Transculturações

A JUSTIÇA E A COMUNIDADE EM MACAU
PROBLEMAS SOCIAIS, A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA NO CONTEXTO DA TRANSIÇÃO

Boaventura de Sousa Santos*

INTRODUÇÃO

Apresenta-se neste texto uma análise provisória de alguns dos dados recolhidos no âmbito do projecto de investigação sociológica sobre a "Justiça e Comunidade em Macau" que venho a realizar nos últimos dois anos. Oportunamente será produzido o relatório final da investigação contendo a totalidade dos dados e a análise definitiva sobre eles feita, bem como as propostas de inovação institucional que se afiguram recomendáveis à luz da leitura sociológica realizada.

O tema central deste projecto de investigação é, por um lado, a identificação e análise sociológica dos problemas e conflitos, com uma dimensão jurídica, dos estratos baixo e médio baixo, da população de Macau, e portanto da esmagadora maioria da população, quase toda ela integrante da comunidade chinesa, ou melhor, das várias comunidades chinesas de Macau; e, por outro lado, o modo como esses problemas e conflitos são resolvidos, quer por recurso à administração pública portuguesa, quer por recurso às estruturas ou organizações comunitárias. Dado tratar-se de uma problemática social que até agora não foi objecto de qualquer análise sociológica, o presente projecto de investigação tem uma natureza exploratória e não visa abranger exaustiva-mente o seu tema central, antes apenas delinear-lhe o perfil geral e identificar alguns dos seus vectores principais.

A ideia da realização deste projecto surgiu há quase quatro anos aquando da minha primeira estadia em Macau integrado numa delegação oficial que visitou o território a convite do então Secretário--Adjunto para a Administração da Justiça, Dr. António Vitorino, ao tempo em vias de terminar estas funções governativas e de regressar a Portugal. O interesse da Administração neste projecto de investigação veio a reiterar-se dois anos mais tarde, em meados de 1989, altura em que foi celebrado o respectivo contrato. Desde então, e com o objectivo de realizar o trabalho de campo, fiz várias estadias prolongadas no território; durante os últimos dois anos, a minha assistente de investigação, Drª Conceição Gomes, tem estado a residir em Macau, a proceder à recolha dos dados.

I QUESTÕES METODOLÓGICAS

A matriz científica disciplinar deste projecto de investigação é a sociologia do direito e da admi-nistração da justiça. A investigação neste domínio tem, em geral, grande complexidade e dificuldade, não só pela natureza do tema, como pelo facto de as instituições jurídicas e judiciárias terem desenvolvido uma forma de auto-conhecimento, a dogmática jurídica, que não raro colide com o conhecimento sociológico que sobre elas pode ser obtido. Recomenda-se, por isso, que o investigador tenha uma dupla formação, jurídica e sociológica, que lhe permita avaliar os limites e as virtualidades de cada uma das formas de conhecimento que circulam neste domínio da vida social. O facto de eu dispor dessa dupla formação não é, no entanto, suficiente para me tranquilizar no caso vertente, pois que, além das dificuldades gerais desta temática, há a juntar as dificuldades da sua investigação em Macau.

A primeira atitude que um cientista social deve assumir é a de respeito pela extrema complexidade desta realidade sociológica, uma atitude que, no meu caso, mais se vincou à medida que a investigação foi avançando. Do meu conhecimento, o pro-jecto de investigação que estou a levar a cabo constitui o primeiro estudo de um cientista social ocidental orientado privilegiadamente para a comunidade chinesa e para a utilização que ela tem vindo a fazer de algumas das interfaces de índole não repressiva que entre ela e a Administração se têm vindo a constituir sobretudo na última década. Trata-se, pois, de um domínio quase totalmente ignorado, de difícil acesso e compreensão, uma vez que faltam os habituais apoios da investigação anterior, imprescindíveis para definir o horizonte analítico e formular as hipóteses de trabalho que orientam a investigação. Para este efeito, o único recurso disponível, sem dúvida precioso, mas insuficiente, é a investigação comparada, os resultados de estudos sobre temas similares feitos noutras regiões e noutros períodos, em contextos sociológicos, porventura muito diferentes, mas também com uma ou outra semelhança.

No caso concreto da investigação em curso, eu dispunha, à partida, para além dos estudos realizados por outros colegas, os que eu próprio realizei no Brasil (em 1970) e em Cabo Verde (em 1983--84). Em ambos casos trata-se de investigações sobre os problemas e conflitos jurídicos das classes populares e os mecanismos da sua prevenção e resolução num contexto de acesso muito difícil, se não impossível, às instituições oficiais e formais da administração da justiça. No primeiro caso, privilegiei o estudo do papel das associações de moradores existentes e activas nas favelas do Rio de Janeiro; no segundo caso, centrei-me no estudo dos tribunais de zona, tribunais comunitários criados depois da Independência em todas as Ilhas de Cabo Verde, constituídos por juízes leigos recrutados nas comunidades e com competência para conciliar as partes e julgar delitos de pouca gravidade e acções cíveis de valor diminuto. Como é fácil de ver, para além do estatuto social da população estudada e do contexto de distância social e cultural entre essa população e as instituições jurídicas e judiciárias, e, portanto, de inacessibilidade tendencial destas, não há entre estes estudos e o estudo em curso em Macau muitas outras semelhanças. Daí, a especial necessidade de não subestimar as dificuldades e de avançar com cautela.

Em ciências sociais, as cautelas têm sempre a ver com a metodologia utilizada e com as hipóteses de trabalho que orientam a observação e a análise. Quanto à metodologia, recomenda-se em situações deste tipo não confiar exclusivamente num método ou técnica de recolha de dados. Em especial, recomenda-se o uso múltiplo e sequencial de métodos qualitativos e de métodos quantitativos, os primeiros usados privilegiadamente na primeira fase da investigação e destinados a identificar a traço grosso o mapa analítico, e os segundos, usados privilegiada-mente na segunda fase da investigação, destinados a conferir detalhe e representatividade às análises pretendidas. Foi desta forma que procurei proceder na investigação em curso. Na primeira fase, recorri sobretudo à análise das fontes documentais e às entrevistas em profundidade a informadores privilegiados e a dirigentes de organizações comunitárias chinesas e de serviços da Administração; na segunda fase, centrei-me nas observações sistemáticas do desempenho institucional e, para uma dimensão restrita da investigação, procedi mesmo a um inquérito por questionário.

Numa sociedade de tipo colonial, multi-cultu-ral e multilinguística, com forte tradição de distância social e institucional entre a Administração e a população local, a escolha da metodologia adequada é uma dificuldade menor em comparação com a dificuldade na aplicação dos métodos escolhidos. As dificuldades são de dois tipos fundamentais. A primeira reside no acesso ao contacto sociológico com pessoas e organizações da comunidade chinesa. Dados os múltiplos dualismos que caracterizam esta micro--sociedade, um cientista social português é, até prova em contrário, um agente da Administração, e as informações que pretende obter visam exclusivamente objectivos administrativos. Até que essa prova seja feita, é impossível criar a relação de confiança que torna credível o compromisso da confidencialidade e o propósito científico e independente da investigação, uma relação crucial sobretudo no uso dos métodos qualitativos. A segunda grande dificuldade é, naturalmente, a linguística, sempre que a comunicação não pode ser feita em nenhuma das línguas que o investigador domina. Nesse caso, o intérprete, se não for adequadamente treinado, será sempre, ou mais que intérprete, ou menos que intérprete, e em ambos os casos distorcerá, de modo não controlado, o fluxo da comunicação.

Para vencer estas dificuldades contei com preciosos apoios. No que respeita à primeira dificuldade contei, desde logo, com o apoio de alguns portugueses aqui nascidos ou aqui radicados há anos, alguns que já conhecia de longa data, outros que vim a conhecer aqui, amigos que entenderam os objecti-vos da investigação, e que, quiçá, admiraram a ousadia e o esforço de a fazer. No entanto, pela sua posição nesta sociedade, os seus apoios confinar-se-iam, sem surpresa, aos contactos com as elites da comunidade chinesa, sobretudo as mais tradicionais, as social e politicamente mais visíveis e com mais experiência de trato com os portugueses e a Adminis-tração portuguesa. Era uma limitação importante, sobretudo para uma investigação que queria ter acesso aos problemas e à vida comunitária das classes populares da comunidade chinesa. Para a superar pude contar com o apoio crucial da Associação de Ciências Sociais Macau, um apoio que agradeço aqui publicamente na pessoa do Prof. Huang, Presidente da Direcção, e na pessoa do vice-presidente, Sr. Gary Ngai, um agradecimento muito especial neste último caso a um investigador dotado de uma concepção actualizada e universalista do conhecimento científico social, que quis partilhar comigo o seu conhecimento e o seu envolvimento militante na defesa da identidade de Macau e que com o tempo se transformou no meu parceiro privilegiado desta aventura sociológica. Entre muitos outros, foi o apoio da Associação de Ciências Sociais que tomou possível realizar entrevistas em profundidade com a maioria das 24 Associações de Moradores em actividade em Macau.

Mas a Associação de Ciências Sociais foi ainda preciosa na superação da segunda dificuldade que referi, a dificuldade linguística. Nas primeiras entrevistas que realizei apercebi-me de que os intérpretes disponíveis padeciam do que eu designaria como síndroma burocrático. Isto é, estavam treinados para resumir e reduzir à matéria relevante, do ponto de vista administrativo, as intervenções por vezes longas dos entrevistados. Uma fala de dois ou três minutos poderia ser traduzida numa única frase, seca, hiper-sintéctica e quase sempre em linguagem técni-co-jurídica. Em vão procurei explicar que a lógica da entrevista administrativa e a lógica da entrevista sociológica eram totalmente distintas, que, a mim, me interessavam os detalhes das falas, as expressões, os circunlóquios, as repetições, as hesitações e que o meu tempo para ouvir os entrevistados não tinha limites. Perante a impossibilidade de no espaço de tempo de que dispunha descondicionar os intérpretes e retreiná-los, pressupondo, como é óbvio, que algum a isso se prontificasse, foi a Associação de Ciências Sociais quem me ajudou a encontrar um intérprete adequado. No fim de um seminário que realizei na Associação sobre metodologia de investigação sociológica, um dos participantes mostrou uma particular curiosidade em se inteirar da investigação como meio de conhecer melhor as dimensões da sociedade de Macau para ele desconhecidas, e dispôs-se a ser intérprete como meio de se familiarizar com as técnicas de entrevista. Depois de algumas sessões de trabalho, tinha encontrado o intérprete ideal. Trata-se da Prof. Ieong Shao Leng, da Escola Superior de Educação da Universidade da Macau, cuja colaboração pública e vivamente agradeço.

II HIPÓTESES DE TRABALHO

Referi acima que as cautelas metodológicas numa investigação deste tipo devem ser secundadas pelas cautelas na elaboração do quadro analítico e das hipóteses de trabalho que orientam a investigação. A hipótese de trabalho central é que, sendo Macau uma sociedade de tipo colonial, multi-cultural e multi-linguística, vigoram nela diferentes ordens jurídicas e sociais. Independentemente de ser ou não reconhecida oficialmente, existe no plano sociológico uma situação de pluralismo jurídico. Esta situação terá, por hipótese, três características fundamentais: em primeiro lugar, existe uma divisão social do trabalho jurídico entre as diferentes ordens jurídicas definidas, quer em termos das áreas de regulação sócio-jurídica, quer em termos dos estratos sociais titulares ou objectos da regulação, o que não impede que a mesma área ou o mesmo estrato social possa ser regulado por diferentes ordens jurídicas sobrepostas; em segundo lugar, a pluralidade de ordens jurídicas é estruturada e envolve relações de hierarquia entre elas, nos termos da qual algumas ordens jurídicas surgem como dominantes e outras, como dominadas; em terceiro lugar, a circulação social das diferentes ordens jurídicas faz-se segundo diferentes trajectórias, conflituantes ou convergentes, paralelas ou intersectantes, combinadas ou sobrepostas, autónomas ou reciprocamente interpenetradas.

A segunda hipótese de trabalho é que numa situação de pluralismo jurídico as pessoas e os grupos sociais orientam para diferentes ordens jurídicas os diferentes problemas ou conflitos de que são protagonistas, de tal modo que a cada ordem jurídica cabe uma parte, maior ou menor, da problemática ou da conflitualidade jurídica global, ou seja, da procura jurídica global. Esta hipótese de trabalho assenta em dois pressupostos básicos. O primeiro pressuposto é que as pessoas e os grupos sociais não têm problemas ou conflitos jurídicos, económicos, sociológicos, psicológicos, etc.; as pessoas e os grupos sociais têm problemas e conflitos que envolvem todas essas dimensões, dimensões que entretanto lhes são definidas e atribuídas por razões, quase sempre estranhas aos actores sociais, quer de ordenamento científico da realidade (a lógica científico-social), quer de ordenamento administrativo da realidade (a lógica administrativa). Estas duas lógicas são autónomas e, se nuns casos convergem, noutros divergem. Por exemplo, nas situações sócio-jurídicas de pluralismo jurídico em que só uma ordem jurídica é oficialmente reconhecida, a lógica administrativa concebe como problema jurídico apenas o que o é perante a ordem jurídica oficial, enquanto a lógica científico-social concebe como problema jurídico o que o é perante qualquer das ordens jurídicas em presença.

O segundo pressuposto básico é que a procura sócio-jurídica global feita perante uma dada ordem jurídico-administrativa pode ser de três tipos. Uma procura consolidada, ou seja, uma procura socialmente bem definida pelos actores sociais, a qual pode ser ou não ser satisfeita pela ordem jurídico-administrativa a que se dirige; no caso de não ser satisfeita, é este tipo de procura aquele que gera mais frustração social e corrói a legitimidade da ordem jurídico-administrativa em causa. Uma procura emergente, ou seja, uma procura formulada por estratos sociais restritos mas com potencialidades para vir a ser formulada por estratos cada vez mais amplos. Por último, uma procura virtual ou suprimida, isto é, uma procura que não é socialmente formulada, ou só o é muito vagamente, mas que a ordem político-jurídica hegemónica pode ter interesse em manter suprimida ou, pelo contrário, em fazer emergir e desenvolver.

A terceira hipótese de trabalho é que as instituições e os operadores de uma dada ordem político-jurídica, quando transpostas, num contexto colonial ou mesmo pós-colonial, para outros espaços sociais, cultural e sociologicamente muito distintos dos espaços de origem, e em convivência, reconhecida ou não, com outras ordens político-jurídicas, adquirem um perfil funcional muito diferente, apesar de eventualmente manterem, no plano formal e institucional, as características originais. As "distorções" funcionais têm a ver quase sempre com a selectividade da procura sócio-jurídica, quer segundo as áreas de regulação social, quer segundo o estatuto social dos actores sociais que protagonizam a procura.

A quarta e última hipótese de trabalho do presente projecto de investigação reside em que, em face das "distorções" referidas, problemas e conflitos com dimensão jurídica, que no espaço de origem são canalizados para a ordem sócio-jurídica hegemónica, são, nos espaços de recepção, canaliza-dos para instituições e operadores de outras ordens reguladoras em circulação na sociedade (mecanismos informais, não oficiais, de prevenção e de resolução de conflitos, estruturas comunitárias de diversa índole). Estes mecanismos informais podem ser, quanto à sua funcionalidade, eficazes ou ineficazes; quanto às suas relações com a ordem sócio-jurídica hegemónica, legais, ilegais ou mesmo alegais. Em situações sociológicas de pluralismo jurídico, sobretudo em períodos de transformação jurídico-política, a avaliação do desempenho social destes mecanismos depende sempre de um critério ético-político mais do que dum critério técnico-jurídico. Se alguns deles devem ser tolerados ou até apoiados, outros devem ser reprimidos, sobretudo no caso daqueles que para além de ilegais atentam contra princípios político-filosóficos básicos, sejam eles os direitos, as liberdades e as garantias consignados constitucional-mente, sejam eles a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Tanto na avaliação sociológica, como na avaliação ético-política dos mecanismos informais de prevenção e de resolução de conflitos, é importante fazer uma distinção entre dois tipos de conflitos sócio-jurídicos: os conflitos entre actores ou grupos sociais dotados de equiparável poder e competência social, como, por exemplo, um conflito entre vizinhos, um conflito entre trabalhadores, ou mesmo um conflito no interior das famílias, excepto nos casos de estruturas familiares vincadamente patriarcais, e conflitos entre actores ou grupos sociais dotados de poder e competência social estruturalmente desiguais, ainda que as desigualdades possam empiricamente ser maiores ou menores; por exemplo, conflitos entre inquilinos e senhorios, entre invasores de terras e proprietários, entre operários e patrões, entre consumidores e produtores. A importância desta distinção reside em que os meca-nismos informais tendem a combinar a eficácia com a estabilização e até aprofundamento das desigual-dades de poder e competência social.

São estas as hipóteses de trabalho principais que presidem ao projecto de investigação em curso. Orientados por elas e munidos da metodologia atrás referida procedemos à investigação empírica ou de campo, uma investigação ainda em curso, pelo que os resultados apresentados a seguir são parciais e provisórios.

III O TRIBUNAL JUDICIAL DE MACAU

Numa investigação sobre resolução de problemas e conflitos sócio-jurídicos em contexto social de pluralismo jurídico faria, sentido começar por analisar o desempenho funcional do mecanismo formal de resolução de conflitos da ordem jurídica hegemónica, isto é, o Tribunal Judicial de Macau. Estando nos planos de investigação avaliar tanto o domínio cível como o domínio criminal, optámos por iniciar o trabalho pelo domínio cível, uma vez que é nele que se consubstancia a procura e o consumo voluntários da ordem jurídica.

Tomando como fonte de informação os registos dos livros de porta cível das três secções do Tribunal, criámos uma base de dados sobre a actividade judicial em matéria cível dos últimos trinta anos (1960-1989). Foram introduzidos no computador para tratamento estatístico os seguintes dados referentes a todas as acções cíveis promovidas durante este período: identificação dos sujeitos, tanto do demandante como do demandado, em termos de etnia e de estatuto de pessoa individual ou de pessoa colectiva; natureza da acção; duração da acção; e existência ou não de recurso. Com base nestes dados é, pois, possível saber com razoável rigor quem utilizou o Tribunal para quê e contra quem.

Com objectivo de tomar possível uma análise sociológica mais fina e detalhada do movimento judicial procedeu-se a uma amostragem de 5% do universo das acções cíveis, uma amostragem estratificada segundo três tipos de acções: comuns, especiais e executivas. Esta amostragem foi recolhida em 5 conjuntos de dois anos considerados estratégicos para caracterizar a periodização do movimento judicial (1960-61; 67-68; 74-75; 80-81; 88-89). Para os casos recolhidos na amostragem é possível obter informação mais detalhada sobre o estatuto sócio--profissional e a classe social das partes. É também possível proceder a uma análise de conteúdo sociológico do objecto da acção, dos articulados e da sentença feita com dois objectivos principais: caracterizar sociologicamente a problemática sócio-jurídica em apreciação e determinar em que medida a natureza multi-cultural e jus-pluralista desta sociedade penetra na argumentação jurídica oficial.

A análise dos dados está ainda em curso. Dos tratamentos estatísticos já realizados sobressaem alguns resultados importantes:

Em primeiro lugar, o movimento judicial é baixo e regular no sub-período de 1960-75. Aumenta moderadamente no sub-período 75-85 e conhece um aumento explosivo a partir de 1985 (Quadro 1).

QUADRO l

DISTRIBUIÇÃO ANUAL DAS ACÇÕES JUDICIAIS CÍVEIS (1960-1989)

Este perfil evolutivo é ainda mais vincado quando analisamos em separado as acções de actores chineses, entendendo-se por tal os indivíduos de etnia chinesa, um procedimento, aliás, que se justifica plenamente, não só porque estamos interessados em identificar os problemas sócio-jurídicos da comunidade chinesa, mas também porque eles constituem a esmagadora maioria dos que recorrem ao tribunal. Das 7.810 acções só 568 são de autores portugueses e o recurso destes ao tribunal é extremamente selectivo: 37,7% das acções são divórcios por mútuo consentimento ou litigiosos e a quase totalidade teve lugar no sub-período 1976-1989.

O segundo resultado é que a actividade judicial é bastante selectiva e a explosão no sub-período de 1985-89 deve-se a variações drásticas, em relação à média do período total, num reduzido número de tipos de acções. De novo, com referência exclusiva às acções de autores chineses, são particularmente significativas as seguintes variações (Quadro 2).

Assim, os inventários facultativos aumentam 100,7%,as justificações judiciais aumentam 82,5% e os divórcios por mútuo consentimento aumentam 43,8%.Mas, pelo contrário, os despejos diminuem 62,8% e as justificações da qualidade de herdeiro diminuem 51,1%.Dado o seu peso relativo no conjunto das acções propostas por autores chineses, são particularmente significativos o aumento das justificações judiciais (no período 60-89 constituiram 15,2% das acções e no período 86-89,27,8%) (Quadro 3) e a descida dos despejos (no período de 60-89 constituiram 16,4% e no período 85-89,6,1%) (Quadro 4).

Estes e outros dados já obtidos permitem-nos concluir com alguma segurança o seguinte:

1. A sociedade chinesa de Macau criou um padrão de utilização do tribunal cível que se manteve estável até à década de 80. Esse padrão caracteri-za-se por uma procura relativamente baixa e bastante selectiva, pelo que é de admitir que a maior parte dos litígios suscitados no decorrer normal da vida jurídica desta sociedade tenham sido resolvidos em instâncias informais e não oficiais de resolução de litígios existentes no seio da comunidade.

2. Este padrão sofre uma alteração a partir da década de 80, uma alteração que é de início moderada e depois, a partir de 85-86, brusca. Dir-se-ia que o próprio aumento da população explica tal alteração. Mas esta explicação só seria decisiva se o padrão de recurso ao tribunal se mantivesse qualitati-vamente estável, ainda que a um nível quantitativo mais elevado. Ora, não é isto o que sucede. As variações em relação à média do período anterior são importantes.

QUADRO 2

VARIAÇÃO NO PERIODO 85-89, RELATIVAMENTE A MÉDIA DO PERIODO 60-89 (AUTORES CHINESES)

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desde a p. 125
até a p.