Artes

MALANGATANA EM MACAU: REFLEXOS DE UMA EXPOSIÇÃO

João C. Reis*

Malangatana:"Primeiro dia canho". Óleo sobre tela, 139x133cm,1993.

Graças ao interesse, e empenhamento pessoal do Governador Vasco Rocha Vieira, de resto, seu antigo amigo e admirador, teve Macau o privilégio de conhecer obras originais ao universalmente conhecido e respeitado pintor moçambicano Malangatana N'Goenha.

Nesta pequena mostra que nos trouxe, de um vastíssimo património de centenas de outros, espalhados por museus e colecções particulares, em todo o mundo, o artista expôs vinte trabalhos, de qualidade que seria insuperável, se não fosse conhecida e notória a evolução permanente, mórfica e arquitectural, da sua criatividade, nas disciplinas nucleares da pintura. Ou seja, na concepção, tratamento e arrumação estética dos temas, na profundidade realista do retrato humano, porventura menos, da fisionomia pontual do indivíduo; no efeito, instintiva ou intencionalmente alcançando uma exegese de comunicação sem contrangimentos; na técnica perfeita da execução, planetária e do detalhe, sobressaída, por exemplo no processo imaginoso e reflexo dos alongamentos de uma anatomia que não cabe nos limites do convencional; na oportunidade da acentuação do pormenor através do afeiçoamento reflectido e sempre conseguido do jogo dicotómico da luz e da sombra, o que, não infrequentemente, escapa à perspicácia distraída do observador; na sábia gradação de uma paleta prenhe de recursos; na projecção da perspectiva, que, não poucas vezes, poderá parecer desvirtuada, no globalismo de uma composição, aliás, sem desequihbrios estéticos, nem volumetrias despropositadas; no preenchimento integral, portanto, sem parcelas vazias, ou mortas, das superfícies trabalhadas, através de planos, sempre relevados, com mestria superior, pela idiossincrasia da cor, jogada em moldes de uma teoria, quiçá, matematicista como que de uma terceira dimensão morfimétrica do espaço.

A cor, na verdade, constitui um dos materiais-chave, senão mesmo o de maior efeito comunicador, do seu processo criativo.

É com a gradação das tonalidades que a sensibilidade do artista releva o produto da sua gnósica observação, iluminando, ou obscurecendo os factores radicais da escrita, por exemplo quando obtém um equilíbrio que define e marca a homogeneidade plástica, uma da referências fundamentais da arquitectura dimensional da sua obra.

Em termos correntes, isentos de postulados que se presumam redundantes, dir-se-ia que o grafismo de Malangatana foge, como o diabo da cruz, às regras clássicas da semiologia pintural, e, não menos expressivamente, ao diálogo, que o senso comum, talvez a lógica circunspecta de um certo status, porventura, desejasse, de menor densidade dramática, menos óbvia, e mais doce.

Ao contrário o discurso de Malangatana é muito crítico, é agreste, é contundente, e tudo menos contemporizador. Inquieta e amedronta quando o sentido incisivo da sua mensagem nitidamente salta por cima das conveniências, não se conciliando a sua virtual realidade com a apetência lúdica do freguês radiestésico pelas metamorforses eventualmente ficcionáveis, todavia, nunca ficcionadas, de mitos, símbolos, miríficas fábulas e rituais fantasmagóricos. Caberiam aí decerto, os medos, todos os exacerbados recalcamentos inventariados no glossário das psiconeuroses, delírios ou emoções mais ou menos mórbidas do fruidor propenso e vulnerável. Não, porém, que seja, ou alguma vez tenha sido essa a intenção, ou vontade do artista.

Malangatana, com efeito, nunca jogou com fantasmas, tem-se ocupado sempre, e só, de seres humanos, mesmo quando às vezes até nem pareçam pessoas. Não cultiva a ambiguidade, não tergiversa, seja no que for.

Não sendo como, não raramente, alguns pretendem entendê-lo, uma "força da natureza" — esta fuga do artista, mais espontânea e natural do que premeditada, ao geometrismo de uma metodologia sacralizada, ou mesmo aos padrões de uma anatomia irrefragável — "onde já se viram, por exemplo, cães com estrelas no lugar de patas, ou pés de mulher alongados e recurvos?" — não se reveste de qualquer propósito contestatário em relação aos cânones, nem alberga algum significado especioso, de técnica exógena, adquirida e cultivada em recinto de tendências ou escolas; como não se concilia com nenhuma estratégia preconcebida ou calculista. Não traduz, da parte do artista, um espírito ortofrénico, na intenção de, enviesadamente, pretender influenciar seja quem for. Trata-se, antes, e sem que isso o vincule rigorosamente a qualquer das considerações referidas, de uma transliteração onomatopaica, se assim se pode dizer, e corrente forma assimilada, fluente e directa, de comunicar, emergida matricialmente do universo cultural de onde o artista provém, e ao qual jamais renegou. Se a esta pintura, e o que ela representa, tem um sentido ecuménico, capaz de impressionar o mundo, é, simplesmente porque os problemas de uma pequena comunidade dos subúrbios do Maputo e os seus habitantes, como pessoas, têm, como não podia deixar de ser, uma dimensão cosmogénica.

Malangatana: "Cães com estrelas em lugar de patas...".

Entretanto, a sua pictografia redutora, que seria suposto poder queimar como uma tocha, deslumbra e empolga o observador desprevenido e sensível, seja de onde for, ou onde estiver, estimulado por auto-exaltação sensorial, no seu próprio patamar de mitos na simbologia de um sensualismo esotérico. Haverá, decerto, mais do que isso, no comportamento do fruidor propenso. A grande virtude da Arte proclamou um dia Freud —consiste em oferecer àquele que não consegue sobreviver na realidade da Vida, um mundo irreal fictício, de fantasias, em todo o caso, isento de dificuldades e perigos. Nesta situação, e muito menos dirigido ao artista-criador do que ao fruidor, o mesmo Freud, nisso seguido por outros, considerava que na obra de arte intervém sempre um psicótico, empenhado em disfarçar, ou, de algum modo, compensar a sua própria psicose.

Se o conceito faz sentido quando aplicado ao destinatário de uma obra, em estado latente de excitação psicológica, isso, porém, não acontece com Malangatana, dono de uma perscrutação abrangente, e consciente crítico do fenómeno social e humano, no meio do qual, e dele, sobrevive, e comunga.

Malangatana: "O voo das pombas sagradas". Óleo sobre tela, 137 x 182 cm, 1993.

A criatividade, referiu ainda Freud, nasce da percepção interna do indivíduo, embora só alcance significado específico e real quando ele (criador da obra de arte) se integra no povo do qual emergiu.

Será, indubitavelmente, nesta definição que Malangatana, homem comunitário e artista de génio, cabe por inteiro.

Por uma espécie de metempsicose inesresgatável, assume-se em plenitude, não apenas com a sua solidariedade intelectual, por isso, de fora para dentro, mas todo ele, na sua completa pessoa, como comparsa integrado de um mesmo destino, crivado de idênticos espinhos, que costumam dilacerar a carne, e atormentar o espírito das pessoas acossadas e aflitas, de cujas raízes e temores jamais o artista se distanciou, ou demitiu. Dizia D. Jerónimo Osório, bispo de Silves (De Rebus Emmanuele Gestus, 1571), que "o maior pintor não pode reproduzir a forma superior de beleza somente pelo pincel. Deve fazê-la penetrar profundamente na sua consciência." Consciência, com efeito, e o revérbero humanista são coisas que, seguramente, nunca faltaram ao pintor moçambicano.

Na verdade, Malangatana não é, longe disso, um fabricante de espíritos, duendes ou avejões. Como, seguramente, não é um panfletário dado à demagogia de uma dialéctica enxudiosa, sem embargo de um indiscutível compromisso, assumido em total consonância com as suas convicções idealistas, e por companheirismo indelével em relação àqueles com quem, lado a lado, tem sempre corrido, sem desfalecimentos nem desânimos, sem abdicar da mais ínfima partícula da sua coerência moral, e virtual integridade, a maratona da vida.

Malangatana: "Ponto de equilíbrio alcançado através de desafeiçoamentos anatómicos".

Por isso, a sua pintura fala-nos de pessoas, não de grilos, dá-nos a realidade triste, nua e crua, da condição humana subjugada, apela ànossa solidariedade, desafia o nosso remorso diante da injustiça das assimetrias sociais, da perversidade do sistema, quando premeditado, repressivo e cego, e até de indivíduos circunstancialmente prepotentes, viciados na violência e agressão, que trazem estampada na face, e entumescida nos músculos, a máscara da loucura. Por isso mostra, inconformado, todavia, sem por demais os deblaterar, o espectro da pobreza e da miséria, o desespero da fome e da doença, o abatimento moral e sofrido dos agredidos, sobreviventes penosos da indiferença generalizada, náufragos sociais de um obscurantismo cultural sem remissa.

Num livro de poemas de sua autoria compilados por Dorothy Guedes, mulher do arquitecto Pancho Miranda Guedes, um e outro seus grandes e indefectíveis amigos, publicado em Março último, por edição do Instituto de Psicologia Aplicada de Lisboa, um dos vinte e quatro que dele constam, é do seguinte teor:

UMA CABEÇA CONTRA UMAS PEDRAS BICUDAS

    O meu patrão era taxeiro
    e eu moleque do seu bebé
    chamado Constantino o tal bebé
    e o patrão Machado
    e ela D. Maria
    ele era ateu
    e muito vinhateiro
    e ainda boxeur com os criados
    um dos adversários sou eu
    com o vencimento de vinte e cinco
    com tanto trabalho que tinha
    brincar com o menino branco
    e ainda com o patrão em 
    socos só dele
    eu sem me defender
    sangue pelo nariz
    sapatos nas costelas
    eu caindo
    assim nem vencia o tal Machado
    este sou eu? 
    perguntava-me eu próprio
    que recebo socos de um ser humano? 
    não devo ser, 
    quando eu caía, 
    este patrão tinha festa
    lá no coração
    pois era campião
    dum K. O. falso
    com este patrão
    muito sofri
    na avenida J. Serrão
    em 1949
    tanto levei
    e tanto sangue saía
    e criou-me um cancro
    nas minhas unhas
    veneno na língua
    das dores dele
    vivi doente
    sem remédio, sofri
    pois preto não precisa de remédio
    dizia o senhor
    autor do boxe. 
Malangatana: "Pertubação na floresta". Óleo sobre tela, 89 x 53 cm, 1987.

Certas pessoas pretendem, ou julgam ver, em algumas figuras da pintura de Malangatana, exemplares demoníacos, metaforicamente repescados da memória de antigas crenças tribais. Engano. Os fantasmas, na realidade, não existem, não há diabos, nem divindades, criados por excessos de uma imaginação hereditária. O que há são agressores, refinados no sadismo, travestidos, ou às escâncaras, apostados no exercício de violências e perfídias, como, por exemplo, a besta hedionda de Guernica. Malangatana, como, antes, Picasso, quando pintaram, ou pintam monstros, no que pensaram, ou pensam, é em seres humanos, que sempre se distinguiram, ou distinguem, pela traição, perversidade, pela repressão e pela crueldade sem limites.

Por estas, e não outras razões é que, raramente, ou nunca, transparecem, nos seus quadros, a sombra de um sorriso, a nuance mais singela da jovialidade, de contentamento ou alegria. E quando há lágrimas, não são redondas, nem perladas ou desfeitas, não escorrem rapidamente nos rostos insofridos. São mataculhos de chumbo derretido que marcam profundos sulcos nas faces maceradas das pessoas amedrontadas, tombam pesadamente no chão de todas as angústias.

Alguns críticos pragmatistas, de maneira subtil mais ou menos, como que denegam um resquício, sequer, da intenção pedagógica na sua obra, pretendendo ver nela não mais do que um, por eles dito, vocabulário de repetições, figurativas e temáticas, à passagem do tempo, já roídas e cediças — com o óbvio desígnio de lhe apoucar o mérito, isentá-lo da deliberação consciente, no acto de criar. Não sendo verdadeira, como, absolutamente, não é — a asserção, melhor que qualquer outro argumento, demonstra à saciedade que Malangatana se tem mantido, ao longo dos tempos, fiel a si mesmo, genuíno e autêntico, incorruptível a influências estranhas. Por si próprio evoluiu, amadureceu no traço, é no partido excepcional que tira das fintas, sem jamais se haver desviado da linha oficinal que lhe pessoaliza o estilo, ou da jurisprudência da ética que sempre perseguiu, cultor permanente e incansável, não de fantasmas ou xipȯcués, mas dos problemas humanos, mais até do que sociais. Por isso, nunca recorreu à hipérbole que privilegiasse o dogmatismo, que seria pueril e abstruso, para afirmar a probidade intelectual do seu carácter, que não contemporiza, nem transige, quando são desafiados os seus princípios, a feição humanista da sua consciência, a seriedade e a lealdade do seu comportamento, o fundo moral da sua atitude, enquanto homem solidário e fraterno.

Para testar esta realidade insofismável, recorre-se uma vez ainda ao atrás mencionado livro, transcrevendo-se o poema que tem por título "Zampungana", ou seja, o faxineiro das fossas municipais. Ordinariamente arrebanhada (à força) na região dos Muchopes, a norte do Maputo, esta gente era denominada "machopes", por corruptela da toponímia da região de onde era oriunda, sendo por todos, até pelos patrícios, tratada com desdém. Menos pelo Malangatana, claro...

Malangatana: "... lágrimas... de chumbo derretido".

ZAMPUNGANA

    Vejo-te cansado
    vejo-te com sono
    com tristeza
    durante a noite quando trabalhas
    
    Machope, machope
    que limpas a cidade 
    ninguém gosta de ti 
    dizem que cheiras mal
    
    Zampungana teu cognome, 
    eu gosto dele e de ti
    sem Zampungana nada corre bem
     és meu amigo, ó Zampungana
    
    Deixe-os falaremal de ti 
    e eu bem de ti 
    meu amigo machope 
    meu higiénico
    
    Teu espírito é como dos outros
    meu é igual ao teu
    és filho de uns pais também
    deixe-os cantar. 

Malangatana: "O olhar erótico". Óleo sobre tela, 130,5 x 170 cm, 1989.

Quando, como faz na pintura, transfigura o sentido, ou amolda o gesso das palavras, não o faz por folclorismo, ou ingénua pedantice. Fá-lo, apenas porque as onomatopeias, ditas ou pintadas, estão mais próximas do que a linguagem erudita, do povo a que pertence, e com o qual permanentemente dialoga, e que é, afinal, o destinatário derradeiro da sua mensagem. Malangatana "trovador moçambicano, faz quadros com as palavras" — escreveu lucidamente Dorothy Guedes, que sublinhou esta singularidade: "Se tivesse sido possível o lançar de uma literatura popular, como tinha acontecido no Brasil com a literatura de cordel, Malangatana talvez tivesse libertado as palavras, como tinha libertado as formas e as cores, abrindo caminho a novos escritores, tal como fez para pintores e escultores."

Estas palavras corroborarão uma ideia de que o poeta, como o pintor, não se sente limitado, ou intimidado, se tiver que dar um sopapo nas regras ortodoxas da gramática, ou um pontapé na consagrada lei da perspectiva, se tais, porventura, lhe prejudicarem a fluidez da expressão, a qual seja como que um fanagalô, igual ao linguajar inventado e falado nos arrabaldes da grande cidade, também estejá aglutinação tendencial de termos e locuções menos ou mais corrompidas, de vários idiomas, designadamente o português e o inglês, com os dialectos regionais ronga/changane, o que, de resto, não deixava de arrepiar, como escreveu a compiladora do seu livro, "um grupo de literatos eruditos locais de então (que em Lourenço Marques) tinham uma atitude restrita e académica quanto à pureza da língua..."

Este tipo de atitude repete-se quando alguns dos seus sequazes se constrangem, e o admoestam, sendo ele agora tão grande e universalmente admirado artista, ouvindo-o confessar, singelamente, ter sido na sua adolescência, criado de meninos brancos, e apanhador de bolas de ténis para senhores ricos. Exprobram-lhe a humildade destas afirmações ingénuas e simplórias, a modéstia do seu passado sem glória, que lhe molestam o currículo. Mas ele, rindo, repete que nada tem para dizer senão o que sempre afirmara. Gostaria muito palavra-de-honra de poder dizer que tinha sido aviador ou professor primário, (para o que não lhe faltariam vocação e vontade). Mas nunca conseguira ser nem uma coisa nem outra. Paciência.

Malangatana: "A pá do Zampuungana", 1963.

Está claro que o Malangatana poderia, se quisesse, abonar o seu passado, assumindo a condição de paracleto, que lhe é devida pelos esforços e sacrifícios que vem despendendo para instalar e consolidar a obra que tem por magna da sua vida, o complexo cultural que ergueu em Matalane, sua aldeia natal, situada a cerca de trinta quilómetros da capital, onde já passaram, e passam, ainda, milhares estudantes sem posses, mas com talento, e uma grande vontade de aprender; poderia, talvez, inventariar as humilhações e ofensas sofridas, as explorações de que foi vítima, devido à sua ingenuidade e bondade natural; contar como esteve preso na Pide, durante mais de um ano, sabendo que, do outro lado da cidade, a mulher e os filhos passavam duríssimas dificuldades para sobreviverem. Poderia louvar-se no núcleo, que reuniu à sua volta, a seu chamamento, e pelo exemplo de um labor infatigável na realização dos seus intentos, levando, e recebendo, no santuário em que transformou a sua casa, além do malogrado e excepcional Manuel Chissano, escultor sem igual, outros pintores e artistas, o Obdias Muchanga, José Júlio, Mankéu, Obelino, Sérgio Guerra, e tantos mais, poetas e jornalistas, o José Craveirinha, o Luís Bernardo Honwana, o Rui Nogar, Lindo Hlonqo, até a mulher do falecido escritor argelino Franz Fanon, o Norberto Barroca, homens de leis e de cultura, como o Dr. Almeida Santos, Dr. Ney Ferreira, Dr. Martins da Fonseca, Dr. Valadas Preto, Dr. Antero Sobral; poderia ainda adornar o seu currículo, acrescentando-lhe as referências aos seus poemas, um dos quais ("Mulher", versão inglesa de Philippa Rumsey) foi incluído numa antologia de 1989(The PenguinBook of Southern Verse).

Poderia citar as reproduções dos seus trabalhos em revistas de cultura, e da especialidade, em todo o mundo, as referências críticas de homens de proa, e dos mais reputados da cultura internacional, muitos deles levados a sua casa pelo Pancho Miranda Guedes e sua Mulher Dorothy; enumerar, senão todos, ao menos uma dúzia, ou duas, das exposições individuais que, em toda a parte, têm sido feitas dos seus quadros, e do apreço pelos mesmos manifestado, em relação aos quais se lhe outorga a dimensão universalista que o distingue entre os maiores pintores da sua época.

Mas ele, bonacheirão e simples, no seu grande e aberto sorriso, continua a contar, sem qualquer constrangimento, que a sua vida começou como apanha-bolas, e criado de meninos, que entretanto cresceram, e por quem Malangatana continua a nutrir a mesma ternura e amizade dos tempos de guerra.

Malangatana: "Sinais". Acrílico sobre tela, 140 x 120 cm, 1991.

Este feitio, descontraído e franco, de homem sem rancores, dado ao diálogo simples, tem iludido muita gente, que, por meia dúzia de contactos, e através de uma leitura, nem sempre muito atenta, dos seus quadros, julga conhecer bem o Malangatana e a sua arte.

Não é fácil conhecer bem este homem suburbano, que não se envergonha nada de o ser, sinal de que não abandonou as origens e parceiros. Principalmente se forem essas as únicas referências de que se disponha para lhe definir, sequer, os contornos.

Por muito valiosa, e autêntica, e isso ninguém contesta; e por suprema que se tenha, e tem-na, certamente, conforme assim a proclamam as opiniões do mundo culto, e a crítica da especialidade, a qualidade artística da sua obra — esta não caracteriza, por inteiro, e completamente, o homem que a produziu, nas facetas mais peculiares da sua genuína personalidade. A modéstia e a humildade da sua forma natural de ser, ausência total de uma talvez justificada porção de ostentação vaidade; a tolerância, a generosidade, a alegria espontânea do convívio, a facilidade de entendimento da linguagem dos sinais, a bondade, isenta da eventual agressividade de que o acusam, nos seus quadros, o sentido de fraternidade e entrega que dedica aos seus amigos, a perfeita disponibilidade para gostar de toda a gente — tudo são atributos que não deixarão, no mínimo, de o erguer à altura a que alcandoraram, quase autónoma e paralelamente, a sua obra.

Malangatana: "Amo-te" (desenho feito na cadeia da PIDE), 1965.

Esta bifocagem absurda, ténue, mas perceptível, em que prevaleça a obra sobre o autor, poderia induzir o artista a considerar que as pessoas gostarão mais da sua pintura do que de si mesmo. Por vezes, à forma de tanto se relevar a obra, com efeito, resvala-se, quase sem se dar por isso, para um certo distanciamento em relação a quem a produziu. A explicação eventualmente possível do fenómeno não será incurial no campo elementar da psicologia comportamental. O fruidor reconhece o mérito da obra, identifica-se com a mesma quando a avalia (geralmente em voz alta) ignorando instintivamente aquele que lhe possa contestar a pose. Estabelecido o nivelamento entre o fruidor e a obra, o autor fica irremediavelmente colocado na sombra, espécie de segunda linha, a quem secita quasepor condescendência.

O fruidor assume aí uma tendência paternalista/racista, que ofenderia o autor, se este levasse o espectáculo a sério. A Malangatana isto não passa despercebido. Não fica muito feliz, mas encolhe os ombros. Ele é modesto, é humilde, cala-se, contudo, que ninguém pense em lhe comer as papas na cabeça. De estúpido, ou mampara, que é o mesmo no dialecto da sua terra, é que ninguém espere que seja. Autodidacta empenhado e obstinado, tem orientado a sua apetência pelo saber de uma forma planeada e criteriosa, sobrando-lhe da aplicação, e de uma notável capacidade de apreender o essencial do que é importante e básico — um balanço que ultrapassa os limites propedêuticos do conhecimento. Grandes parcelas de experiência, e a lucidez que lhe esmalta a intuição foram adquiridas destes e outros frequentes contactos com problemas e pessoas, e de cuja adição global tem recolhido fundas lições que o preservam de ser iludido pelas aparências.

Quando aqui esteve com a sua exposição, os Serviços de Educação convidaram-no a dirigir uma aula de artes visuais aos alunos do Liceu. Os ensinamentos que ali ministrou, os comentários que ia fazendo aos desenhos, seus e dos discípulos, manteriam colados à sua volta duas dezenas de alunos entusiasmados, durante cinco horas seguidas, esquecidos o lanche e o recreio. E entre toda aquela juventude empolgada e feliz, o mais feliz de todos era o artista...

Malangatana foi mesmo convidado a repetir a experiência, num curso de alguns dias, quando aqui voltar. Está prometido.

Malangatana: "Circuito". Óleo sobre tela, 143 x 125 cm, 1993.

A sua presença, e a realização da exposição em Macau, a convite pessoal do Governador, por ocasião das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, constituíram, à partida, o reconhecimento e muito apreço pelo seu grande talento.

Mas haveria uma segunda razão, adicional e competente, que, plenamente, justificaria a sua vinda a Macau, e, mais significativamente, no Dia 10 de Junho: a notória, dedicada e fraterna amizade que conservou, e mantém, pelos portugueses, por Portugal.

Em Março pretérito, numa luzida cerimónia, a que presidiu o então Presidente Dr. Mário Soares, e promovida pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada, para lançamento do seu já aqui referenciado livro, Vinte e Quatro Poemas, Malangatana narrou uma pequena estória, sem nenhuma ideia preconcebida, apenas com a espontaneidade do homem simples e despretensioso que sempre fora, e é: — desembarcado no aeroporto de Lisboa, ido de Moçambique, tendo de passar pelos Serviços de Imigração, reparou em duas saídas de passageiros, uma delas com a tabuleta de "Estrangeiros", e a outra com um letreiro informando que aquela se destinava a "Nacionais e Passaportes da C. E. E.". Malangatana, com toda a naturalidade, dirigiu-se à segunda.

— "O senhor não é daqui, pertence àquela bicha", informou o funcionário da Imigração. — Porquê?

— Esta saída é para nacionais e detentores de passaportes da Europa.

— Ah! Sim? Em que Língua é que eu estou a falar consigo? Veja o meu passaporte, em que idioma é que está escrito?

E o homem disse: Em Português!

— Mas o senhor não é Português. É Moçambicano. E o Malangatana volveu:

— Sabe o que disse um dia o Fernando Pessoa? Que a sua Pátria era a sua Língua. Eu, como o senhor, falamos a mesma Língua de Camões, temos ambos a mesma Pátria. Faça favor de me deixar passar...

E passou.

Ninguém detém o Malangatana quando ele quer passar... Diga-se, portanto, depois disto, se o Malangatana não tinha, de facto, mais uma razão, além da sua Arte, para estar fraternalmente, connosco, em Macau, no Dia das Comunidades, no Dia de Camões, em qualquer dia, em qualquer lado, onde se fale a Língua dos Lusíadas. Hoje e Sempre.

Malangatana: "Até o menino voltou". Óleo sobre tela, 143 x 125 cm, 1993.

* Licenciado em História pela Universidade Clássica de Lisboa, professor e jornalista. Entre os trabalhos publicados, destacam-se Memórias das Armadas da índia, Trovas Macaenses e Introducáo à História da Literatura da China, e o romance Kufemba.

desde a p. 238
até a p.