Artes

DEMÉE
REGRESSO A UMA ADMIRÁVEL COMARCA

Joaquim Matos Chaves

Perante cada obra de Luís Demée, pelo menos diante da imensa maioria dos seus quadros, ocorre imediatamente o belíssimo verso de Alexandre O'Neil: "das suas mãos saíam - saem - gestos de pura transformação". Ocorrência que também se verifica diante da obra de muitos outros artistas mas que perante a sua ressalta com uma nitidez tal que de alguma maneira o fruidor se sente avassalado por esse valor. E isto porque é uma transformação que é ao mesmo tempo um fascínio. Ou ocasião de fascínio.

Entre as várias razões de encantamento, uma permite também convocar outra associação com um fragmento de outro tecido poético. Agora do italiano Ungaretti: Porque, com efeito e com frequência, com muita frequência, cada obra sua se constitui no que o poeta de "Sentimento do Tempo" escreveu. Como destino do homem que não se destitui do seu destino de homem e independentemente de exercer se ele onde se exerce. Escreveu Ungaretti: "Mas das suas mãos febris saem apenas, sem ter fim, limites". O que em arte se constata com mais facilidade e que, sem dúvida, na pintura de Demée se constata mesmo com um olhar menos atento.

Se a distinção entre os diferentes limites que os trabalhos do pintor constituem é uma subtil distinção, ela é tão subtil como suficiente, clara. E eles são os limites de uma sucessão de inesperados momentos de fruição onde sempre comparecem essas exigências da modernidade que são, por um lado, a aventura da imaginação e a não menor aventura dos sentidos. Reunidas, ambas se convertem numa aventura poética, expressão que surge aqui, afinal, como sinónimo da fruição que favorece.

Sem título,1988 (acrílico sobre tela,114x146cm)

A fruição em pintura é sempre a fruição dum espaço. Espaço, por sua vez, organizado muitas vezes segundo a experiência de um outro espaço, o espaço da percepção empírica. Neste caso, hoje, o que se consegue, melhor ou pior, é uma memória, uma recordação. Toda a arte que imprimiu, e imprime, carácter ao século XX, questionou este princípio e desarticulou, descons-truiu, as soluçõesa que conduzira. O espaço pictórico passou, assim, a organizar-se segundo ditames pró-prios. Ditames que não impediram soluções multiplas embora a assunção da superfície esteja em todas as mais radicais formulações e mesmo, como valor, em estéticas bem outras. Demée é um admirável exemplo da mencionada assunção do espaço pictório como superfície. E admirável sobretudo porque o soube fazer de um modo muito pessoalizado. Tanto quando cultivou uma menor regularidade morfoló-gica, como quando "incorreu" numa tentação de rigorismo geométrico ou quando "incorreu" em figuras de sugestão volumétrica. Nesta última situação os fundos garantem-no.

Aludiu-se a uma assunção pes-soalizada do novo entendimento do espaço em pintura. Ela decorre em Demée do facto de ele se materializar como cor e se substantivar como cor e como luz.

Ostensivamente nos quadros em que os fundos são os grandes protagonistas, menos ostensiva-mente nos trabalhos em que a presença das formas prevalece, sobretudo naqueles em que as formas aparecem dispostas de uma maneira que obriga a dizer que elas se impregnam umas nas outras e impregnam o fundo da sua própria constituição. Estabelecem-se então conjuntos onde a definição dos contornos se atenua ou é até bani-da. Agora a superfície é ela mesma problematizada, interrogada, posta em causa. Podem, no entanto, surgir formas de claro contorno, mas elas são sempre formas cuja razão é meramente plástica e não formas que são ainda figuras, imagens. Repetidamente, e porque a definicão desaparece, impõe-se referir a importância da mancha. Ela tem no conjunto da obra do pintor um papel decisivo. O papel de sugerir as energias, contidas energias, que se desenvolvem sobre um campo que, graças as características cromáticas, é já um campo pleno de vibracão. Capaz ainda, pelos índices rumínicos das cores, de se tornar em portento-sas irradiacões. E são irradiacões porque parecem possuídas por um magnetismo que mantém o olhar cativo, cativo e surpreendido. Sur-preendido até quando a demora se alarga, num exercício de fascinação maior. Demora pontuada por momentos de magia, uma magia de que os responsáveis são directos e imediatos: um vermelho, um azul, um amarelo, etc. Que segredo será, pois, o desses vermelho, amarelo, azul? Um ser e um estar único e inconfundível, um ser e um estar que dispõem de um poder superlativo de sedução. Sedução conseguida tanto pela compleicão matérica que patenteia como pelos teores tímbricos exibidos. Opacidades consistentes que se combinam com transparências etéreas, cores som-brias associadas a fulgores mais amplos ou mais restritos.

Se a cor e a matéria, onde a presença dum saber manual traduz quer a procura lenta e maravilhada do proceder, quer a presença de certos impulsos que são outros tantos registos da natureza profunda do artista, são importantes, importantes são igualmente as morfo-logias em que se resolve. Há que reparar no seu fazer desfazer até ao desenlace em que a superfície se perfaz e mostra sinais aparente-mente espontâneos. São poderosos factores de uma desordem que não é senão uma ordem outra. Mais profunda.

O que é particularmente signifi-cativo e perturbador. Porque na pintura de Demée a presença do motivo é frequente. Motivos que são, as mais das vezes, motivos de ordem arquitectómica e urbanística.

Mas as suas fisionomias trans-figuram-se em formas pictóricas de um modo que os motivos só surgem de modo elíptico e os recursos plásticos investem-se de toda a sua evidência. É assim uma admirável lição das coisas pois se permite manter o vínculo entre o motivo e a sua expressão sem consentir que esta seja uma expressão sujeitada. Pelo contrário, ela é liberta. Só assim são possíveis as incursões no desconhecido que promove. Com o que se institui em desvelamento, no sentido que ao termo conferiu Heidegger. É tudo como se um enorme silêncio envolvesse tudo. Um silêncio e uma serenidade. Mas um silêncio e uma serenidade que não deixam de ser energias, forças. Forças que se equilibram entre a tentação do centro e a tentação da dispersão, entre a estabilidade que segura e a instabilidade que não é um desenfreio suscitando mesmo uma ordem da desordem. Uma é geradora da outra, como a outra é geradora da primeira. Logo as cau-salidades de um só sentido perdem--se. O que nem pode surpreender numa arte a que não são estranhos valores de cunho panteísta. O cosmos, segmentos do cosmos, o homem, não são outra coisa que uma mesma coisa. E as fixações de Demée apresentam-se como uma perspectivação dessa essencial unidade.

Nuclearmente implosiva esta pintura proporciona então, e globalmente, um acontecimento. Acontecer poesia. Faz-se facto poético na sua qualidade de facto pictórico.

desde a p. 165
até a p.