Artes

A LUÍS DEMÉE, COM SAUDADES...

Carlos Marreiros

    A casa
    privada de mastros facilmente é exígua e rasa. 
    
    Azul estridência do silêncio o céu consome-se na pedra. 
    
    O cume é a água. 

(in "Véspera da Água" de Eugénio de Andrade)

Sem título,1986(acrílico sobre tela,86x116m).

Luís Demée é o mais brilhante pintor de Macau. Não obstante a cenografia deste quinhão de terra verdejante e exótica, a sua sensual humidade intrigante, a sua luz conivente em oiro, a sua riqueza multípica de rostos e gentes, padrões cul-turantes e arquitecturas, dizia, Macau nunca foi terra de poetas e de pintores. A par de um Chinnery, de um Borget, de um Lam Quá, de um Marciano Baptista, de um Barão do Cercal, de um George Smirnoff, ou mesmo de um grande Cheong Tai Chun-o mestre mundial do modernismo chinês que aqui viveu um ano e meio e, ao que parece, não lhe inspirou obra, que se saiba - poucos registos pictóricos de vulto se referem a artistas de Macau. Luís Demée, inscreve-se a oiro na arca dos grandes pintores de Macau deste século.

Luís Demée, de aspecto frágil e de discreta personalidade, é o contrário na sensibilidade: enorme e profunda. Os seus olhos ardentes e de um verde que não de jade ou de mel, registam, com aptidão analítica e informática, a subtileza secreta das coisas que se não vêem, sempre com aquele brilhozinho nos olhos, lacrimejantes quase, como canta o vate.

A sua pintura é como ele: pequena, discreta, mas de uma enor-míssima sensibilidade e poesia. Há superfícies e territórios onde ele colonizou, com poesia, arrozais cor-de-rosas, lezírias azuis com florestas amarelas, habitadas por estranhos seres de natureza incompendiável. Há uma gestão harmoniosa dos vastos impérios de cores e de sentires. E nos mares não há peixes nem petroleiros. Só há praias de marfim, suaves ondas clepsídricas.

Há, aqui, nas cristas das espumas brancas, em castelo, botti-cellianas, morrentes, uma távola onde várias sensibilidades e várias poéticas convivem, quase num cenáculo incestuoso - cores e formas de natura distinta - permitido, numa heresia que não foi proibida, que não foi maldita.

Porque, há seis anos escrivinhei, igualmente comovido, para a revista Nam Vam de Outubro de 1985 umas linhas sobre a obra pictórica e retrospectiva de Luís Demée, vou, em seguida reproduzi-las na íntegra, porque procuraram radiografar, em sentimentos e em antologia, as suas criações filiais:

    "E então, que viajemos... 
    
    Através do véu, de aquática [fluidez
    Da janela de um cruzeiro azul, 
    A embriaguez, 
    Nas paisagens poligonais, [longínquas, 
    Aqui tão perto, afinal. 
    
    Nos vastos prados de côr
    Lisa-e-fria, 
    A paixão de Luís Demée
    Deixa sempre uns pingos, 
    Comprometedores, quentes. 
    
    Manchas que os amantes, 
    Depois do amor, 
    Esquecem nos lençóis, já frios
    Porque os corpos, estes
    já ausentes, Convidam-se a outras [geometrias."

C. M.,26.10.85

A cor das tintas é mero produto industrial, químico-cosmético. Nos olhos não é só problema dos oftalmologistas. Na vida, enquanto fenómeno puramente solar, pertence aos deuses. Os deuses estão loucos, alguém gritou. Na arte é tudo isso -afirmação banal que se aceita. O que já não é pouco. Talvez seja ainda muito mais!

Não recuso, necessariamente, ver na obra plástica de Luís Demée, mensagens. Mas, mais que isso, mais do que momentos discursivos de conteúdo subjectivo ou não, é o convite para participarmos numa viagem. As Portas do Império estão abertas, se aceitarmos a participação. E cheiram a cravo e a canela. Um império de territórios vastos de cor, Sem Título, através do expresso Linha Amarela que se explode em polígonos e paisagens sem pontos de fuga. É apenas o embarque no Cais de Jade, onde flutua a Barca das Pérolas. Que as asas de uma infância se fizeram viajantes, nas velas de um junco-borboleta-domar-errante.

E os eternos triângulos e pentágonos, que trinta anos na In-victa-cinzenta-de-águas-furtadas, deixaram, primeiro, numa pós-ado-lescência tímida e experimental, e depois, numa prolongada sedimentação de amor e sense-of-belon-ging. É um Porto de emo(sensa)ções que os vinte-e-oito sóis do pequeno céu azul não fazem acabar o Último Dia do Verão, de um Março man-chado, que se inventou às riscas.

A travessia continua, por entre campos e bosques de geometria, ora descritiva, às vezes analítica.

O amor e os hinos de glórias predominam na trilogia das cores primárias, que se fazem arco-íris.

Arco-íris que, por sua vez, se derrete em mil estrelinhas, aquela criatura cintilante, fôfa-min-fá-tón, láctea, como a Via.

Os Guardas da Rainha, um enfadonho e robótico exército de soldados com cabeça de ameixa, marcha sobre nós. Mas num ápice, o exército torna-se comestível. Continuamos com as eternas travessias que Luís Demée nos faz transportar - todos aqueles que estiveram nas Galerias do Leal Senado e do Museu Luís de Camões de Macau. E quiseram aceitar a proposta do artista. Eu aceitei. E gostei muito. Obrigado Luís Demée.

(Algures-no-rio-das-Pérolas-em-Outubro-de-mil-novecentos-e-oi-tenta-e-cinco).

(texto extraído do catálogo "Luís Demée", editado pelo ICM, com adapatação da redacção da RC)

desde a p. 163
até a p.