Linguística

POEMAS DE CHIA TAO SEGUIDOS DE GLOSA

José Alberto Oliveira*

Quando interroguei o discípulo sob o pinheiro,2"o mestre" — respondeu — "procura ervas, mas de que lado da montanha, como sabê-lo, com todas estas nuvens?"

    Soçobrava
    entre o lódão dos tanques
    e a nudez do pousio, nodosa tarde, 
    De súbito, 
    
    um gaio levantou voo, 
    a poeira do sol caiu
    das folhas dos álamos
    e as rãs nos charcos
    abreviaram o silêncio. 
    
    Passam bandos de gansos no céu
    acre de Outono. Caem dos castanheiros
    as folhas gastas. 
    O vento enrola
    farrapos de nuvens negras. Junto
    à casa, ele parte lenha, sob o olhar
    atento do cão, que ladra aos patos. 
    
    O Outono chegava pelos ramos
    do pomar, com o seu fardo de uvas
    e nuvens, pesado de memórias e dias
    de chuva, quando as folhas caem
    na lama dos caminhos. Um homem
    com um burro desce a colina e tropeça
    numa raiz de cerejeira. A mulher, 
    junto ao muro, ri-se. Ele olha-a
    e assobia aos animais. Na aldeia
    um sino bate das seis a meia hora; no
    bosque, trocista, um cuco responde ao desafio. 
    
    Lembro-me de uma tarde, 
    de uma só tarde. Na roseira
    e nos malmequeres pousava
    a abelha. Enormne era
    o Verão. Ainda maior o desejo. 
    
    Ele foi procurar ervas na montanha: 
    com estas nuvens, quem poderá dizer para onde? 
    
    Junto à montanha do Tigre corre o prazer
    das madrugadas: o ar fresco, o sol lavado. 
    
    Soldados, para o sul, passam ao longe, 
    como as narcejas: carregam magros despojos, 
    pálidas mulheres do Norte. 
    
    Um dia parti, julgando não voltar: 
    o rio era grande, os caminhos sombrios. 
    
    Quando a noite se anunciava, acendi
    a luz junto à janela: uma borboleta bateu nos vidros. 
    
    Avivei o lume, pus violetas e um
    ramo de rosas, nas jarras: sozinha preparo o jantar. 
    
    A sombra da montanha pacifica
    o fim da tarde. O silêncio dos pescadores. 
    
    Passam bandos de gralhas, gritando "quiá, 
    quiá", incitando ao regresso a casa. 

NOVE GLOSAS DE KWANG TSE

HSIAO YAO-YU

    O peixe (khwan) polindo as sombrias
    escamas no mar do norte? 
    O pássaro (phang)) lavando as sombrias
    asas no mar do sul? É esse
    o tamanho da alma? E quem é
    o homem, breve cigarra, perseguido
    por geadas e a inveja, para julgar? 
    
    Quando nenhuma nuvem tolda o céu
    nos dias de Verão, o cão, sedento, 
    procura as soleiras das portas, onde repousa
    uma rápida frescura. A essa hora levanta-se
    o padeiro que a noite encontrou fazendo
    o pão. Pousa no chão os pés nus
    e bebe água fresca da bilha de barro. 
    
    Das muitas paragens de que é feito
    um caminho. De madrugada, distraído
    dos pequenos delitos, como jogos
    de cobra gravados no pó. A inquietude
    do silêncio. 
    
    Aquele que
    regressa a casa e encontra a mesa posta
    para o almoço, que sabe ele do jejum? 
    Contudo, "o nome é apenas
    o hóspede da realidade" — disse Hsu Yu. 

KHI WU LUN

    Construí um palácio em que cada quarto
    tem um jardim, 
    corredores que talvez não tenham
    fim e salas que a água
    refresca, em canos de jade. Foi
    a mais doce forma do desespero. 
    Kao Wan tocava o seu alaúde, antes
    de as dúvidas e o cansaço
    
    apodrecerem as maçãs. Sentei-me
    no chão, observando o pó nas gretas
    dos dedos dos pés. Pó de vários
    caminhos, lama e a marca dos dentes
    dos cães. Pó de estar
    à espera, mais do que andar; 
    
    de nunca saber quando serei
    sonho e quando borboleta
    e quando voarei ao acordar. 

YANG SHANG KU

    Mentes de professor, gente
    capaz de fatigar um silêncio, 
    resguardar árvores do sol, 
    da chuva e do vento, 
    enquanto elaboram estratégias
    de desbaste e enxertia. 
    
    A faca de um bom cozinheiro
    evita os tendões mais duros, 
    encontra o espaço entre as cartilagens, 
    corta a carne pela linha do sangue
    — dura dezassete anos, pelo menos. 
    
    O traço onde sem esforço os oss
    os se separam. O espanto
    de mulheresdepois do parto, 
    quando muito falta, mas algo sobra. 

ZAU KIEN SHIH

    Por que se debruça um homem
    sobre a sua voz, ou convoca
    um silêncio curvo? 
    Que faz alguém sonhar
    a sua vida como se não
    acontecesse, alguém
    olhando as mãos, sem alegria? 
    
    Tudo o que tem um tempo, 
    a duração de um vinho, 
    destinos governados pelo
    mais íntimo acaso, 
    a mais propícia incerteza. 
    
    Barcos. De manhã, o taberneiro
    avivou a chama dos candeeiros; 
    em ruas perdidas
    pela tentação da noite
    e o amargo amor da morte. 
    
    Por que dorme um homem
    como se o silêncio cobrisse
    todos os pinheiros? 
    Que mulher lhe tramou
    a cilada do desejo? 
    Inquietações traídas
    apenas pelo brilho dos olhos. 

T EH KUNG FU

    Amo a rosa, o segredo
    da sua alacridade, a volúpia
    da melancolia. Mas como
    recordar o teu nome
    no íntimo dos jardins
    cercados pelo buxo? 
    
    Poderia sentir na eloquência
    das tardes o prazer da
    loucura, sem ser virtuoso? 
    Deverá a virtude cortar
    os pés? Caminhar
    com a armadura da renúncia, 
    como quem está desatento
    ao canto das rãs, no charco? 
    
    Escrevo a frágil ignorância
    que, antes, pobre de mim, não tinha. 

TEH ZUNG SHIH

    Um homem virtuoso rejubila
    com as mais ténues cores do poente, 
    caminha com a face junto à terra, 
    cheirando a humilde bosta das vacas, 
    porque ele está cheio de sabedoria, 
    embora sujo. 
    
    Um homem virtuoso sabe
    que é sem amor que um corpo
    se curva. Ele não tem
    mais destino que um empregado
    de escritório, não mente mais que
    um louco; chora com os lobos e os cavalos. 
    
    Três magarefes estavam sentados, 
    rindo da desavinda fé dos humildes. 
    Eles que tinham cometido todos
    os crimes e criam na bondade intrínseca
    do homem e faziam projectos de futuro. 
    Esses eram homens de virtude. 
    
    Sicrano chegou junto deles e perguntou: 
    quem pagará a conta das sopas, 
    quem estenderá um pano sobre a cara
    do moribundo, quem com destra mão
    cravará o punhal no peito do
    pai da pátria? A quem sobrará tempo
    com uma bala na cabeça? E eles
    riram, com a inocência do peru bêbedo. 

YING TI WANG

    Alguém, frente a um destino
    sem lágrimas, 
    resume a sua vida como se
    uma guerra tivesse findado
    e outra fosse começar. 
    
    Sofrendo a lama, 
    a impiedade da chuva. 
    Subindo pelas noites de Verão
    à procura de crianças descuidosamente
    perdidas nos vãos das portas. 
    
    O amor e a morte — o que menos
    dura. Alguém junto ao rio, 
    pensando. Disposto
    a beber todo o vinho oferecido
    por ociosos e aflitos. 
    
    Uma noite, já bêbedo, contaram-lhe
    uma história: um que partira, 
    outro que ficara por cansaço
    — como se tivesse importância. 
    
    Finalmente alcançou o desapego, 
    a felicidade totsal, o ministério
    da mais completa indiferença. 
    Desceu as escadas para o cais, 
    ouvindo miarem os gatos nos telhados, 
    dizendo boa-noite aos que voltavam. 

PHIEN MAU

    De que servem uns pés de pato
    a quem não sabe nadar? Um dedo
    extra permitirá coçar melhor o nariz, 
    mas o seu possuidor ofende a economia. 
    
    O dispensador de virtudes encontrou
    um juiz que jurava ser justo
    e um padeiro que nunca roubava no peso. 
    
    Mediu-lhes, então, a concupiscência, 
    a vaidade, as humilhações gravadas no rosto
    — eram tão dignos de abjecção como
    quem nunca carregou seu pai morto às costas. 
    
    Um funcionário com a sua probidade, 
    um ladrão com os seus furtos, 
    um tigre com a boca cheia de sangue. 
    
    O nada não tinha olhos. Foi quando Shu, 
    o rei do mar do Sul e Hu, que governava
    o do Norte começaram a fazer
    buracos nas suas costas, para que
    
    visse, cheirasse, comesse, respirasse. 
    Assim começou a grande controvérsia
    entre as nações. Desde esses anos
    que o leiteiro nunca chega a horas. 

MA THI

    Paixão das cidades, detritos, 
    consequências perversas da equanimidade; 
    o que tem préstimo atravanca
    os meses, trepa pelos caleiros, 
    impede o crescimento dos jasmins. 
    
    Fizeram barquinhos cheios
    de escorbuto, onde eram tantos
    os ladrões e os padres, que voltaram
    cobertos de glória, pimenta
    e almas roubadas ao inferno. 
    O usurário fez as contas: mil
    escudos pelas almas, o resto
    a cobrar juros, se vender as medalhas. 
    Salva-se a pimenta, quando de boa qualidade. 
    
    Decretou-se a verdade, 
    os crimes floresceram em bravura
    e sabedoria, inaugurou-se
    o saque das nações, a bondade
    dos costumes, a iluminação
    das grandes cidades. Descemos
    a rua com a simpatia no bolso
    de trás das calças. Crucificamos
    as plantas, penduramos, 
    no arame da roupa, os pássaros. 

Falamos, falamos até acreditarmos.

OLIVEIRA, José Alberto, Por Alguns Dias, Lisboa, Assírio e Alvim, 1992 (Peninsulares, Literatura, 38), pp. 41-57.

* Publicou O Roubo da Fala, em colaboração com Manuel Afonso Costa e António José Paisana, e o livro Por Alguns Dias, na Assírio e Alvim. Poesia dispersa: "Anuários de Poesia", "Revista Nós de Cultura Galaico-Portuguesa", "A PHALA" e "Jornal de Letras", entre outros.

desde a p. 152
até a p.