O Comércio

A VIRAGEM DO SÉCULO E O ESCRITOR DE MACAU

Graciete Batalha

Sobre o tema central deste Congresso não nos pareceu, ao meu ilustre confrade Dr. Henrique de Senna Fernandes e a mim, que pudéssemos adiantar algo de novo ao que tem sido dito pelos distintos escritores aqui presentes. Nem que pudéssemos muito à vontade dissertar sobre o que sejam os problemas ligados à criação literária neste virar de século ocidental.

Não que em Macau estejamos completamente alheios ao que aqui se passa, mas enfim, estamos do outro lado do mundo, onde as realidades são inteiramente diferentes daquelas com que nos podemos confrontar no Ocidente.

Pensámos então que seria de maior interesse uma referência, forçosamente breve e incompleta, à literatura actual de Macau, aqui possivelmente pouco conhecida.

Digo forçosamente breve, porque a literatura de Macau é de pequeno volume, embora considerável relativamente ao espaço geográfico em que se desenvolve; e porque o tempo de que dispomos nesta tribuna é limitado; e ainda, principalmente, porque o tempo que nos foi dado para preparação foi terrivelmente escasso, menos de duas semanas... Henrique de Senna Fernandes, assoberbado com assuntos do seu escritório de advogado a ultimar, não pôde colaborar nesta pequena comunicação, pelo que, das inexactidões ou deficiências da mesma sou eu unicamente a responsável.

Voltando atrás, disse literatura de Macau e não literatura macaense, porque de macaense é mais a temática do que a autoria. Os autores são geralmente escritores que por Macau passaram com maior ou menor demora, mas aos quais a originalidade ou a magia do caso úni-co que é Macau tocou na "corda sensível". Ou então pessoas que aí se radicaram para uma vida, como eu própria. De escritores macaenses vivos, espectadores, portanto, e participantes, dolorosamente participantes, neste virar de século, apenas poderei citar dois: Senna Fernandes, contista e romancista, e José dos Santos Ferreira, poeta de características populares (na sua obra, que não na sua pessoa), pois se exprime essencialmente, na escrita, na velha "língua de Macau" ou língua macaísta (lín gu maquis-ta), o dialecto português antigo (que em Macau foi falada durante séculos, que Santos Ferreira aprendeu na infância com seus pais e avós e que hoje já quase ninguém fala.

Este é o poeta que mais abertamente canta -- ou chora -- a angústia que para todo o macaense é este próximo final de século -- o ano de 1999 em que, no dia 20 de Dezembro, a bandeira portuguesa será substituída pela bandeira de China.

Há quem pense em Portugal que para o macaense esse será um dia banal ou até de regozijo, porque afinal é chinês e, coitadinho, tem sido colonizado há quatro séculos pelos portugueses. Isto está tão longe da verdade como nós estamos, aqui, longe de Macau. Nem para o chinês de Macau essa será uma data feliz, pesem embora certos dizeres oficiais, e a prova é que todo aquele que tem possibilidades económicas de o fazer está comprando casas e propriedades em Portugal ou no es-trangeiro e tentando a todo o custo assegurar um passaporte português. Mas este chinês terá sempre uma pátria onde poderá voltar, uma China eterna que poderá caminhar por caminhos muito diferentes dos actuais e onde o expatriado eventualmente se voltará a fixar. Ao maca-ense foge-lhe o chão debaixo dos pés e sabe que esse chão jamais voltará a ser o mesmo chão onde nasceu.

Eu creio que será talvez necessário definir, uma vez mais, o que é um macaense: não é, como aqui se julga, todo o natural de Macau, de etnia chinesa ou não. Macaense é o natural de Macau, com algum cruzamento chinês ou de milhentos sangues, mas sempre com ascendência portuguesa próxima ou remota. Distingue-se perfeitamente do chinês circundante, senão fisicamente pelo menos culturalmente, sempre se considerou e sempre foi de nacionalidade portuguesa, mas, fundamentalmente, é "filho da terra","filho de Macau", "filo Macau" no patoá antigo. Os próprios chineses de Macau fazem uma distinção muito nítida entre si e os macaenses. Se perguntarmos a um chinês, mesmo nascido em Macau ( a maior parte deles são imigrados para a cidade "dos estrangeiros" há uma ou duas gerações), se é Ou-Mun ian, gente de Macau, ele responderá imediatamente: M'hái! ngó Chung Kuók ian! (Não, eu sou gente da China). E só o macaense, tal como o defini, é Ou-Mun ian, gente de Macau, macaense. (Ou-Mun é o nome que os chineses dão a terra: Ao-men no dialecto oficial de Pequim). Isto dirá o chinês comum, embora esteja actualmente bastante em voga um chinês assumir-se como Ou-Mun ian, porque isso condiz com o seu passaporte...

José dos Santos Ferreira, Adé, como é conhecido em Macau, faz poesia em patoá mas seguindo os processos tradicionais portugueses, como aliás todo o poeta macaense desde os tempos mais antigos. Como também já disse noutro lugar, a poesia macaense foi sempre de raiz ocidental e não tem nada a ver com a poesia chinesa. Adé tem publicadas várias colectâneas de poesia, geralmente de carácter jocoso, mas em Macau, Jardim Abençoado, de 1988, abre precisamente com um poemazinho onde é evidente essa angústia da perda de Macau para os macaenses. Vou lê-lo em parte, tentando imitar a pronúncia do dialecto:

    Nosso Macau, tera sánto, 
    Sá unga jardim bendito
    Co fula di más bonito
    Semeado na tudo cánto
    
    Tudo sã fula abençoado
    Pôs Dios j 'ajudá semeá. 
    Gente antigo regá
    Co lágri adocicado. 
    
    Coraçám triste, churá, 
    Alma ficá margurado
    Si têm gente mal-prestado
    Dessá fula cai, muchá. 

E termina:

Vos n' é bom disparecê, Macau, jardim abençoado. (1)

Mais concretamente, refere--se noutro poema (p.41) ao fatal dia de Dezembro de 99:

Vinte di Dezémbro ano novénta nóvi

Pramicedo na Macau. Céu iscuro como bréu, Chám di rua sopa-sopa mulado; Parede tão corê águ

Sã di chuva? Sá di humidádi? Quim sabe si nom sã di lágri? (2)

(1) Fula -- flor. Sã -- é, são. Lágri -- lágrima. Dessá -- deixar. Muchá -- murchar.

(2) Pramicedo -- de manhã cedo. Sopa-sopa mulado -- molhado como sopa. Águ -- água.

Esta angústia da incerteza quanto ao destino da pequena "cidade sem amanhã" não é, contudo, recente.

Já em 1953 um poeta de Macau mas não macaense, o Pe. Benjamim Videira Pires, S. J., historiador distinto e galardoado aí residente há muitos anos e também dado às musas suaves, dizia num soneto reproduzido em Espelho do Mar (Macau 1986, p.57), dirigindo-se à "Senhora de T'oi Sán e da fronteira":

Que futuro, Divina Mensageira, descobre para nós o teu olhar? Nesta hora, a Cidade iluminada é uma flor de nenúfar delicada, pairando sobre medos e cansaços... Senhora, não reveles o destino; Macau prefere a sorte dum menino que dorme, confiado, nos teus braços!

E mais tarde, em Descobrimento (Macau,1958, p.89):

    Lancei aos ares
    o passarinho
    cantando. 
    
    Larguei aos mares
    o meu barquinho
    sonhando. 
    
    Olhos, que vistes
    a ave a subir! 
    Lábios que sentistes
    o barco a passar! 
    
    O passarinho
    onde foi a cair? 
    
    O meu barquinho
    onde foi a aportar? 

Recentemente, um poeta de conhecido nome, embora controverso, António Manuel Couto Viana, escreveu sobre Macau uma série de poemas reunidos no volumezinho No Oriente do Oriente. Desse volume disse o Prof. Joaquim Manuel Magalhães num magnífico ensaio sobre o mesmo: "Atravessa estes poemas o trauma do fim absoluto de um Portugal mais vasto do que o das fronteiras europeias em que Couto Viana acreditou, por que lutou em cuja derrota se sentiu perder(...) E Macau pode surgir como o último reduto emblemático desse sonho de um sonho. E o menos difícil de enfrentar: pois Macau nunca se perdeu ou perderá porque nunca foi plenamente Portugal, sempre se manteve como China". Isto, com perdão do Prof. Joaquim Maga-lhaães, é desconhecer completamente Macau, o que, aliás, confessa no mesmo artigo.

Couto Viana, que esteve em Macau tempo suficiente, não comunga desta afirmação, não pelas suas convicções políticas, creio eu, mas porque, como outros poetas que citarei, intuiu o que há de dramático no desmoronar desse pequenino mundo, mesmo pequenino como é. O que para o macaense é mais do que dramático, e trágico, é o desmoronar do seu mundo.

Diz Couto Viana no poema No Farol da Guia (farol que é simultaneamente luz de guia para os marítimos e o local dos sinais convencionais de aviso de tufão):

    Pedi ao farol da Guia
    Pra que a nau não naufragasse
    Na noite que for o dia, 
    Que fosse luz e guiasse. 
    
    E pedi mais: 
    Que baloiçasse no ar
    Os sinais
    Do tufão que vai chegar
    Pra que ao abrigo do cais
    A nau achasse lugar
    
    E o primeiro farol
    De aviso à navegação
    
    No mundo onde nasce o Sol
    Não me disse sim nem não. 

Outro poema, referente é Gruta de Camões, termina:

Mas eu sei (eu que sou vate e o vate vaticina)

Que estrofes de Camões, asas em liberdade,

Certa manhã de dor, soltas desta colina,

Irão poisar, pulsar, na alma da cidade.

Citarei seguidamente outros poetas, mas devo dizer, entre parênteses, que neste começo por Couto Viana ou na ordem que vou seguir não há de modo nenhum uma intenção hierarquizante nem cabem neste pequeno trabalho juizos de valor. Seguirei talvez, naquilo que tera de ser apenas quase uma lista de citações, uma certa ordem cronológica.

Diz Jorge Listopad em 1986, no seu breve volume de prosa poética Novos Territórios (p.8):

Noite sobre Macau

Há esta noite. Nenhuma outra. Macau e um ponto escuro no mapa-mundi imaginado. Os cães nefandos ladram, a Ásia passa (...).

Amanhã não há outro dia. Amanhã não há amanhã.

Alberto Estima de Oliveira, residente em Macau há anos e autor de vários livros de uma poesia em que, singularmente (porque não é usual), parece haver contactos com a poesia chinesa, extremamente sintética, insiste particularmente no diálogo impossível entre dois mundos estranhamente paralelos. Assim, em O Diálogo do Silêncio, de 1988 (p.27):

    entre luzes
    um lago metálico
    e mar de barro
    daqui
    o arame farpado
    do outro
    o outro lado 

Jorge Arrimar, o poeta de temas africanos e mais ultimamente, em 1990, de temas macaenses, em Fonte do Lilau (uma velha fonte a cuja água se atribuía a virtude de fixar as pessoas em Macau), escreve no poema Angústia (p.27):

    O nevoeiro enrola-se
    (des)cobrindo templos
    e credos... 
    e o mistério cola-se
    à pele como musgo. 
    A minha angústia
    é de lodo
    e jade, 
    a deusa milenar
    que abraça
    com sabedoria
    e ameaça... 

Também em 1990 José Augusto Seabra, numa edição bilingue (português-chinês) da obra Do Nome de Deus termina o livro com Da Profecia:

    Quando só formos
    a vela alta
    e diluída
    sem mastro nem
    flâmula ardendo, 
    que âncora ainda
    anunciará
    na desmemória
    outro Oriente? 

António Correia, mais uma longa paixão por Macau, e que teve a gentileza de me facultar o manuscrito duma colecção de sonetos seus intitulada Amagau, meu Amor, a publicar em breve, é mais explícito nos sonetos finais Angústia e Tristeza de que lerei alguns versos:

Angústia

    Demoro a minha ideia à borda- [-d'água
    saudosa, embalada num tancá; 
    caravelas de outrora já não há; 
    só das velas um junco acende a [ frágua. 
    
    O passado ali mora, com a mágoa
    dum porvir, que e incerto e que fará
    olvidar o amor em patuá, 
    sonho doce a vogar sobre uma [tábua. 
    
    Na angústia, o tempo se escoa, 
    sem ninguém bem saber a fé que [tem; 
    emigrar, sim ou não?! Partir à toa? 

E nos tercetos do segundo:

    Dia a dia um amigo vai partindo; 
    é a alma que fica esfrangalhada; 
    começa a desfazer-se um sonho [lindo. 
    
    Para os States, Austrália, Canadá, 
    devagar, devagar, a debandada
    vai deixando a tristeza almorar cá. 

Angústia, angústia, angústia... Não direi propriamente que o tema prevaleça, mas certamente pervaga em toda a poesia actual de Macau.

E só falei, até aqui, de poetas. Parece que o solo de Macau é mais propício ao desabrochar da poesia... Ou por isso, ou porque a prosa é mais coibitiva da emoção, o assunto em foco e menos frequente nos prosadores. O próprio Senna Fernandes, duma antiga família macaense e que tantas vezes, em entrevistas na Rádio e na Televisão de Macau, se tem referido, com amargura, à possível perda da identidade do seu povo, não alude a esse problema nas suas obras. Aludo eu, em prosa e verso, no último livro que publiquei, mas não vim aqui falar da minha pessoa.

Posso dizer, portanto, que, em prosa, é no jornalismo que o problema tem sido repetidamente focado. Neste campo é de salientar o nome da macaense Cecília Jorge, mas é dum outro jornalista a única obra que conheço a ele inteiramente dedicada.

Trata-se da reportagem, mais ou menos romanceada, de Meira Burguete, intitulada Passaporte Português (Macau,1990) que tem o interesse de nos dar a conhecer os sentimentos e opiniões de algumas personagens chinesas quanto à integração de Macau na Administração Chinesa. Sentimentos e opiniões bastante negativos, diga-se de passagem.

Não quereria terminar sem uma referência, mesmo brevíssima, aos escritores chineses de Macau. Devo confessar, com pena, que pouco os conheço. A barreira da língua é sempre um óbice tremendo.

Nós, em Macau infelizmente, não lemos chinês, nem os escritores chineses, normalmente, aliás como outros intelectuais ou artistas, falam ou lêem português.

Contudo sei que há actualmente em Macau uma pujante geração nova de poetas, geralmente agrupados em associações como o Clube dos Poetas de Maio, com várias colectâneas de poemas, algumas editadas com o apoio do Instituto Cultural de Macau, porém sem traduções. Todos sabemos também como é difícil encontrar tradutores.

Tenho procurado, ao menos, informar-me sobre o conteúdo dos poemas, mas tudo o que apurei é que se trata de uma poesia lírica sem qualquer conotação política ou relação com os sentimentos portugueses que tentei pôr em foco. O que é natural e compreensível.

desde a p. 184
até a p.