: dai-nos somente um lugar na República para o programa socialista, para a iniciativa socialista, para as reformas socialistas, e estaremos convosco de todo o coração, porque nos tereis dado quanto com justiça podemos exigir de vós, quanto com justiça pode o Socialismo exigir da República."(8)

A caracterização ideológica deste ‘fin-de--siècle' ficaria extremamente incompleta sem a mordacidade de Eça de Queirós, sobretudo na defesa de José Falcão, em 1871: "O governo de sua magestade sabe muito bem que em Portugal não há partidos republicanos nem socialistas, nem conspiradores; sabe perfeitamente que nem há clubes, nem agentes da Internacional, nem associações secretas, nem escritores que ensinem o socialismo, nem jornais que o discutam nem armas que o realizem.

"Pois bem! o governo inventa em Portugal o socialismo, como o segundo império inventava as conspirações em Paris. O governo cria o fantasma ‘vermelho ', para ter o prazer de o combater. A república em Portugal é apenas uma conspiração da política. Em Portugal todos o sabem, há três ou quatro pensadores que não querem sair por ora da côncava paz dos seus livros. E aí está o socialismo em Por- tugal"(9).

No ano lectivo de 1891-1892, Manuel da Silva Mendes encontrava-se a frequentar o primeiro ano do curso de Direito, na Universidade de Coimbra. E Coimbra era um foco de irradiação intelectual, com características únicas no país. Eugénio de Castro lançava as sementes de um simbolismo comprometido e a ressaca das Conferências do Casino movimentava os debates de ideias que, muitas vezes, não andariam longe da essência das aporias de Zenão de Eleia.

Os anos de Coimbra serão, para Manuel da Silva Mendes, decisivos a todos os títulos. Com efeito, este jovem nortenho desemboca numa Coimbra universitária profundamente empenhada em demonstrar que aos anos da razão se sucedem os anos da contestação, contestação essa violentamente patente no Porto, aquando do 31 de Janeiro.

Entre os seus professores, contava-se o mais obscuro elemento do oélebre grupo dos "Vencidos da Vida", o Dr. António Cândido, um prócere do positivismo e tido como o mais arrebatado tribuno parlamentar oitocentista; o Dr. Avelino Callisto, figura histriónica, alvo preferencial do espírito cáustico de Trindade Coelho ou de Ramalho Ortigão; o Dr. José Frederico Laranjo, Pardo Reino e o introdutor da cadeira de Direito Internacional nas Faculdades de Direito; ou o Dr. Lopes Praça, futuro mestre de filosofia dos príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel, desde 1904 até ao ano do regicídio,1908.

E será exactamente este último, catedrático titular da cadeira de Direito Civil, quem irá exercer uma discreta mas vigorosa influência no jovem Silva Mendes. Em 1868, Lopes Praça publica a primeira "História da Filosofia em Portugal, nas suas relações com o movimento geral da filosofia", obra da qual existem algumas reedições contemporâneas anotadas por Pinharanda Gomes. Podem detectar-se extraordinárias semelhanças, no planeamento e na construção da arquitectura teórica, entre a citada obra e a história do socialismo acrata, da autoria de Silva Mendes. E é de todo em todo incompreensível a ausência de referências à obra de Silva Mendes, sobretudo na bibliografia (10) dedicada à história das ideias socialistas e anarquistas em Portugal.

Se Lopes Praça procurou um equilíbrio expositivo na sua história da filosofia, deixando escapar de quando em vez algum indisfarçável krausismo, Silva Mendes, tentou ir mais além fazendo da absoluta neutralidade o seu impossível ofício de historiador. Essa neutralidade desmorona-se na paixão com que disseca algumas das grandes correntes históricas do socialismo libertário.

Em 1896, Manuel da Silva Mendes finaliza o seu curso de Direito, sendo citado pelo seu mérito académico e literário.

Publica, nesse mesmo ano, o ensaio "Socialismo Libertário ou Anarchismo: história e doutrina" que, mais do que uma simples e escolástica dissertação, é uma obra pioneira e fundamental. Ontem como hoje, continua a ser a primeira e única história geral do socialismo libertário, escrita em Portugal, o que não deixa de, no mínimo, ser curioso. Também, em 1896, e não é dispiciendo recordar, aparece na revista coimbrã "O Instituto", um dos primeiros estudos dedicados ao budismo, sobre "A phenomenalidade, a alma e o eu no Budismo", de Vasconcellos Abreu, ao mesmo tempo que é promulgada uma severa lei contra o anarquismo.

A obra de Silva Mendes,"Socialismo Libertário ou Anarchismo: história e doutrina", é, na realidade, uma história geral do movimento das ideias libertárias e anarquistas, procurando surpreender esse pensamento, nas contradições fecundas de todos os grandes pensadores e dando enfâse a uma filosofia da historicidade. Poderemos situá-lo na mesma linha de análise com que Nietzsche julgou Goethe e Hegel, a propósito do espírito do tempo e do presente como eternidade.

Silva Mendes apresenta uma copiosa fundamentação bibliográfica (11), permitindo-nos ajuizar sobre a actualidade e o pluralismo das fontes e o consequente esforço de sistematização e de síntese que teve necessidade de efectuar.

O ensaio espraia-se em dez capítulos, a saber: "Os Predecessores; Karl Marx e a Associação Internacional dos Trabalhadores até 1873; Bakounine e o movimento anarchista até 1876; O movimento teórico anarchista desde 1876 até à actualidade; A propaganda pelo facto; Evolução theórica do anarchismo; Theoria histórica socialista; A evolução económica; Em sociedade communista; A evolução política."

Os propósitos de Silva Mendes eram, "Encher uma lacuna que existe na nossa litteratura eis o fim d'este livro. (...) Entre nós, além de um opúsculo do sr. conselheiro Serpa Pimentel e de algumas publicações muito ligeiras, nada ha escripto sobre o assumpto; por isso, somente em livros de fóra têm podido os estudiosos surprehender o pensamento d'esta corrente socialista" (12), e situar-se como um historiador neutral, observando compreensiva-mente o curso da história das ideias, abstendo-se de colocar, aqui e ali, uma nota enfática de repulsa ou de adesão: "Na elaboração d' este livro procuramos systematicamente não emittir a nossa opinião. Não deviamos emitti-la: porque o fim a que nos propuzemos, foi unicamente apresentar a historia e a doutrina anarchísta na sua expressão mais pura. (...) Parecerá aqui e alli que perfilhamos quanto dizemos; não se faça, porem, tal juízo, que é temerário: é modo de exposição ou ás vezes para seleccionar opiniões divergentes a dentro da corrente. É este um livro que nem defende, nem aconselha, nem applaude, nem provoca: expõe. E quem pretende simplesmente expôr, fica bem atraz da tela. Não se pense, que receiamos evidenciar-nos; não: se fazemos a advertância supra, é para frisar bem o caracter d'este livro e também para que não se pense que todas as affirmações n' elle contidas traduzem o nosso modo de vêr sobre o assumpto"(13).

Ao mesmo tempo, procurava desmitificar os falsos juízos que pesavam na imagem do socialismo libertário: "De resto, ninguém se deslustra com ser anarchista: são-no algumas das maiores individualidades da actualidade: H. Spencer, Kropotkine, Elisée Reclus, Tolstoi, Ibsen, isto é, o maior sociologo, o maior apostolo da liberdade, o maior geographo, o maior christão, o maior dramaturgo!!!"(14), apontando o exemplo de tão proeminentes personalidades à luz do comentário de Goethe, de que nada é mais inconsequente do que a lógica consequente porque ela fabrica e produz o que não é natural. Daí a necessidade de ir em busca das raízes, que se perdem no tempo imemorial. Silva Mendes, na esteira de outros historiadores e pensadores, está convicto de que a fonte matricial das teorias socialistas libertárias ou anarquistas se pode encontrar na China, mais propriamente no "Tao Te Ching", atribuído a Lao Tsé: "seicentos annos antes da nossa era, Lao-Tseu, meditando sobre os destinos do homem, teria escripto em oitenta paginas toda a theoria anarchista, tal como hoje a expõem Elisée Reclus e o príncipe Kropotkine. (...)

"Da Asia, enfim, teria vindo para a Europa o espírito de revolta pelo vehiculo mongol - de Mazdec a Bakounine; a anarchia, mongolica na sua origem, passaria para os arias, porque tudo nos veio da Asia, tanto o bem como o mal, a Bíblia, a sciencia, a liberdade, a philosophia e a cólera."(15)

Anos volvidos, quando se enfronha na filosofia tauísta, irá situar o poderoso contributo especulativo indiano, sobretudo a corrente Upanishad, dentro do hinduísmo, como uma referência fundamental para se compreenderem os predicados específicos dos tauísmos. Com uma presecução,"(...) julgamos necessario repellir a opinião assás vulgarisada por escriptores de má-fé ou ignorantes de que o anarchismo não passa de uma reprodução das antigas utopias socialistas, como as de Platão, Morus, Campanella ou Fourier que imaginaram systemas sociaes, como os dramaturgos scenas de theatro, onde tudo está de ante-mão ensaiado para produzir os effeitos calculados."(16)

Chama a atenção para o valor do estudo comparado da filosofia, que terá o mesmo valor que o estudo comparado das civilizações, podendo considerar-se um pioneiro nesta área. O anarquismo não é, "uma producção abrupta e artificial, mas sim uma derivação lógica de passados estadios de civilização que, transformados e intensificados por novas condições sociaes, representam uma tendencia social definida a que o futuro destinará plena realização"(17), afirmando-se como um "dever de humanidade e de justiça propugnar pela implantação de um regimen de sociedade em que todos possam mover-se livremente na coexistencia social. "(18)

A partir do século XVIII, o socialismo libertário ou anarquismo começa a mover-se do saber para o poder, sobretudo com as influências de Rousseau, de Necker e de Mably. Proudhon merece-lhe um tratamento preferencial: "quanto a nós, elle teve o grande merito de trazer para a luz alguns pontos do socialismo que andavam envoltos em nevoas mais ou menos mysticas, mais ou menos sentimentaes. Teve a audacia de fallar com franqueza sobre os problemas religiosos e políticos, para se declarar atheu e anarchista" (19), concluindo que, "Karl Marx, Engels e Lassalle são os primeiros socialistas autoritários na accepção scientífica d' este termo. Proudhon, Bakounine, Guillaume, os primeiros socialistas libertarios."(20)

Dentro desta história geral do socialismo libertário existe também uma breve referência ao caso português:

"Em Portugal, o movimento anarchista não tem acompanhado o dos outros paizes. O socialismo, organisado primeiramente pelos estatutos da 'Alliança' de Bakounine, tem-se desenvolvido com tendencias diversas; hoje, porem, mercê da influencia educadora de alguns operarios hespanhoes que têm vivido e vivem no meio dos revolucionarios portugueses, o socialismo propende geralmente para a forma anarchista. O operariado de Lisboa, Porto, Coimbra e outros centros industriaes vae pouco a pouco abandonando as tendencias marxistas para se lançar no anarchismo. Convencido da improficuidade da tactica parlamentar, repugna-lhes aceitar o socialismo autoritario.

"Bastantes grupos, mais ou menos secretos, existem nos principaes centros, uns professando a propaganda pelo facto sem restrições, outros subordinando-a a certas regras. Os seus jornais são hoje clandestinos por via da lei de fevereiro d'este anno, provocada pelo attentado de Lisboa. Pelo mesmo motivo, é secreta a organização actual dos grupos."(21)

Bem ao jeito de uma profissão de fé num ideal quebra, o que não sucede pela primeira vez, a neutralidade de historiador que era seu propósito manter: "se repellirmos com nojo o impudente, o sanguinario, o explorador, que, dizendo-se anarchista, conspurca, a pretexto de justificar os seus crimes, uma doutrina toda de fraternidade e justiça, repugna-nos também o instincto carniceiro tão geralmente manifestado contra o anarchista, victima quantas vezes da sociedade!"(22).

A história não se repete, mas os homens podem reinvestir nos mesmos ideias. Blasco Ibañez quis fazer uma apologia da mentalidade anarquista em 'La Catedral', o que nos permite qualificar o impacte teórico das ideias libertárias na literatura.

Silva Mendes era um anarquista em espírito, como bom hegeliano, aproveitando, como dirá Croce, em 1907, a parte viva da filosofia de Hegel, a ciência do espírito objectivo, mas não ousando nunca assumir se mediante uma praxis consequente.

E este aspecto é bastante importante porque essa noção de anarquismo individualista, o anarquismo 'lui-même', é remetido para Lao Tsé, cujo espírito irracionalista escapa aos contextos da filosofia que 'fala' grego. Silva Mendes, como é sabido, apreciava a poética do tauísmo, sobre tudo as virtualidades intrínsecas a essa metafísica da perplexidade.

Quando desembarca em Macau, em 1901, traz consigo, já o afirmamos, a cicatriz de um exílio interior.

Exílio interior que parte da verificação de que ainda não é o momento preciso para o socialismo libertário ou anarquismo dispor de uma razão aberta, onde o racional deveria obedecer ao real. A modernidade, com Castoriadis, simplesmente dirá que a transformação da sociedade que o nosso tempo exige revela se inseparável da auto-superação da razão.

E os anos de Macau mostrarão um Silva Mendes com outras preocupações espirituais e intelectuais, subsistindo, no entanto, algumas ideias primaciais do socialismo libertário ou anarquismo.

REFERÊNCIAS

(1) "Macau de Ontem", in "Presença Portuguesa no Extremo Oriente", p.8, Instituto Cultural de Macau,1986.

(2) Prefácio a "Sobre Arte", de Manuel da Silva Mendes, p.2, Leal Senado de Macau,1982.

(3) Marcelo Caetano,"Anarquismo", in "Verbo -Enciclopé dia Luso-Brasileira de Cultura", pp.108-111,2 vol.; Manuel Dias Duarte,"História da Filosofia em Portugal - nas suas conexões políticas e sociais", p.128, Livros Horizonte,1987; Pedro da Silveira,"Manuel da Silva Mendes", in "Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira", p.630.

Destes três autores, apenas o último avança indicações mais precisas, embora todos eles aflorem o posicionamento de Silva Mendes em contextos diferentes. Pedro da Silveira indica que há uma tradução francesa e uma versão brasileira da obra de Silva Mendes.

(4) "Impressões e Recordações de Macau: de Lisboa a Macau", in "Colectânea de Artigos", pp.47-48, Vol.1,1949.

(5) Pierre Bourdieu,"O Poder Simbólico", pp.7-16, Difel, Lisboa,1989.

(6) José Alves,"Antero de Quental, les mortelles contradictions", p.277 e seg., Fondation Calouste Gulbenkian, Paris,1982.

(7) "Prosas Sócio-Políticas", p.391, Imprensa Nacional,1982.

(8) João Medina,"As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal", (antologia), p.204, Publicações Dom Quixote, Lisboa,1984.

(9) Idem, op. cit., p.272.

(10) Veja-se, por todos, Joel Serrão,"Du Socialisme Libertaire a L'Anarchisme", in Actes du Colloque "Utopie et Socialisme au Portugal au XIX siècle", pp.331-368, Paris,10-13 janvier 1979, Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, Paris,1982.

(11) A título de exemplo: André Lichtenberger,"Le Socialisme au XVIII siècle", Paris,1895; Michel Dragomonov,"Correspondence de Bakounine", Paris,1896; H. Spencer,"L'lndividu contre 1'Etat", Paris,1888; Karl Marx,"Das Kapital", s/d; Adolfo Posada,"La sociologie et 1'anarchisme", Paris,1894.

(12) "Socialismo Libertario ou Anarchismo: história e doutrina",1896, Prologo, p. XI.

(13) Idem, op. cit., p. XII.

(14) Idem, op. cit., p. XII.

(15) Ibidem, pp.1-3.

(16) Ibidem, p.7.

(17) Ibidem, p.7.

(18) Ibidem, p.7.

Ibidem, p.35.

(20) Ibidem, p.6.

(21) Ibidem, p.169.

(22) Ibidem, p.179.

* Licenciado em Filosofia. Bolseiro da Fundação Oriente. Professor de Filosofia no Complexo Escolar de Macau.

desde a p. 144
até a p.