Poesia

PALAVRA — PENSAMENTO: ALGUMAS DIFERENÇAS DOS "MUNDOS" CHINÊS E OCIDENTAL

Fátima Gomes*

A actividade racional, o pensar, é comummente aceite como a actividade defínitória da humanidade a par, é claro, de muitas outras características igualmente importantes como o sentir, o viver em comum de forma ordenada ou a capacidade de produzir cultura, entre muitas outras mais ou menos decorrentes destas.

Estreitamente ligado ao pensar está o comunicar pela fala, e a sua fixação em sinais que constituem os signos escritos os quais, na sua perduração, integram a memória sócio-cultural a qual enriquece enormemente a memória genética da espécie. Bom, parece pacífico afirmarmos que para lá de todas as divergências entre os mundos chinês e ocidental, as reais e as das análises teóricas, há pelo menos um horizonte comum, universal portanto, que é o do sistema de signos durável, inequivocamente ligado ao pensar, e que nesta sua existência solidária nos constitui como seres autónomos que ultrapassam os limites da natureza biológica e geográfica e criam uma outra natureza: a cultura.

Sem dúvida que a cultura não é equivalente a linguagem no sentido estrito de um código de comunicação organizado por signos mais ou menos aleatórios e convencionalmente significantes; mas a cultura pode ser entendida como linguagem quando percebemos as concretizações de qualquer espécie como elementos significativos de e para um grupo humano que assim comunica uma experiência de vida única e define um universo de sentido que permite aos seus membros comunicarem/con-vi verem.

Tendo determinado estas premissas parece-nos que a reflexão sobre as evidentes diferenças do "estar no mundo" chinês e ocidental, que se tematizam imediatamente nas línguas escritas, pode ser proveitosamente dirigida para um encontro do ponto de convergência que necessariamente se tem que situar num dos aspectos universais da constituição do homem como tal, para lá de todos os condicionalismos circunstanciais.

Numa primeira abordagem deve ser explicitada, como característica comum, a interdependência entre a linguagem e a orientação do pensamento como um universal e postularem-se, então, as divergências que esse pensamento reveste e que o torna único. E não tendo este texto uma dimensão conclusiva, através de um qualquer método expositivo e com base numa investigação bibliográfica séria, mas tão só um carácter introdutório de levantamento de algumas questões e de articulação de princípios de respostas (a serem um qualquer dia desenvolvidas), motivadas ainda por leituras dispersas e uma vivência circunstancial num local que leva à transformação de preocupações teóricas em problemas vividos, o horizonte alargado do universalmente humano permite ultrapassar a necessidade de recurso à exposição e confronto de teorias linguísticas ou filosóficas que justificariam as afirmações, de outro modo, subjectivas. Assim, as ilações que forem sendo extraídas ao longo deste texto devem ser lidas dentro de um quadro restringido pelas limitações enunciadas acima, decorrentes da natureza do próprio texto, e como tal serem consideradas provisórias. A sua temporalidade restrita não as torna, no entanto, menos verdadeiras mas tão só expressões do estado actual de uma preocupação teórica antiga relativamente a determinadas questões, nomeadamente, a compreensão das categorias e supostos do pensamento chinês. Será para a apresentação de um quadro coerente e articulado do que podemos chamar uma filosofia chinesa que esta reflexão introdutória se desenvolve, deixando este objectivo final como um horizonte a realizar-se num texto futuro.

Assim, abordaremos alguns aspectos característicos das diferenças da língua chinesa, relativamente às línguas ocidentais, os quais se apresentam imediatamente como indicadores de um pensamento que se manifesta em gestos culturais estranhos ao modelo ocidental. E se esta alteridade manifesta encontra na história do pensamento chinês alguma justificação é ainda através da linguagem que se constrói, tecendo uma malha cultural que se manifesta maximamente num determinado sistema de valores, numa cosmovisão partilhada que determina uma concepção particular do propósito da vida humana dando-lhe assim um sentido. O desenho desta cosmovisão não será ainda o resultado deste texto, mas tão só o seu horizonte de sentido, indiciado através da perspectivação da diversidade da língua chinesa em dois níveis distintos de análise: um a que poderíamos chamar de "imediata" e que reúne as considerações decorrentes dum contacto imediatista com o chinês escrito e, um segundo que, por se situar na área dos resultados da análise linguística, se pode apelidar de "teórico".

I- DIVERGÊNCIAS IMEDIATAS: UM PERCURSO DA LINGUAGEM AO PENSAMENTO

Uma das diferenças mais marcantes entre a língua chinesa e as línguas ocidentais nasce da sua estruturação em unidades simbólicas ou sinaléticas — no sentido estrito em que a sua estrutura material remete em si própria para um sentido inicialmente representado, "desenhado" —, contra a unidade abstracta, convencionada, genérica, a que chamamos palavra. A palavra não refere imediatamente as coisas mas uma ideia das coisas. É o resultado de uma elaboração psicológica — o processo de "formação de conceitos" — que regula a relação razão-realidade e que faz com que as ideias sejam o referencial em relação ao qual se traduz qualquer língua (a tradução é de sentidos expressos pelas palavras e não das palavras em si).

O chinês evoluiu de pictogramas rudimentares até aos ideogramas actuais, destacando-se da realidade mas sem nunca a perder. Esta ligação não é, no entanto, umà limitação de sentido pois os caracteres são sujeitos a interpretação, evoluem de sentidos "naturais" para dizerem sentidos abstractos, havendo casos de caracteres "inventados" para expressarem determinados conceitos teóricos. Mas, mesmo nestes casos, na "palavra", ainda que formada por um carácter duplo ou dois caracteres que caracterizam a forma mais comum actual (em que um dos caracteres encerra prioritariamente o sentido — o radical — e um outro que designa principalmente o som, mantendo no entanto um sentido próprio que é naquele composto desprezado), é a própria forma escrita, material, que é ajustada por uma articulação original de um radical a um determinado fonema.1 Assim é que muitos dos conceitos estruturantes do pensamento filosófico chinês estão ligados na sua origem à descriçao de fenómenos ou elementos da natureza, como é o caso dos conceitos basilares de Yin e Yang.2 Inicialmente ligados, respectivamente, às imagens de um céu nublado ou um local sombrio e ao brilho do sol ou ao calor de um dia de sol, vieram a designar o carácter dualista de toda a realidade e, simultaneamente, o movimento cíclico de todas as coisas que a compôem e o seu princípio regulador. E emergindo do vocabulário geográfico e astronómico tornaram-se os elementos teóricos fundamentais do que pode ser chamada uma cosmologia filosófica chinesa que, através da noção de Calendário como "lei suprema", regula ainda hoje grande parte da vida dos chineses determinando não só os dias propícios para os maiores acontecimentos da vida pessoal e social, como ainda permite aos que o sabem "ler" predizer o curso dos acontecimentos, agindo sobre eles.3

Liga-se imediatamente, e muitas vezes como resultado teórico da análise ocidental do pensamento chinês, esta questão do pictografismo fundamental da língua escrita chinesa ao pobre desenvolvimento relativo e aparente de uma filosofia chinesa, entendida aqui como uma busca teorética de princípios ou causas explicativos da realidade a qual, por sua vez, é transcrita no conceito generalíssimo de ser (é a nossa dívida a Parménides!), considerando-se antes como característico do pensamento chinês um pendor ético-político estreitamente ligado aos três grandes sistemas que dominam o universo mental chinês: budismo, tauismo e confucionismoos quais são também, e prioritariamente, religiões ou sistemas de crenças. A valorização de um pensamento pragmático, por oposiçâo a um pensamento metafísico que caracteriza o mundo ocidental desde os gregos, não deve ser vista, no entanto, como uma deficiência da estrutura linguística mas é um dos pólos da interacção entre um povo e um determinado contexto que estrutura uma língua que reflecte e, simultaneamente, contribui para um determinado estar-no-mundo. Como vimos atrás o povo chinês não tem qualquer apetência pela classificação abstracta, preferindo aos signos conceptuais os símbolos ricos de sentido real e, por outro lado não parece "estranhar" o seu lugar no mundo determinando por isto toda uma outra ordem de evolução do pensar.4 Por outro lado o período clássico da filosofia chinesa — pré-Han — corresponde a uma época conturbada em que o principal motivo de exercício reflexivo se relacionava com a ordem social e consequentemente com o indivíduo enquanto parte dessa ordem. Mais do que filosofar, no sentido especulativo do termo, os sábios chineses tentaram orientar. O confucionismo, que ainda hoje rege muitas das atitudes chinesas no campo das interacções individuais e grupais, com destaque para as relações familiares e políticas, i. e., entre governados e governantes, nasce desta necessidade de ordenar a sociedade num tempo de grande instabilidade social. E se pensarmos que depois da dinastia Han, o que se considera normalmente como o período ortodoxo do pensamento chinês, se assiste ao desenvolvimento de uma sociedade imperial que tomou os comentários como a forma valorizada de texto, e o conhecimento que os mesmos proporcionaram como O Conhecimento que permitia, por exemplo, aceder aos lugares mais altos da hierarquia social, é-nos mais fácil perceber que o conservadorismo da língua chinesa e dos seus elementos estruturais reflecte um conservadorismo fundamental do pensamento chinês desde a organização da China como nação. A ortodoxia, alicerçada numa burocratização da sociedade civil, marcou toda a China feudal até aos nossos dias, reduzindo a glosas os seus mais importantes testemunhos de reflexão, os quais se encontram nos textos atribuídos aos autores clássicos, dos quais, e das suas ideias originais, pouco se sabe realmente a não ser pelos comentadores posteriores.

Nesta tensão entre falar-pensar, em que os termos do binómio estão em mútua determinação, a língua chinesa é modelar, permitindo, quando reflectida, um acesso a um modo particular de estar no mundo, em que muitas vezes a simples decomposição de um carácter permite indiciar uma forma específica de ver a realidade.5 Atente-se por exemplo na composição do carácter shi (是) ser/estar (não posicional) ou assentir, afirmar, constituído pela organização dos caracteres relativos a sol (日), debaixo ( 下) e homem (人), que nos remete imediatamente para uma concepção materializada do lugar do homem, resumindo na sua unidade composta e interactiva todo o acento ético, prescritivo e pragmático —ligado aos fins a alcançar por um homem definido a partir da sua posição de existência — que comanda o pensamento chinês.

A reflexão sobre a língua chinesa, mesmo tomada na sua imediatez, constitui-se como um veículo profícuo de acesso ao "pensar em chinês", mesmo se muitas vezes seja mais uma intuição do que um saber sistematizado, que nos permite reconhecer o alcance de algumas composições.

II- TEORIZAÇÃO LINGUíSTICA DE ALGUMAS DIVERGÊNCIAS: UM PERCURSO DO "PENSAR SOBRE" AO "PENSAR EM CHINÊS"

Um segundo momento reflexivo leva-nos obrigatoriamente a um aprofundamento destas afirmações através do recurso a alguns elementos da teoria da linguagem e da sua articulação e tematização em aspectos mais particulares do universo mental/cultural chinês.

Partiremos aqui de duas conclusões apresentadas por Chad Hansen no texto atrás citado6 e que se resumem como:

1- as teorias da linguagem chinesas e ocidentais divergem porque os seus objectos são distintos (língua pictográfica versus línguas alfabéticas) quer na sua constituição elementar, quer no tipo de gramática que as organiza, sendo este facto, por não observado, a causa de muitas das "falsas" interpretações da língua chinesa;

2- a outra grande diferença resultante da análise linguística é a determinação de funções da linguagem muito distintas nos dois campos em apreço: a função descritiva/ representativa da linguagem, alicerçada numa tripla caracterização das propriedades dos nomes nas teorias ocidentais, não encontra eco na língua chinesa cuja função principal é socializar, regular o comportamento.

Em primeiro lugar teremos que a unidade de sentido primária é nas línguas alfabéticas a frase, e na língua chinesa o carácter/palavra.7 Justifica-se isto quer porque o carácter escrito é a forma melhor de individuação da linguagem (múltipla homofonia do chinês falado), quer porque a unidade frásica é uma forma tardia,mantendo-se uma estrutura gramatical fraca em que a ordem que as palavras ocupam na frase determina funções sintácticas diversas, e não o inverso em que são prioritariamente as funções sintácticas que são os objectos privilegiados de análise linguística. A corroborar esta afirmação está o facto de inicialmente os autores clássicos, pré-Han, escreverem em tiras de bambu ou seda e eram estas tiras as unidades de sentido individualizadas, sem recurso a sinais de pontuação, aparecendo-nos hoje como uma linguagem aforística e, talvez também por isto, mais difícil de aceder. Estamos aqui longe da consideração usual de frase ou unidade básica da estrutura da linguagem, cumprindo-se aqui esta noção através de um suporte material que passa a constituir-se como parte da língua. Veja-se por exemplo o texto Three Character Classic, compilado na dinastia Song do Sul, inspirado nos ensinamentos confucionistas e utilizado como manual de aprendizagem durante quase oito séculos, onde as "frases" se organizam em 2 grupos de três caracteres cuja leitura literal difere do sentido interpretado em unidades compostas de sentido.8

Estreitamente ligado a este facto aparece-nos a determinação ocidental do valor da frase em relação à palavra remetendo para o seu suporte mental, i. e., o juízo considerado tradicionalmente como a unidade modelar de pensamento pois é a esse nível que se coloca a atribuição de verdade ou falsidade, fundamental na compreensão ocidental do valor da linguagem e/ou da relação entre razão e realidade. A avaliação de uma frase faz-se imediatamente por uma avaliação da sua validade (formal — isto é, lógica — ou material — isto é, de adequação ao(s) facto(s) que descreve), reforçando-se assim a função prioritariamente identificadora, seleccionadora e unificadora que preside à consideração tradicional da linguagem e ao valor adjudicado a esta unidade de sentido. Daqui é decorrente uma valorização da frase declarativa como aquela que melhor capta este sentido, sendo desta que decorrem os outros tipos frásicos, considerados como secundários ou parasitários deste modelo.

No caso da língua chinesa, e como já indicámos, a frase não é uma unidade fundamental, não aparecendo como tal durante muito tempo, em primeiro lugar porque os caracteres não remetem prioritariamente para um universo de ideias que lhes serviria de suporte, mas antes na sua natureza gráfica e simbólica valem por si e em relação ao som que os reveste. O carácter remete imediatamente para um som que o constitui naturalmente e deste para a discriminação do real que promove. Assim conhecer uma palavra não é articular um som com uma ideia correspondente, mas principalmente dominar uma técnica, que permite que saber o sigificado suponha saber escrever e reconhecer um carácter. E esta técnica é social, isto é, não repousa prioritariamente num processo psicolinguístico como acontece nas línguas alfabéticas, mas é aprendido: as distinções que estabelecemos no mundo através da linguagem são aprendidas com a aprendizagem das palavras que as designam, sendo a limite impossível decifrar/ler a nossa linguagem interior se não dominarmos a escrita e leitura.9

À luz desta caracterização poderemos talvez avançar um passo mais na tentativa de compreensão de alguns dos sinais mais singulares que exprimem o universo mental chinês: o facto de os textos catalogados como clássicos da filosofia chinesa, que nos chegam na maioria através de comentários mais ou menos tardios, se apresentarem mais como colecções de frases (ou melhor, justaposições de caracteres) que os aproximam mais de um sentido de sabedoria (sagesse) do que de filosofia tal como a entendemos a partir da sistematização grega. Estaríamos aqui, com todos os perigos de traduções transculturais, muito mais perto dos filósofos pré-socráticos do que de Platão ou Aristóteles, particularmente na forma como o saber se soube deixar dizer. Esta sabedoria, raramente traduzida em exposições dogmáticas e de que não conhecemos o texto original, associa-se ao desconhecimento quase total que temos hoje sobre os grandes nomes da filosofia clássica chinesa, apresentando-se estes escritos mais como uma tradição do que um documento de autor. Com isto queremos realçar o facto da ausência, no período clássico da filosofia chinesa, de um sentido de texto que seria inequivocamente marcado pela singularidade psicológica de quem o produz.

Com esta ideia voltamos a afirmar doutro modo o carácter não conceptual que apresentámos como característico da linguagem chinesa enquanto objecto de análise. E é na sequência desta linha de reflexão que podemos determinar como fundamentais alguns conceitos do pensamento chinês estreitamente ligados aos caracteres que os manifestam e aos contextos interpretativos em que ocorrem. Cada carácter funciona na referência que estabelece em relação a todos os outros, com os quais interage no interior de um texto atribuído a um autor, que deste modo aparece como figura próxima do entendimento de autoria como expressão, "voz", de um tempo/espaço determinados, mais do que como pessoa marcada fundamentalmente pela subjectividade.

III- A SINGULARIDADE DAS DIVERGÊNCIAS: O EXEMPLO DO CONFUCIONISMO

Algumas considerações sobre as relações entre linguagem e pensamento permitem-nos uma perspectiva mais alargada e nítida do que é considerado o grande sistema chinês de pensamento, e que, por aceitação, recusa ou renovação, marcou decisivamente o modo de ser chinês até hoje. Tal é o confucionismo.

Por outro lado é esta uma doutrina exemplar para compreender o que temos vindo a afirmar, e que se sintetiza na estreita correlação do pensar com o falar, ou melhor, escrever, e que na língua chinesa adquire especificidades importantes para uma compreensão mais global das articulações e interacções daquelas duas esferas. Assim é, como vimos rapidamente, a possibilidade de uma outra compreensão do sentido de autoria (ou sua ausência explícita) e das suas implicações, bem como da estranha aliança entre "o dizer" e a forma como se "escreve" esse dizer (capacidade representativa dos caracteres e sua dimensão plurissignificante, correlativa muitas vezes da própria evolução histórica ou da "necessidade"/"capacidade" dos autores e/ou comentadores), tendo este jogo polissémico como seu horizonte de compreensão o privilégio reconhecido à função socializante da linguagem e a forma como esta se tematiza no próprio conteúdo do que é dito. Não se trata aqui tão só da forma exterior com que se reveste a "exposição" da doutrina, mas do próprio espírito desta doutrina a "misturar-se", a definir fins orientativos e orientando, no mesmo movimento em que se expôe. Passemos então a esta exemplificação que não deve ser tomada como uma exposição do confucionismo mas como um uso desta teoria a favor de mais clareza na compreensão do jogo entre palavra e pensamento, tal como se desenvolve no seio do universo clássico chinês limitado. A um conhecimento reduzido do que foi a vida de Confúcio10 acrescenta-se um desconhecimento maior da sua obra, tendo os textos que hoje lhe são atribuídos chegado até nós através de comentários, glosas, obras de discípulos mais ou menos distantes no tempo, formando um conjunto conhecido por Os Quatro Livros (O Livro do Grande Conhecimento — Da Xue —, A Doutrina do Meio Justo ou da Medida — Zhong Yong —, Analectos ou Discursos — Yun Lu Chi Chu — e o Livro de Mêncio), sendo normalmente os Analectos considerada a fonte mais fidedigna do pensamento original de Confúcio.11

O confucionismo expresso, tanto quanto conhecemos, em pequenos diálogos — de constituição estruturada em justaposições de palavras que são frases — entre Mestre e discípulos é uma teoria ética de carácter pragmático, i. e., uma proposta filosófica que tem por objectivo melhorar a vida dos indivíduos e da sociedade através da restauração da ordem político-social, remetida simbolicamente para a figura exemplar do Imperador justo,12 e realizada na imagem de uma sociedade dominada por relações interindividuais harmoniosas, porque se cumprem os deveres recíprocos dos elementos em relação, com particular relevância para o binómio filhos-pais e o seu alicerce moral: a piedade filial que marcou para sempre o modo chinês de ser, pela primazia concedida à família.13 Daqui decorre a possibilidade de entendimento da filosofia clássica chinesa como sagesse, mais do que uma exposição teorética articulada, bem como se exemplifica a particular ligação entre o escrito e o que este diz: os conceitos fundamentais são de referência ética e constituem por si "as frases" do texto.

Ao que foi exposto, deve ainda acrescentar-se um terceiro elemento que é fundamental para uma compreensão do sentido da linguagem no modelo chinês: a vivência. Tanto quanto sabemos da vida do Mestre Kong (Kong Fu Zi: à letra "Grande Mestre Kong" de que deriva a latinização do nome) ela é uma prática do seu pensar-obra e, consequentemente, uma determinação do conceito de verdade como experiência.14 Por outro lado, convém ter presente que a vida de Confúcio é ainda determinada por condições históricas específicas que são aqui relevantes pelo elemento de materialidade evidente que introduzem: a queda da dinastia Zhou e consequente desordem político-social que é uma, senão a primeira, das motivações reflexivas de Confúcio.15

Esta evidente permanência da teoria confucionista perto das coisas, tal como afirmámos característico da linguagem chinesa em geral, é consequência de uma opção reflexiva mas também o resultado da utilização da língua chinesa numa fase evolutiva em que possuía uma concretude ainda mais evidente do que a dos actuais pictogramas.16 Esta ligação ao concreto não implica uma incapacidade de teorização pois encontramos no texto confucionista princípios filosóficos, expressos ou derivados: a "igualdade natural" entre todos os homems, o "desejo universal de felicidade" como motor da existência humana e o conhecimento como "esforço" individual e social de procura permanente de uma orientação, de um caminho (Tau**), que se actualiza nas vivências concretas e no carácter que o exprime [v. infra a apresentação e decomposição de alguns caracteres fundamentais nesta teoria].17 Esta ideia de esforço individual remete para um conceito fundamental, talvez aquele que confere unidade aos múltiplos aspectos do confucionismo, que é o de Educação.

A educação é a via privilegiada, melhor, exclusiva para a "criação" do homem justo, cuja vida é orientada para/por um acordo com o Tau, realizando-se não só através da prática das virtudes fundamentais aprendidas desde criança, como ainda pelo domínio o mais perfeito possível da leitura e da escrita. Como vimos em geral, aprender a escrever e a ler é aprender a estabelecer distinções, socialmente determinadas, na realidade, as quais, por sua vez, estruturam o modo como se "vê-lê" essa realidade.18 No entanto esta função socializante da linguagem não se esgota numa aprendizagem-instrução, muito importante no confucionismo e que reforçou a importância da classe dos letrados e o valor dos exames do Estado que foram fundamentais para a manutenção da burocracia administrativa chinesa, mas tem um carácter eminentemente prático, moral, que se liga ao ensino do Mestre Kong através de histórias exemplares, de exemplos da sua própria vida e de comparações explicativas. Esta pedagogia do exemplo e do modelo moral (independentemente das qualidades morais que numa época funcionam como valores) manteve-se tradicionalmente na educação/ensino chinês, manifestando nesta tradição a influência decisiva do confucionismo, o qual aparece durante muito tempo como conteúdo dos textos que sustentam a aprendizagem. Esta circularidade dinâmica entre o texto (de ensino), a transmissão das regras de conduta e dos valores a prezar/obedecer e a determinação do fim para que se dirige a sociedade, é processada no interior de um contexto social, que na época de Confúcio era o da Tradição (referindo-se assim os Livros Clássicos),19 que delimita — mas é também do mesmo modo renovada — a compreensão e confere unidade social, e que se estrutura num determinado estádio de evolução dos caracteres chineses com uma polissemia que lhe está "colada" própria desse estádio.20

O carácter moral dos ensinamentos de Confúcio está também presente nos principais conceitos que alicerçam a sua doutrina e que são de carácter ético ou recebem neste contexto uma leitura marcadamente ética ou pragmática. E estes conceitos basilares são ainda transmitidos por educação, considerada na sua ligação fundamental à vida e à sua função primordial de tornar um homem "humano", isto é, permitir-lhe adquirir não só as características morais superiores mas, e primeiro, permitir-lhe a aquisição de uma determinada linguagem culturalmente criada e desenvolvida (o domínio de uma língua em sentido restrito), no interior da qual se desenvolve toda a acção.21 O homem a atingir pelo esforço individual formativo é designado por zhun zi em Confúcio, referindo-se neste termo o ideal humano que, quando concretizado, deverá corresponder ao soberano e à sua acção exemplar.

Este ideal é um objectivo para todos os homens e realiza-se na actualização dos princípios/virtudes que lhe são inerentes enquanto homem, afirmando-se assim o princípio estrutural da "perfectibilidade", tomada como característica humana fundamental. Na sua capacidade expressiva este conceito garante unidade a uma multiplicidade de temas da tradição confucionista e, na sua íntima ligação com o desejo universal de "felicidade", introduz a nota de dinamismo que fundamenta a educação no sentido amplo de aperfeiçoamento moral e motor da nova ordem social. Esta nova ordem social, incarnada no homem justo (zhun zi, que literalmente corresponde a "filho do governante", e se alargou para o conceito de "homem superior" que ao tempo de Confúcio se identificava com o homem de classe superior, cuja supremacia assentava no sangue) e que aparece nesta doutrina inequivocamente associado ao indivíduo educado, instruído, ou seja, aquele que por um esforço pessoal — e já não por privilégios de nascimento — encontrou a "medida certa", moralmente correcta, de conduta. E este deverá ser o governante pois a sua acção, transformada pela educação/instrução (que inclui também as artes e etiqueta), é transformadora da realidade, o seu acordo com o caminho correcto a seguir (Tau) faz com que o seu bem individual seja o bem dos outros.22

O confucionismo, tal como aparece nos Analectos, assenta sobre uma reinterpretação de alguns conceitos existentes na sua época. Assim a noção de Tau, que sendo o fulcro do tauismo e aqui extensivamente meditado na sua vertente mística, passou a designar não o caminho, via, ou a via de conduta boa ou má, mas recebeu uma conotação moral através da sua identificação com o Caminho dos Antigos (Reis Sábios), modelo de conduta do Homem Superior que por uma educação apropriada realiza as virtudes humanas. O Tau de Confúcio, contrariamente aos seus desenvolvimentos no tauismo, pode ser comunicado (ouvido, estudado, corrigido, alterado, estar presente ou ausente, ser maior ou menor) o que faz dele o objecto de toda a educação e confere-lhe um carácter de naturalidade já que para se atingir a excelência (moral) humana se tem que estudar e seguir o exemplo dos homens justos. Orientando a acção e ligando-se, pela íntima relação que estabelece com a educação, com a comunicação (num sentido amplo) o termo Tau enquanto tomado com substantivo comum, de grande generalidade, pode ser aproximado da categoria linguística de "discurso", entendendo-se a linguagem como integrando múltiplas formas. Nos textos clássicos o termo Tau aparece utilizado como verbo, sendo a sua tradução normalmente para "falar, dizer" que, de qualquer modo, pode ainda ser remetido para "discurso" e aqui compreendido num sentido alargadocomo toda a forma produzida por um qualquer tipo de linguagem humana (verbal mas também corporal, pictórica, sonora...). E assim compreende-se o acento posto na importância da música, no conhecimento dos ritos e na imitação das acções dos homens superiores, a par da aprendizagem da escrita, leitura e matemática, para uma correcta educação que é fundamentalmente prática, quer no objectivo a alcançar, quer na forma como se desenvolve e campo de aplicação: a vida. Cada um deve encontrar/conhecer o caminho que lhe permitirá tornar-se um Homem melhor e, particularmente, permitirá formar o soberano e os homens de Estado que deverão ter desenvolvidas em mais alto grau as virtudes morais e o conhecimento das atitudes correctas, únicos fundamentos da autoridade e alicerces de um bom governo que garante a obediência não pela força mas pelo exemplo. Assim vemos como a "leitura" de uma palavra à luz de determinados pressupostos sobre a natureza humana e a política lhe ampliam o sentido, alargando-a e tornando-se um suposto de todo o confucionismo e, consequentemente pela influência dos textos ligados a esta doutrina, um modificador da sociedade, marcando o pensamento chinês posterior com um pendor pragmático que, em última análise, pode ser relacionado com esta leitura moral, e não metafísica ou cosmológica, do termo Tau no texto mais caracteristicamente confucionista.

Outro conceito cujo significado posterior muito deve à teoria confucionista e que apresenta uma qualidade centrifugadora em relação a outros conceitos mais particulares desta doutrinaé o de Ren (仁). Composto por "homem" (人) e "dois" (二) a sua tradução apresenta dificuldades devido à generalidade do seu conteúdo e à sua aplicação a múltiplos contextos que implicam diversas virtudes morais. Referindo a bondade, e particularmente a bondade que o soberano deve ter em relação aos seus súbditos, é um termo pouco usado nos escritos anteriores a Confúcio tornando-se o principal objecto da reflexão deste e dos seus discípulos. Traduzindo-se normalmente por benevolência, altruísmo, bondade, caridade... o termo designa a virtuosidade em geral que, sendo equivalente ao que torna um homem num Homem Justo, é o objectivo da educação, definindo o carácter da actuação daquele que encontrou o seu Tau, e reafirmando deste modo o carácter eminentemente moral do pensamento confucionista. A sua natureza relacional, implícita logo na sua etimologia, traz como consequência a ideia de que o Bem não é abstracto mas antes se realiza "entre dois homens", isto é, pratica-se em "ambiente social" e corresponde à "transformação da natureza humana pela educação" apropriada, logo garantindo a estes dois termos um carácter de fundamentalidade na determinação do humano.

A perfeição do indivíduo é social e exprime-se nas regras que regem as relações interindividuais, particularmente as estabelecidas entre pais-filhos e soberano-súbditos. Assim, na raíz de Ren estão a piedade filial (xiao), a lealdade para com o soberano [ou dos ministros em relação aos senhores] (zhong) e a fidelidade à palavra que deve dominar as relações entre amigos e inferiores-superiores (xin). Estas virtudes particulares, expressas em prescrições de acção — deveres — (Tau enquanto discurso que guia a acção), quando naturalmente praticadas, no fim de um processo educativo, são um sinal de que se atingiu aquilo que mais essencialmente constitui o Homem. Daqui decorrem duas consequências importantes: a interiorização das formas sociais (conteúdo da educação) é fundamental para a actualização da natureza humana (daqui decorrendo uma vez mais o carácter "natural" do processo social que é a educação) e o seu exercício/repetição torna a sua prática mais fácil e melhor (mais "natural"); sendo uma característica das acções do Homem Justo e, simultaneamente, a determinação possível do eminentemente humano, exprime a dupla natureza do sentido de Tau: o conjunto de fórmulas que orientam o sentido correcto da educação e a interpretação dessas normas através de acções. Ren tem assim o sentido de uma chave interpretativa, relativamente a Tau e ao conjunto dos temas maiores do confucionismo, ao mesmo tempo que harmoniza as relações entre individual-social, apresentando este binómio como típico da moralidade.

Este bem, que caracteriza as acções moralmente correctas, advém então da fidelidade destas a modelos de conduta, mais ou menos formalizados, e que são transmitidos pela educação através do conhecimento/domínio das artes clássicas, da literatura considerada correcta (daqui a escolha de algumas canções/odes legadas pela tradição para objecto de estudo pelos seus alunos) e da imitação dos homens superiores do passado, erigidos à categoria de ideais de conduta humana especialmente para os governantes. Por outro lado, a determinação da grande característica da virtude superior como mutualidade/ reciprocidade, que garante que a acção do governante tenha sempre em vista um máximo de felicidade para os súbditos e que o bem de cada um seja ainda o bem dos outros, introduz a importância conferida ao social, entendido como estabelecendo-se sobre uma rede relacional dominada pela relação familiar, modelo da relação política justa.

E é assim que nos aparece como subjacente a ideia de Li: um código de actuação que embora transmitido deixa lugar à individualidade, uma norma de conduta que, embora revista um carácter universal, é passível de ajustamento às circunstâncias. O termo Li designava, à época de Confúcio, o protocolo ritualizado associado aos rituais religiosos alargado por extrapolação às diversas formas de actuação social que envolviam um código de comportamento formalizado, normalmente desenroladas dentro dos templos. O "desenho" do carácter indicia este sentido ao descrever esquematicamente um vaso sacrificial contendo os objectos preciosos a oferecer aos espíritos (mantém-se hoje este sentido de "presente, oferta") e, por extensão, designa o próprio ritual da oferenda com todas as manifestações artísticas que lhe estavam associadas. Li é um dos termos principais de discussão nos textos confucionistas, estando este papel vital ligado à consideração dos fundamentos do ritual como uma força ordenadora da actuação individual, das relações sociais e, em última estância, apontando-o como próprio do governo. O acento ético na leitura do termo patenteia a caracterização de todo o ritual como um conjunto de regras de conduta apropriada, que deveria corresponder à natureza das relações sociais estabelecidas sobre um complexo de convenções que assentam na moralidade dos laços interpessoais que se estabelecem ao nível da família e da sociedade como um todo.

Cumprir um gesto ritual é harmonizar o gesto natural, dominar as paixões naturais pelo exercício de uma determinada disposição mental, associada à repetição corporal de um conjunto de regras consideradas como "apropriadas" para o estabelecimento de uma relação temporária directa entre o natural e o sobrenatural ou, mais alargadamente, para a criação e manutenção da harmonia social. Acentuando-se a necessidade social e individual do ritual é o carácter de observância da regra de acção que é acentuado. Assim, a ritualização dos gestos individuais e sociais é paralela à sua identificação com a acção certa, apropriada, com aquilo que é correcto fazer, expressando-se este sentido em Confúcio no conceito de Yi. Esta rectidão da acção humana virtuosa está intimamente ligada à capacidade de "julgar por si" o que é justo, permitindo, a uma nova luz, a compreensão da essência ética de li e a sua "universalidade adaptável" de acordo com os ditames da razão prática. A regra que li expressa tem carácter universal, mas deve ser articulada com uma decisão racional em relação ao que é certo em cada situação vivencial. Deste modo, se o carácter universal é uma garantia da eticidade das atitudes ritualizadas (até porque não eram conhecidas outras culturas com o mesmo nível de desenvolvimento civilizacional) e do seu valor para a prática formativa individual, o facto de se prever que, em determinadas circunstâncias, o que é tido como bem em geral constitui um mal e como tal não deve ser obedecido, garante uma adaptabilidade da regra às circunstâncias que permite a sua moralidade efectiva. Se li é a expressão do que é correcto (Yi), então ela é fundamentalmente o conjunto das prescrições da razão, o que permite garantir a suprema liberdade do homem superior, cuja acção não precisa de ser regulada pois sabe em todos os momentos "aquilo que deve ser feito", assegurando-se assim a acção do governante quando dominada pela vituosidade moral (ren), porque corresponde a uma manifestação do verdadeiro caminho (Tau) que é marcadamente moral.

O que as virtudes confucionistas têm em comum é, em última análise, um carácter eminentemente activo, reportando-se a acções estabelecidas no dia-a-dia entre seres humanos, que podem deste modo ser julgadas e avaliadas. A exemplaridade da acção moralmente correcta manifesta-se por si própria e deve ser factor de desenvolvimento e harmonia de uma sociedade. Não se refere à acção de um qualquer ser ideal, situado fora de condições históricas determinadas, mas à prática individual exercendo-se num universo social condicionado, mas que é o único onde a virtude tem sentido. E o homem que actualiza a sua essência de ser moral deve ser encarregue de dirigir o governo através de uma actuação que gera a obediência pelo respeito. É neste sentido que o homem justo é o educador por excelência e a que podemos referir a prática pedagógica do Mestre Kong, a qual instituiu a primeira escola pública da China, com todo a importância que este conceito de "escola" (j ia) terá na organização do pensamento chinês posterior.

Os termos atrás apresentados constituem uma rede conceptual interdependente, a que a leitura ético/moral cofucionista, realizada num contexto reinterpretativo de noções clássicas, permitiu associar uma conotação fortemente prática que exerceu uma influência determinante no modo de pensar/ ser chinês. A utilização dos textos da literatura com um intuito educativo, pela interpretação de termos à luz de pressupostos teóricos diversos dos tradicionalmente a eles associados, permitiu uma alteração do sentido dos mesmos — alargou a sua plurissemia — que constituiu uma etapa importante de evolução dos caracteres.

IV- PARA UMA CONCLUSÃO PROVISÓRIA...

O que tentámos articular nos pontos anteriores foi uma explicitação de que as diferenças imediatas no modo de ser e na cosmovisão chineses encontram alguma clarificação através da reflexão sobre o sistema chinês de linguagem, o qual é expressão e organizador da forma como se é chinês. Se a análise linguística, correctamente colocada, permite afirmar a prioridade da palavra sobre a frase, quer enquanto objecto de análise quer na utilização vivencial da linguagem escrita, não deixa de referir como decorrente a função prioritariamente socializante da linguagem e, deste modo, patentear o carácter normativo que a linguagem exerce sobre a forma como se acede ao mundo. O modo como pensamos está imediatamente limitado pelo modo particular como usamos a linguagem enquanto possibilidade característica do humano. Este modo particular está, no caso chinês, decisivamente ligado à estrutura e natureza pictográfica dos caracteres como unidades linguísticas perfeitamente distintas das das línguas alfabéticas. A par da "colagem" da forma escrita às coisas que diz, a direccionalidade prática do pensamento chinês afasta-o da orientação metafísica que domina o pensamento ocidental desde a sua génese, afectando a evolução do pensamento e da linguagem cujo ritmo é notoriamente mais lento no mundo chinês. Não equivale isto a uma ausência de um pensamento abstracto, mas a um privilégio, na cosmovisão chinesa, atribuído à razão prática e ao domínio dos laços sociais sobre o indivíduo. A especulação sobre o sentido último do universo e do lugar do homem neste, típico da história do pensamento ocidental, transforma-se na questão pelo melhor caminho a seguir por um homem que é pressuposto em relação com o universo e, particularmente, com o universo social de que depende e no qual intervém através da sua acção. Por isso o primado da reflexão de carácter ético sobre a especulação teórica na filosofia chinesa clássica.

Estas diferenças dão conta de duas formas de o homem se situar no mundo, apresentando nesta diversidade não um juízo de valor sobre a primazia de uma delas mas antes uma tentativa de começar a procurar, para lá da irredutibilidade imediata de alguns aspectos, uma possibilidade de compreensão que permita um acesso mais verdadeiro ao sentido de humano e das suas principais capacidades.

A escolha de Confúcio, para ilustrar a particularidade e, simultaneamente, evidenciar alguns dos supostos do modo chinês de se situar no mundo, particularmente o jogo tensional entre real idade-li nguagem-pensamento, deve-se não só ao facto de ser um dos principais pensadores clássicos chineses, herdeiro de uma tradição cultural a que deu novo rumo, mas também porque na sua doutrina a preocupação humanista é evidente a par de uma meditação sobre a própria linguagem. Além disto a ênfase na dimensão social e a relação permanente, constitutiva, entre esta e o indíviduo, que lhe confere uma dimensão "natural" através de uma reflexão sobre a educação como o meio de humanização por excelência, foram temas determinantes na evolução do pensamento chinês que nos seus traços essenciais é ainda confucionista.23

Como afirmámos no ínicio não é este um texto definitivo sobre o pensamento chinês ou um dos seus modelos, mas a organização de algumas ideias, alicerçadas em leituras diversas, que ajudam a lançar alguma luz na aparente alteridade de uma forma de estar no mundo. Corresponde pois a um esforço de comprensão do sentido do humano, enquanto aceita no seu interior a multiplicidade de modos de ser que, parece-nos, mais do que indiciar uma fraqueza definitória é indício de uma riqueza que apontapara traços universais. Para lá das diferenças imediatas há um substrato comum que nos faz reconhecer como homens e, neste sentido, toda a explicitação do diferente é também uma forma de nos conhecermos melhor. E num mundo em que a diversidade e a mutabilidade acelerada são factores dominantes, todo o esforço de compreender o diverso é uma paragem no ritmo natural, um momento de reflexão sobre os supostos permanentes que estruturam toda a mudança e contribuem para uma aproximação entre culturas que, cada vez mais, estão votadas à comunicação.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. "Most characters are made up of one or more units of basic meaning wich we call radicais. Radicals tend to be used as semantic categories even in constructing otherwhise phonemic characters (...). For example, the phonematic ma with the 'earth' radical means dust, with a 'hand' radical means touch, and with a 'stone' radical means grind." Cf. HANSEN, Chad, "Language in the Heart-Mind", in ALLINSON, Robert E., ed., Understanding the Chinese Mind, p. 77.

2. Veja-se, para a apreciação da riqueza interpretativa desta teoria e dos dois caracteres que a designam, o cap. II de La Pensée Chinoise, de Marcel Granet, citado na Bibliografia.

3."The YIN YANG doctrine is very simple but its influence has been extensive. No aspect of Chinese civilization — whether metaphysics, medicine, government or art — has escaped its imprint. (...) All things and events are products of two elements, forces or principles: yin, which is negative, passive, weak and destructive, and yang, which is positive, active, strong, and constructive. (...)

The two concepts of yin and yang and the Five Agents go far back to antiquity and to quite independent origins. (...) For example, we are not sure wether the terms 'yin' and 'yang' originally referred to physical phenomena (clouds shading the sun and the sun shining, respectively) or the female and male." Cf. WING Tsit Chan, ed., A Source Book in Chinese Philosophy, p. 244.

4. Vale a pena neste ponto transcrever as palavras de Robert E. Allison no capítulo de abertura do livro que compila alguns dos grandes contributos actuais para uma compreensão ocidental do pensamento chinês na sua diferença: "If man is envisioned as being already in harmony with the cosmos and the world, it is much more likely for a philosophy or philosophies to envolve which point the way to maintaining, enhancing or, if it is lost, recovering that initial harmony with the world. There is absolutely no need, as in the case of Heidegger, for discovering man's nature to be in the world (or remembering this) and announcing it as if it were a great insight. This as already been tacitly or explicitly accepted as a long-know fact.

(...) There is no strong drive to find the ultimate answer if one already feels that one has a place and is in that place." Cf. ALLISON, Robert E., "An Overview of the Chinese Mind", in ALLINSON, Robert E., ed., op. cit., pp. 13-4.

5. Além da proposta seguinte, exercício de reflexão subjectivo (como o são todos!), veja-se mais à frente um desenvolvimento deste aspecto particular, aplicado a conceitos de natureza ético-moral.

6. HANSEN, Chad, op. cit., pp. 75-123.

7. "Classical Chinese philosophers' theories about their own language, by contrast, fix on the word as the basic unit. They think of a word as having a scope — the part of reality it selects. They pursue an interest in how stringing or combining words affects this scope. This interest leads them to study compounds terms and some phrases and sentences. However they do not pick the sentence out as a distincly structured string." Idem, p. 82.

8. Exemplo:

"曰(yue, say)義(ren, humanity)禮(yi, righteousness)智(li, propriety)智(zhi, wisdom)信(xin, trust). Meaning: There are five basic virtues: humanity, righteousness, propriety, wisdom and trust." Cf. XU Chuiyang, ed., Three Character Classic in Pictures, p. 36.

9."Classical Chinese philosophers do not formulate any mental language theory. (...) Knowing a word wasanalogous to mastering a skill. The writing or verbal skill combined with an ability to make a distinction. This ability to discriminate is also a learned, socially defined skill. The test for mastering or knowledge of that skill is irreductibly social or convencional.

(...) Had Chinese thinkers invented a 'mental picture' view of how the mind learns language, it would have seem redundant to them. It would never have seemed to them to have solved any important issue about language." Cf. HANSEN, Chad, op. cit., pp. 80-1.

10."our attempt to understand Confucius is made difficult by the large mass of legend and tradition that has accumulated about his name so thickly, over the centuries, that it becomes very hard to see the truth. (...) Our only safe course, therefore, is completely to disregard the elaborate traditional story of his life and thought and trust only the more meager testimony that can be gleaned from documents that can be proved to be early and reliable." Cf. CREEL, Herlee G., Chinese Thought, p. 25.

11."Interpretation of Confucius teachings have differ radically in the last 2,000 years." Cf. WING Tsit Chan, op. cit., p. 19.

"The Analects is a collection of sayings by Confucius and his pupils pertaining to his teachings and deeds. (...) The name Lun-Yu did not appear until the 2nd century B. C. At that time there were three versions of it, with some variations. (...)

The material [referindo-se à única versão sobrevivente dos Analectos] is unsystematic, in a few cases repetitive, and in some cases historically inaccurate. However, it is generally accepted as the most reliable source of Confucian teachings." Idem, ibidem, nota de rodapé.

12."No princípio era a ordem. É até aí que devemos recuar, aos tempos dos Reis Sábios da mitologia: Yao, Shun e Yu, aos quais Confúcio rende a sua homenagem. (...) São os pais fundadores da cultura chinesa e, de uma certa forma, da ordem política. Confúcio refere-se principalmente a Yao e Shun como exemplos de soberanos humildes e desinteressados. (...)

Vêm depois os fundadores das dinastias 'históricas'. Enquanto Cheng Tang só uma vez é mencionado em Conversações (XII, 22), é principalmente aos fundadores da dinastia seguinte, a dos Zu (1121-256 a. C.), que Confúcio se refere como aos soberanos de um governo ideal (...)." Cf. CHENG, Anne, Conversações de Confúcio, Introdução, pp. 13-4.

"His repeated mention of sage-emperors Yao and Shun and Duke of Chou as models seems to suggest that he was looking back to the past. Be that as it may, he was looking to ideal men rather than to a supernatural being for inspiration." Cf. WING Tsit Chan, op. cit., p. 15.

13."His primary concern was a good society based on good government and harmonious human relations. To this end he advocated a good government that rules by virtue and moral example rather than by punishment or force. His criterion for goodness was righteousness as opposed to profit. For the family, he particularly stressed filial piety and for society in general, proper conduct or li ( propriety, rites)." Idem, ibidem.

"In the case of Kongzi, filial piety and the place of the family in general receives a strong emphasis for the development of ethical values. (...) For the Chinese mind, the value of the family is self-evident (...) the family represents a natural extension of oneself. There is no need to prove the priority or the primacy of the family. It is accepted as a given fact." Cf. ALLINSON, Robert E., op. cit., p. 19.

14. "Confucius was not only willing that men should think for themselves; he insisted upon it. He was willing to help them and to teach them how to think (...)." Cf. CREEL, Herlee G., op. cit., p. 45.

15."Le confucionisme se développe dans la période de luttes féodales qui suit l'époque classique de la dynastie royale des Tcheou. Violences et désordres caractérisent cette période (...).

L'enseignement de Confucius est avant tout une tentative de restauration de l'ordre moral et de la paix dans une société où reigne l'anarchie." Cf. CRÉPON, Pierre, Le Bouddhisme et la Spiritualité Orientale, p. 72.

16."The separation of the sensible from the non-sensible can thus become an inherent tendency in the use of a phonetic language just as the cohesion of the sensible with the non-sensible can become a fundamental feature of the use of an image-language." Cf. CHENG Chung Ying, "Chinese Metaphysics as Non-metaphysics: Confuncian and Daoist Insights into the Nature of Reality", in ALLINSON, Robert E., ed., op. cit., p. 167. "Briefly, that a character is an ideograph [caracterização actual possível da natureza dos caracteres] entails that its written shape be partly or largely a function of the meaning of the character. In pictographics, a spatio-temporal isomorphism explains the relation between the written word and the parts ofthe world it picks out. (...) Written Chinese was standardized at the end of the classical period of philosophy. Before this standardization, Chinese characters were relativelymore varied and pictographic. They were more intuitively recognizable as pictures. The Han characters are, in turn, relatively more pictographic than the simplified characters promoted in China." Cf. HANSEN, Chad, op. cit., pp. 79-80.

17."Definition, in the sense of meaning-explanation, is a matter of practical rather than theoretical necessity. Since discourse is viewed as possessing normative import, implying a unity and harmony of knowledge, thought, speech, and action, it is not something one engages in for the sake of theory-construction, which has no necessary connection with conduct. The point does not depreciate the importance of theoretical inquiry, but focuses upon its relevance to the requirements of practice." Cf. CUA, A. S., "The Concept of 'Li' in Confucian Moral Theory", in ALLINSON, Robert E., ed., op. cit., pp. 209-10.

** N. E.: 道, Dao (em pinyin), origem do derivado Tauismo, ou Taoísmo, será aqui grafado Tau.

18."Chinese characters are social and learned. Chinese theory treats learning language as acquiring the ability to follow socially shared discrimination patterns. (...)

A language is always the language of a community. The sounds do not represent pictures in our subjectivity [noção esta apresentada como típica da teoria da linguagem ocidental]. If sounds correspond to anything, they correspond to the characters or graphs of a shared and unifying system of conventional pictures. Language is social. It is the key way in which we socialize with other humans. (...) The scope of a term corresponds to the skill of dividing things. We are all similarly trained to discriminate in guiding behaviour. However, each situation in which we guide our action by codes made up of ming [nome, palavra] is unique. We inevitably extrapolate from the circumstances in which we learned the word to a circumstance in which we apply it." Cf. HANSEN, Chad, op. cit., pp. 87-8.

19. São compreendidos nesta designação os textos da antiguidade chinesa (alguns deles atribuídos a Confúcio, embora lhe devam ter sido bastante anteriores) que constituiam a súmula do saber/ conhecimento/religião na época de Confúcio. São eles: O Livro das Mutações/da Mudança, Cânon das Odes/O Livro dos Cantares, O Livro dos Ritos, O Livro da História e (Anais da) Primavera e Outono, embora nem sempre seja esta classificação idêntica em todos os autores. A estes textos juntava-se uma miscelânea de "teorias" cosmológicas de que se deve ressaltar a importância para a constituição da cosmovisão chinesa a teoria do Yin-Yang e dos 5 elementos ou princípios (com as derivações às 5 direcções geográficas — Centro incluído e privilegiado —, às 5 cores, às 5 principais relações interindividuais...), que encontra eco nas 5 virtudes confucionistas, articulada com uma teoria numerológica que, representando a inter-relação entre os 5 elementos (Wu Xing) das 2 grandes categorias cósmicas (Yin e Yang), representa o movimento cósmico. Vd. para o desenvolvimento destas ideias os textos de M. Granet já citado e o de Tsao Pen Yeh, referido na bibliografia, particularmente a primeira parte.

20. Cf. nota 16.

"In China, for instance, the ancient ideas of yin and yang were developed in many ways, connected with ideas of Heaven, Earth, and Humanity, with moral speculations in Mengzi (Mencius), with physical speculations in the medieval Daoists, and with systemic concerns in the writings of Zhou Dunyi and succeding Neo-Confucionists." Cf. NEVILLE, R., "The Chinese Case in a Philosophy of World Religion", in ALLINSON, Robert E., ed., op. cit., p. 55.

21. "Diz o Mestre: Estudar uma regra de vida, para a aplicar no momento exacto, não é uma fonte de grande prazer? Partilhá-la com um amigo vindo de longe não é a maior das alegrias?" CHENG, Anne, op. cit., p. 31 (trad. portuguesa de M. F. G. de Azevedo).

A título de exemplo compare-se com a tradução utilizada por Raymond Dawson: "1:1. Confucius said, 'Is it not a pleasure to learn and to repeat or practice from time to time what has been learned? Is it not delightful to have friends coming from afar?'" DAWSON, Raymond, ed., The Legacy of China, p. 18.

"Through the investigation of things, knowledge is perfected, with the perfection of knowlege, thoughts became sincere, with sincerity in the thought, the heart is rectified, through rightness in heart and mind, the self is cultivated and disciplined, when the self is disciplined, the family can be rightly regulated, when the family is rightly regulated, the state can be well-governed, when states are well-governed, the whole empire will enjoy peace and harmony." Cf. TSAI Chih Chung, Da Xue: The Great Learning, pp. 7-8.

"苟(gou, if)不(bu, not)學 (xue, learn)曷(he, how)爲 (wei, be)人 (ren, man). Meaning: If one does not want to study, how can one be considered a human being?" Cf. XU Chuiyang, ed., op. cit., p. 178.

22. Em relação a este conceito, de inegável importância no confucionismo (aparece inúmeras vezes nos Analectos) e que merece uma reflexão individualizada de outro nível, que clarifique o seu lugar dentro das categorias de uma possível antropologia confucionista, veja-se por exemplo WING Tsit Chan, op. cit., pp. 14-7; CREEL, Herlee G., op. cit., cap. II, particularmente pp.27-9.

23. "Yet few human lives have influenced history more profoundly than that of the Confucius. The appeal of his thought has been perennial. In China, generation after generation has made him its own; today, even some of the Chinese Communists claim him for their own revolutionary tradition." CREEL, Herlee G., op. cit., p. 45.

* Licenciada em Filosofia pela Universidade Católica de Lisboa.

desde a p. 275
até a p.