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O CONHECIMENTO PORTUGUÊS DA COREIA NO SÉCULO XVI

Jaime Ramalhete Neves*

Em 9 de Fevereiro de 1510, Rui de Araújo escreve de Malaca, onde tinha chegado em 1509, uma carta a Afonso de Albuquerque. Rui de Araújo estava preso, dado que tinha sido atacado quando da sua chegada a Malaca. Só mais tarde Afonso de Albuquerque conquistaria a cidade. Nessa carta aparece pela primeira vez a palavra Gores, designando indivíduos que, não sendo naturais de Malaca, aí iam com outros de proveniência diversa fazer o seu comércio. Mais conhecida do que a primeira é a carta do rei D. Manuel I a Leão X, da qual transcrevemos o seguinte passo:

"(...) Erant eo tempore Malache plures extranei ac diversarum nationum mercatores scilicet Zamatri Pegus lauues Gores et ab extremo oriente atque ultima Sinarum regionem Chines atque aliis gentiles qui urbem comertii gratia frequentes multis diuitiis auro argento margaritis et preciosis lapis serico etiam uellere ac multifariis aromatibus et odoribus afatim replent (...).

Datum in urbe Olissipone octauo idus iunias. Anno Domini MDXIII ".

Uma conclusão que podemos tirar é que a China seria o território mais a oriente para a época e que os Gores estão suficientemente individualizados, embora não identificados.

Há contudo, em documentos portugueses, uma alternância entre o aparecimento da palavra Gores e o aparecimento da palavra Léquios (habitantes das ilhas de Lyukyu ou Ryukyu) o que tem levado alguns investigadores a identificarem Gores como o aportuguesamento de Al--Ghur, designação árabe para um país produtor de ferro no extremo-oriente (Ryukyu ou Japão, as opiniões dividem-se). Defendida por Charles Haguenauer foi a tese de Gores ser a adaptação portuguesa de Kaoli, a designação chinesa para a Coreia. Vêm em seu abono as relações comerciais entre os dois países do nordeste asiático, a emigração coreana que, depois de ter sido feita para o Japão na época de Paektchae, se fez para Ryukyu na época de Choson, embora mais esporadicamente, o que pode explicar a alternância de Gores/Léquios.

A cerca de dez anos de distância destes documentos surge o Roteiro de Francisco Rodrigues ("Este livro fez Frco. Roiz, Piloto Mor da Primeira Armada que descobriu Bandam e Moluco"). Juntamente com o Roteiro, Francisco Rodrigues desenhou contornos da costa quer do Índico quer do Pacífico. Sobrepondo esses esboços a. uma carta actual apercebemo-nos, embora com dificuldade, do território da Coreia.

Uma segunda fase de conhecimento parece ter-se dado com Fernão Mendes Pinto, viajante e escritor português do Século XVI. Chegou ao Oriente em 1537 e regressou a Portugal em 1558. Faleceu em 1583. A sua obra só seria publicada em 1614. Depois do seu regresso a Portugal foi procurado pelo historiador João de Barros.

Cerca de 1570 recebia um enviado especial do Grão-duque Cosimo de Medici e, pouco antes da sua morte, foi visitado pelo historiador Giovanni Pietro Maffei, SJ.. Foi Filipe II de Espanha, e I de Portugal, quem lhe outorgou uma pequena quantia nos últimos meses de vida.

A identificação da Coreia na sua obra, dado que ele nunca utiliza qualquer palavra para a globalidade da península coreana, tem de fazer-se pelas descrições das rotas, pela toponímia (identificação difícil, dada a mudança dos topónimos e a recepção auditiva dos mesmos por Fernão Mendes Pinto), por algumas (duas até agora) palavras de origem coreana e por algumas poucas descrições. Isto sem contar com a diferença de perspectivas de quem escreve no Século XVI e de quem lê no Século XX, embora da mesma nacionalidade, o que é um obstáculo para o refazer da tex-tualidade da "Peregrinação".

Rotas indicadas apontam, juntamente com o vocábulo golfão (caído em desuso), para uma chegada à costa oeste da Coreia (provavelmente Pyongnan-do, de seu nome actual). Curiosa é a visão que Pinto tem do local onde chega. Viajante experimentado, perante o perfil da costa coreana, a expressão por ele utilizada é "rio ou estreito". Refugiado nesse local onde permaneceu três dias devido a uma tempestade, faz uma pequena descrição das reacções de um grupo de indivíduos de pele muito alva que entretanto aparecera na praia: sem que os portugueses tivessem saído dos barcos foram alvejados com setas e pedras embora estivessem afastados. Reacção de tal tipo já tinha sido prevista pelo piloto chinês que os acompanhava, Similau. Deste nome apenas se identifica a última parte, lau, que é uma fórmula de tratamento de deferência. Saídos dali e costeada a Coreia por leste, cujo perfil embora desconhecido lhe não causa dúvidas, medida a latitude perto da Sacalina, retoma um pouco do caminho andado e entra por rios da Tartária até à região onde se situou Pal-hae. É aí que se encontra no texto de Fernão Mendes Pinto a recolha de vocábulos coreanos: antes e depois da estadia em Nanquim e Pequim. É também nesta parte da obra que aparece um topónimo que tem criado expectativas e a que Charignon, autor da primeira abordagem da "Peregrinação" num contexto oriental, me parece dar uma solução não satisfatória, situando a localidade na costa leste da China. Se se considerar que Fernão Mendes Pinto utilizou a palavra coreana Pean com a pronúncia japonesa Fean acrescentando-se ju (coelho) e she/shi (cidade) temos a expressão, segundo a sintaxe, "cidade do coelho de Pean", ou seja da actual Pyongyang. Para além de justificado fonética e morfossintacticamente, este acerto a nível semântico-geográfico conduz a uma leitura diferente do texto de Pinto.

Aparecem umas três citações de Fanjus que têm sido interpretadas como referentes a lugares diferentes. Acontece que essa referência em diferentes lugares do texto significa a existência de relações ou de tributação (caso da citação de Fanjus quando Pinto se encontra na China) ou relações económico-culturais (caso da citação dos gigauhós de Fanjus) ou de observação directa (caso da citação quando da chegada à península da Coreia, vindo de Liampó).

Este périplo da Coreia está de acordo com o recorte da carta desenhada por Diogo Homem para o nordeste asiático e para o respeitante à Coreia. Esta carta, presente na obra Portugaliae Monumenta Cartographica, foi datada a sua edição de 1558 por Armando Cortesão.

Na cartografia portuguesa, o território da Coreia, no Século XVI, não aparece como uma ilha. A legenda, em latim, que aparece a encimar a península, aponta para um conhecimento das gentes, superficial, mas directo: Leucorum. Só poderá ser interpretado como o genitivo de uma palavra de origem grega mas de declinação latina: dos brancos, isto é, de gente de pele branca, em oposição à cor da pele das gentes do sueste asiático. Esta também tinha sido a observação de Fernão Mendes Pinto ao chegar à vista daqueles que depois o ataca-ram com fundas e flechas. Esta palavra, leucorum, também põe de parte a hipótese de um mapa de procedência asiática na informação de origem de Diogo Homem. Não contando com o facto de os mapas coreanos e chineses, nesta altura, serem predominantemente de cariz simbólico.

Outro documento importante foi o publicado em 1600 na Oficina de Pedro Crasbeek, a Vida do Padre Francisco Xavier, de João de Lucena. No capítulo XVII, que trata "Dos confins, grandeza e vários nomes do Reino da China", afirma:

"(...) Daqui voltando para o norte e noroeste, torna a costa com outra fronteira uma comprida enseada semelhante à do mar Adriático, ou golfão de Veneza, entre a terra da Albânia, Esclavónia e Istria com a de Itália; que com uma figura não muito diferente despede de si a China ali de si para o sul a península ou quase ilha de Córe ou Coray, a qual pelo lado ocidental responde à província de Nanquim, donde também tomou o nome a mesma enseada, e com o Oriental vai, como dantes vinha, direita ao norte e noroeste (senão quando nas partes de Xantum se desvia um pouco ao poente até ir entestar com as terras habitadas dos povos que nós chamamos Tártaros e eles Taquis)".

Podemos facilmente comparar esta descrição escrita com os contornos desenhados por Diogo Homem e notar que uma obra impressa com a data de 1600 também pressupõe uma recolha de informação, e para mais editada em Lisboa alguns anos atrás.

Diogo Homem, 1558. Atlas de doze folhas (Portugaliae Monumenta Cartographica).

No final do Século XVI dá-se a invasão do reino de Choson, comandada por Hideyos-chi, e a consequente guerra do Im-Jin, tal como é conhecida. A fonte portuguesa para esta guerra é a obra, do jesuíta Luís de Fróis, História de Japam.

Em 1989 o bibliófilo coreano Lee Jong Hak relacionou três documentos: os Anais da Dinastia I, a miscelânea da família Kim de Pung San, cujo antepassado Kim Dae Hyon foi contemporâneo da invasão de Im-Jin, e uma colecção de ilustrações acompanhadas de texto oferecida a Kim Dae Hyon.

Em qualquer dos documentos há a referência a estrangeiros que integravam as tropas da dinastia Ming vindas em auxílio do reino de Choson, seu tributário. Os documentos oficiais, os Anais da Dinastia I, designam o país donde esses estrangeiros eram naturais por Paran-kuk, os documentos originários da família Kim de Pung San designam esse mesmo país por Pulan-kuk.

Os estudiosos coreanos, dado que os documentos utilizam nestas designações os caracteres chineses com valor fonético, afirmam que a diferença deve ter sido originada por má audição das palavras. Quanto a mim, defendo outra tese. Essa tese está baseada: em primeiro lugar, numa obra fundamental para a compreensão das trocas linguísticas entre o Ocidente e o Oriente, o Glossário Luso-Asiático de Sebastião Rodolfo Dalgado, cuja primeira edição é de 1919-21; em segundo lugar na distribuição de formas linguísticas a nível da Índia, Tailândia, Malaca e Indonésia; em terceiro lugar em determinados acontecimentos históricos.

Parece atribuível ao tempo de Godofredo de Bulhão a designação de folangi aos cruzados, dado que a sua maioria eram francos, pelos falantes de língua árabe. Firingi e farangi são formas que ocorrem ainda na Índia e que através da Tailândia, Malaca e Indonésia se transformaram em phalang, paran, embora com o significado de "estrangeiros". Esta última, paran, era a que vigorava em Malaca quando da sua conquista por Afonso de Albuquerque, e que terá sido levada até Pequim por um familiar do rei vencido, que quis apresentar queixa ao imperador da China, da qual Malaca era tributária. Fernão Mendes Pinto identificou esse familiar como sendo Tranocém Mudeliar, tio do rei.

No entanto, este conhecimento do solo da Coreia ficou restringido a quatro combatentes portugueses que só hoje sabemos terem vindo ao reino de Choson com as tropas da dinastia Ming. Terão sido quatro? Assim o atesta uma ilustração, pintada na época. Contudo, o número quatro é um número simbólico que, na Coreia, significa morte. Terá sido adequado esse número à função que deles se esperava?

BIBLIOGRAFIA

Afonso de Albuquerque, Cartas para El-Rei, Lisboa. Academia Real das Ciências, 1884.

Anais da Dinastia I do Reino de Choson (fac-similes fotocopiados e sem data).

Armando Cortesão, A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues, Coimbra. Acta Universitatis Conimbrigensis, 1978.

Charignon, A. J. H., e M. Médard, A Propos des Voy-ages Aventureux de Fernand Mendez Pinto, Péquin. Imprimerie des Lazaristes, 1936.

Charles Haguenauer, Études Coréennes de Charles Haguenauer, Paris. Centre d'Études Coréennes, 1980.

Adelino Almeida Calado, Livro das Cousas da India e do Japão, in Boletim da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1960, XXIV.

Documentos da família de Kim Dae Hyon, de Pung San.

João de Lucena, Vida do Padre Francisco Xavier, Lisboa. Pedro Crasbeek, 1600.

João Paulo Oliveira e Costa, A Descoberta da Civilização Japonesa (tese de Mestrado apresentada na Universidade Nova de Lisboa), Lisboa, 1988.

Luís de Fróis, História de Japam, Lisboa. Biblioteca Nacional, 1976-1983.

Portugaliae Monumenta Cartographica.

Raffaella d'lntino (Introdução e leitura), Enformação das Cousas da China (Textos do século XVI), Lisboa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989.

Rebecca Catz, Cartas de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Presença, 1983.

Sebastião Rodolfo Dalgado, Glossário Luso-Asiático, 2 vols, Coimbra. Imprensa da Universidade, 1919-1921.

Zinadim Ben Ali Benhamede, História dos Portugueses no Malabar (manuscrito árabe do século XVI traduzido e publicado pelo professor David Lopes), Lisboa, Imprensa Nacional, 1898.

(Conferência do autor na Royal Asiatic Society, Seul, em 9/5/1990.)

* Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Investigador das relações entre Portugal e a Coreia.

desde a p. 79
até a p.