Quando interroguei o discípulo sob o pinheiro,2"o mestre" — respondeu — "procura ervas, mas de que lado da montanha, como sabê-lo, com todas estas nuvens?"
Soçobrava
entre o lódão dos tanques
e a nudez do pousio, nodosa tarde,
De súbito,
um gaio levantou voo,
a poeira do sol caiu
das folhas dos álamos
e as rãs nos charcos
abreviaram o silêncio.
Passam bandos de gansos no céu
acre de Outono. Caem dos castanheiros
as folhas gastas.
O vento enrola
farrapos de nuvens negras. Junto
à casa, ele parte lenha, sob o olhar
atento do cão, que ladra aos patos.
O Outono chegava pelos ramos
do pomar, com o seu fardo de uvas
e nuvens, pesado de memórias e dias
de chuva, quando as folhas caem
na lama dos caminhos. Um homem
com um burro desce a colina e tropeça
numa raiz de cerejeira. A mulher,
junto ao muro, ri-se. Ele olha-a
e assobia aos animais. Na aldeia
um sino bate das seis a meia hora; no
bosque, trocista, um cuco responde ao desafio.
Lembro-me de uma tarde,
de uma só tarde. Na roseira
e nos malmequeres pousava
a abelha. Enormne era
o Verão. Ainda maior o desejo.
Ele foi procurar ervas na montanha:
com estas nuvens, quem poderá dizer para onde?
Junto à montanha do Tigre corre o prazer
das madrugadas: o ar fresco, o sol lavado.
Soldados, para o sul, passam ao longe,
como as narcejas: carregam magros despojos,
pálidas mulheres do Norte.
Um dia parti, julgando não voltar:
o rio era grande, os caminhos sombrios.
Quando a noite se anunciava, acendi
a luz junto à janela: uma borboleta bateu nos vidros.
Avivei o lume, pus violetas e um
ramo de rosas, nas jarras: sozinha preparo o jantar.
A sombra da montanha pacifica
o fim da tarde. O silêncio dos pescadores.
Passam bandos de gralhas, gritando "quiá,
quiá", incitando ao regresso a casa.
NOVE GLOSAS DE KWANG TSE
HSIAO YAO-YU
O peixe (khwan) polindo as sombrias
escamas no mar do norte?
O pássaro (phang)) lavando as sombrias
asas no mar do sul? É esse
o tamanho da alma? E quem é
o homem, breve cigarra, perseguido
por geadas e a inveja, para julgar?
Quando nenhuma nuvem tolda o céu
nos dias de Verão, o cão, sedento,
procura as soleiras das portas, onde repousa
uma rápida frescura. A essa hora levanta-se
o padeiro que a noite encontrou fazendo
o pão. Pousa no chão os pés nus
e bebe água fresca da bilha de barro.
Das muitas paragens de que é feito
um caminho. De madrugada, distraído
dos pequenos delitos, como jogos
de cobra gravados no pó. A inquietude
do silêncio.
Aquele que
regressa a casa e encontra a mesa posta
para o almoço, que sabe ele do jejum?
Contudo, "o nome é apenas
o hóspede da realidade" — disse Hsu Yu.
KHI WU LUN
Construí um palácio em que cada quarto
tem um jardim,
corredores que talvez não tenham
fim e salas que a água
refresca, em canos de jade. Foi
a mais doce forma do desespero.
Kao Wan tocava o seu alaúde, antes
de as dúvidas e o cansaço
apodrecerem as maçãs. Sentei-me
no chão, observando o pó nas gretas
dos dedos dos pés. Pó de vários
caminhos, lama e a marca dos dentes
dos cães. Pó de estar
à espera, mais do que andar;
de nunca saber quando serei
sonho e quando borboleta
e quando voarei ao acordar.
YANG SHANG KU
Mentes de professor, gente
capaz de fatigar um silêncio,
resguardar árvores do sol,
da chuva e do vento,
enquanto elaboram estratégias
de desbaste e enxertia.
A faca de um bom cozinheiro
evita os tendões mais duros,
encontra o espaço entre as cartilagens,
corta a carne pela linha do sangue
— dura dezassete anos, pelo menos.
O traço onde sem esforço os oss
os se separam. O espanto
de mulheresdepois do parto,
quando muito falta, mas algo sobra.
ZAU KIEN SHIH
Por que se debruça um homem
sobre a sua voz, ou convoca
um silêncio curvo?
Que faz alguém sonhar
a sua vida como se não
acontecesse, alguém
olhando as mãos, sem alegria?
Tudo o que tem um tempo,
a duração de um vinho,
destinos governados pelo
mais íntimo acaso,
a mais propícia incerteza.
Barcos. De manhã, o taberneiro
avivou a chama dos candeeiros;
em ruas perdidas
pela tentação da noite
e o amargo amor da morte.
Por que dorme um homem
como se o silêncio cobrisse
todos os pinheiros?
Que mulher lhe tramou
a cilada do desejo?
Inquietações traídas
apenas pelo brilho dos olhos.
T EH KUNG FU
Amo a rosa, o segredo
da sua alacridade, a volúpia
da melancolia. Mas como
recordar o teu nome
no íntimo dos jardins
cercados pelo buxo?
Poderia sentir na eloquência
das tardes o prazer da
loucura, sem ser virtuoso?
Deverá a virtude cortar
os pés? Caminhar
com a armadura da renúncia,
como quem está desatento
ao canto das rãs, no charco?
Escrevo a frágil ignorância
que, antes, pobre de mim, não tinha.
TEH ZUNG SHIH
Um homem virtuoso rejubila
com as mais ténues cores do poente,
caminha com a face junto à terra,
cheirando a humilde bosta das vacas,
porque ele está cheio de sabedoria,
embora sujo.
Um homem virtuoso sabe
que é sem amor que um corpo
se curva. Ele não tem
mais destino que um empregado
de escritório, não mente mais que
um louco; chora com os lobos e os cavalos.
Três magarefes estavam sentados,
rindo da desavinda fé dos humildes.
Eles que tinham cometido todos
os crimes e criam na bondade intrínseca
do homem e faziam projectos de futuro.
Esses eram homens de virtude.
Sicrano chegou junto deles e perguntou:
quem pagará a conta das sopas,
quem estenderá um pano sobre a cara
do moribundo, quem com destra mão
cravará o punhal no peito do
pai da pátria? A quem sobrará tempo
com uma bala na cabeça? E eles
riram, com a inocência do peru bêbedo.
YING TI WANG
Alguém, frente a um destino
sem lágrimas,
resume a sua vida como se
uma guerra tivesse findado
e outra fosse começar.
Sofrendo a lama,
a impiedade da chuva.
Subindo pelas noites de Verão
à procura de crianças descuidosamente
perdidas nos vãos das portas.
O amor e a morte — o que menos
dura. Alguém junto ao rio,
pensando. Disposto
a beber todo o vinho oferecido
por ociosos e aflitos.
Uma noite, já bêbedo, contaram-lhe
uma história: um que partira,
outro que ficara por cansaço
— como se tivesse importância.
Finalmente alcançou o desapego,
a felicidade totsal, o ministério
da mais completa indiferença.
Desceu as escadas para o cais,
ouvindo miarem os gatos nos telhados,
dizendo boa-noite aos que voltavam.
PHIEN MAU
De que servem uns pés de pato
a quem não sabe nadar? Um dedo
extra permitirá coçar melhor o nariz,
mas o seu possuidor ofende a economia.
O dispensador de virtudes encontrou
um juiz que jurava ser justo
e um padeiro que nunca roubava no peso.
Mediu-lhes, então, a concupiscência,
a vaidade, as humilhações gravadas no rosto
— eram tão dignos de abjecção como
quem nunca carregou seu pai morto às costas.
Um funcionário com a sua probidade,
um ladrão com os seus furtos,
um tigre com a boca cheia de sangue.
O nada não tinha olhos. Foi quando Shu,
o rei do mar do Sul e Hu, que governava
o do Norte começaram a fazer
buracos nas suas costas, para que
visse, cheirasse, comesse, respirasse.
Assim começou a grande controvérsia
entre as nações. Desde esses anos
que o leiteiro nunca chega a horas.
MA THI
Paixão das cidades, detritos,
consequências perversas da equanimidade;
o que tem préstimo atravanca
os meses, trepa pelos caleiros,
impede o crescimento dos jasmins.
Fizeram barquinhos cheios
de escorbuto, onde eram tantos
os ladrões e os padres, que voltaram
cobertos de glória, pimenta
e almas roubadas ao inferno.
O usurário fez as contas: mil
escudos pelas almas, o resto
a cobrar juros, se vender as medalhas.
Salva-se a pimenta, quando de boa qualidade.
Decretou-se a verdade,
os crimes floresceram em bravura
e sabedoria, inaugurou-se
o saque das nações, a bondade
dos costumes, a iluminação
das grandes cidades. Descemos
a rua com a simpatia no bolso
de trás das calças. Crucificamos
as plantas, penduramos,
no arame da roupa, os pássaros.
Falamos, falamos até acreditarmos.
OLIVEIRA, José Alberto, Por Alguns Dias, Lisboa, Assírio e Alvim, 1992 (Peninsulares, Literatura, 38), pp. 41-57.
* Publicou O Roubo da Fala, em colaboração com Manuel Afonso Costa e António José Paisana, e o livro Por Alguns Dias, na Assírio e Alvim. Poesia dispersa: "Anuários de Poesia", "Revista Nós de Cultura Galaico-Portuguesa", "A PHALA" e "Jornal de Letras", entre outros.
desde a p. 152
até a p.