Linguística

A PRESENÇA DE MACAU NA VIDA E NA OBRA DE VENCESLAU DE MORAIS

Jorge Dias*

"Venceslau de Morais". Li Zhi Yue. Aguarela e lápis sobre cartão, 1996.

No século XVI a China foi envolta em halos irisados, com tonalidades utópicas, por Fernão Mendes Pinto e outros. Bem diferente foi a perspectiva de Venceslau de Morais que viu o Império do Meio durante um período de extrema decadência.

O primeiro tenente Venceslau de Morais chegou a Macau a 7 de Julho de 1888, a bordo do transporte "Índia":"Era o primeiro contacto de Venceslau de Morais com aquela Chinaexótica e misteriosa, que havia de encantar o seu temperamento emotivo de artista."1.

No dia 8 de Julho Morais passou do "Índia" para a canhoneira "Rio Lima" para servir como imediato. O navio largou depois para Hong Kong, para reparações. Conduzia o governador cessante de Macau, tenente-coronel Firmino José da Costa, que regressava a Portugal. A canhoneira voltou a Macau a 28 de outubro. O comandante, capitão-tenente José Ribeiro de Santa Bárbara, informou que Morais era "assíduo eincansável no serviço". Em juízo ampliativo acrescentou: "É um oficial bastante inteligente, zeloso e modelo de boas qualidades, civis e militares."2

A "Rio Lima" efectuou depois várias viagens em serviço. Partiu para Timor, Hong Kong, Filipinas, Amói, Fucheu. Em 1889 fundeou em Xangai. A colónia macaense ali residente contava mais de 300 pessoas. Depois o navio passou a Dagu (perto de Tientsin) e a Qufu.

Em 1889 Morais viu pela primeira vez o Japão. Ficou deslumbrado. Esteve em Nagasáqui, Iocoama e Tóquio. A 3 de Setembro regressou a Macau. De novo partiu em serviço: de novo esteve em Xangai e Hong Kong.

Em 31 de Dezembro de 1889 Morais passou da canhoneira "Rio Lima" para a canhoneira "Tejo". Este passou a navio-chefe da estação naval, sendo Morais imediato do navio. Em 3 de Março de 1890 Morais assumiu o comando da canhoneira "Tejo".

Em 20 de Abril de 1890 o navio largou para Banguecoque. Havia na cidade cerca de 50 macaenses: "Este primeiro comando e a missão ao Sião, permitiram pôr em evidência o diplomata e o marinheiro consumado, que era, então, Venceslau de Morais."3 O oficial recebeu então vários louvores.

Em 1890 foi nomeado um novo governador: Custódio Miguel Borja. Em 16 de Outubro desembarcou na Praia Grande.

A 20 de Janeiro de 1891, Morais assumiu o comando interino da Estação Naval de Macau. Só exerceu o comando até Março.

Terminada a comissão nos mares da China, a "Tejo", sob o comando de Morais, regressou ao reino de Portugal: "Esta viagem, de Macau a Lisboa, em navio velho e cheio de mazelas, confirmou Venceslau de Morais como excelente oficial de mar, fino diplomata nos portos e bom condutor de homens a bordo."4

De regresso a Macau, em 1891, Morais foi promovido a capitão-tenente e nomeado imediato do capitão do porto de Macau.

Em Junho de 1893 Morais foi encarregado de adquirir artilharia para o serviço da província nos arsenais imperiais do Japão. Foi de novo louvado: "Pela inteligência e dedicado zelo que desenvolveu no cabal cumprimento da comissão para que foi nomeado pela portaria de 3 de Junho de 1893."5

Morais foi depois mandado reassumir as funções de delegado do Superintendente da Importação e Exportação do Ópio, em Macau. A 30 de Dezembro de 1893 foi promovido a capitão de fragata. A 3 de Fevereiro de 1894 Morais foi exonerado daquelas funções.

A 16 de Abril de 1894, Morais tomou posse do cargo de professor de Matemática Elementar do Liceu Nacional de Macau.

A 4 de Julho de 1897 Morais seguiu para o Japão na comitiva do governador de Macau, coronel Eduardo Galhardo. A missão foi recebida em Quioto pelo imperador Meiji. Regressou a Macau a 28 de Agosto do mesmo ano.

A 22 de Setembro de 1897 Morais foi nomeado para fazer parte do júri de exames de instrução secundária no liceu de Macau.

A 8 de Junho de 1898 Morais foi exonerado de imediato da capitania de Macau, para ser nomeado encarregado da gerência interina do Consulado português de Cobe e Ósaca.6 Iniciava-se o período japonês de Morais: não regressaria jamais à China.

Morais esteve ligado a Macau durante um período de cerca de 10 anos: de 1888 a 1898. Demonstrou ser um oficial brilhante:"No comando da canhoneira Tejo, nas duas viagens nela feitas, aparece em plena luz o profissional distinto e inteligente que soube planear com acerto as suas derrotas, conduzir o navio com ciência e perícia e, nos portos, haver-se com distinta cortesia no trato com as autoridades locais."7

Antes do embarque na "Tejo" Morais conheceu em Macau uma chinesa, Atchan, com quem passou a viver. Nascida talvez em Cantão, veio depois para Macau. Morais celebrou-lhe a beleza das mãos, o negro fulgor dos olhos8. Atchan teve dois filhos de Morais. Visitou o escritor no Japão, em 1908 e 1927.No seu testamento, redigido em Tocoxima em 1919, Morais declarou seus herdeiros os dois filhos.9

Numa carta da Macau, datada de 20 de Maio de 1895, Morais escreveu: "Temos a peste em casa. Contam-se já centenas de vítimas entre os chineses, e bastantes entre os macaenses; os europeus têm sido até agora poupados. A enorme população do Bazar foge para diferentes pontos da China. Macau acha-se muito despovoada. Está feita a paz entre a China e o Japão."10

No seu primeiro livro, Traços do Extremo Oriente, Morais aludiu frequentemente à China. Descreveu os bairros anfíbios de Cantão: uma cidade flutuante. Dedicou à Gruta de Camões algumas páginas de antologia: "O jardim da Gruta de Camões é um dos sítios mais aprazíveis do nosso pequenino domínio no Extremo Oriente; ao prestígio da sua velha lenda reúne o encanto natural da posição culminante dos horizontes vastos, da vegetação vigorosa que aqui encontra asilo, aconchegada com as rochas contra a fúria inclemente dos tufões." Morais descreveu ainda o soberbo panorama que se avista do jardim: "Vê-se em baixo a cidade, a amálgama prodigiosa das negras casas chinesas, a linha serpeada das vielas; e chega-nos confuso o som de mil pregões dos bazares, o papear insólito dos garotos, o ruído dos tantãs e dos foguetes festivos."11

É também vívida e colorida a descrição do Qing Ming, a festa dos mortos. No dia 5 de Abril de 1890 Morais dirigiu-se aos cemitérios e observou as cerimónias, depois de atravessar Macau. Em "Na Rua" Morais descreve a Rua da Felicidade, com os seus restaurantes, casas de jogo de fantan, os vendilhões de flores e os recintos de prazer. Noutros esboços Morais descreve o movimento das ruas de Macau, as cenas da vida diária, o odor das comidas. Outros quadros são mais lúgubres. Tal é o caso de "As Half-caste" e de "Os Leprosos". Outro esboço, "Combate de Feras" é uma vinheta sorridente e exótica: as feras são grilos. "O Encanto dos Charcos" está saturado da beleza da paisagem rural chinesa. Num domingo soalheiro, Morais seguiu pelos campos, com o seu cão Kowloon. E descreveu, com tonalidades de colorista minucioso, os encantos da natureza. "Um Eclipse Total da Lua" descreve um fenómeno espectacular. E Morais desce ao torrão chinês. Macau repousava: "Há pouco, os caminhos brancos de luar, alcatifados pela sombra rendilhada do arvoredo, convidavam ao passeio. Agora não, estão lôbregos. A cidade repousa: são mais de dez horas, e em solo chinês a actividade exterior declina ao cair da noite. Dentro das habitações, portas fechadas, trabalha-se ainda porventura, ou bebe-se chá em íntimo convívio; e, nos cenáculos de prazer, os ricos fumam ópio, ou saboreiam repastos prodigiosos, enquanto que as raparigas, flores, nos cabelos e cingidas em sedas lhes cantarolam trovas, ou lhes enviam sopros capitosos ao doce arfar das suas ventarolas. Ao longe ressoavam os tantãs."12

Em "Os Templos" Morais refere-se a santuários não longe de Macau: o de Cat-tae, o Tchon-Sing-tong da Lapa, as Onze Mesas dos excursionistas.

Outras notas contêm evocações das relações entre os marinheiros portugueses e as barqueiras chinesas. Em Macau, segundo Morais, o tempo passava ligeiro, a existência era fácil, o clima era salubre em contraste com o da África. Saídos dos navios em tancás, os marinheiros percorriam Macau em riquixós, percorrendo as lojas, os fantans. E Morais evoca os amores de um marujo, José Ilhéu, e de Atahú, uma tancareira. Tal é o tema de "Tancás e Marinheiros," esboço de 1892.

Num esboço intimista, "A Minha Casa" Morais descreve a sua instalação em Macau. Trouxera duas malas com roupa e um caixote com livros. Para mobilar a casa teve de recorrer aos tintins. Descreveu o ambiente chinês. No pátio interior cultivava plantas e criava peixes. Sentia-se bem em Macau: "Está tudo bem. Estes quadros japoneses, destacando das paredes muito brancas, trazem-me ao espírito uma agradável reminescência do maravilhoso país de Nipão, que há anos percorri com tanto interesse. Na estante, perfilam-se na melhor ordem os meus livros preferidos, os meus bons companheiros. Sobre a mesa ampla, uma verdadeira mesa de trabalho, espadanam folhas viçosas dum vaso de porcelana do Japão; a um canto, numa jarra, um ramo de flores frescas e perfumadas; o papel, as penas, o tinteiro, o tabaco, as bagatelas de uso habitual, agrupam-se, amontoam-se, numa desordem toda minha, convidando ao trabalho de espírito, na paz serena da solidão."13 Mas nesse dia de Março de 1892, uma súbita angústia, uma dor de alma assaltou Morais: só lhe faltava a felicidade, que lhe desse um rumo na viagem da existência... Era um mal-estar indefinível.

Traços do Extremo Oriente conclui com "Últimos Apontamentos da China". Evoca as plantas arquetipais da China: o arroz e o bambu.

Traços é um belo livro, mas bem inferior ao seguinte, Dai-Nippon. O Japão era para Morais uma terra encantada. E a China, em geral, um país de "desolação e angústia". Esse facto poderia explicar a diferença de qualidade entre os dois livros. Em Dai-Nippon Morais esboçou um quadro lúgubre da China do seu tempo: "Ah! esta China, com os seus quatrocentos milhões de habitantes, com o seu vastíssimo domínio, com a sua labuta infatigável de cultura e de indústria, é embora, mais do que todos, o país da desolação e da angústia." Referiu-se ao culto dos mortos, descreveu as aldeias, os mercados, as casas e a paisagem em tons sinistros: "Agora a natureza: o quadro alterna, ora em gelos, ora em longas nebulosidades, pasmadas ora em irradiações de um sol abrasador, tórrido, que nem as lufadas exterminadoras dos tufões suavizam. E sempre um cenário de agonia, de costas sáfaras, de largos rios lodosos, de charcos pestilentos, de arvoredo esguio açoitado das ventanias, a que vem juntar-se, sem conseguir dar realce, a verde aguarela dos arrozais, dos intermináveis arrozais."14

Armando Martins Janeira aduziu vários pormenores sobre as relações de Morais com Atchan, baseado na correspondência do escritor com Francisco do Rosário, seu antigo subordinado na Capitania do Porto de Macau e numa outra volumosa correspondência inédita com o seu amigo contra-almirante João Moreira de Sá. Janeira pensa que "Venceslau até aos seus últimos dias manteve um sentimento de amizade terna por Atchan, como revela a sua correspondência íntima, inédita, com Moreira de Sá.",15

Em Macau, Morais convivia diariamente com Camilo Pessanha. Nota Maria José de Lancastre: "Quando Camilo Pessanha chega pela primeira vez a Macau, em 1894, encontra Venceslau de Morais já professor do recém-fundado liceu daquela cidade. Entre eles criam-se laços de fraternidade e amizade intelectual que perdurarão no tempo, mesmo depois de Venceslau deixar a China pelo Japão em 1899. Pessanha alude amiúde nas suas cartas à correspondência trocada com Morais, que infelizmente se perdeu. De Venceslau para Pessanha ficou-nos apenas a citação dumas linhas numa carta do Poeta ao primo, José Benedito, enviada de Lamego, quando da primeira estadia de Pessanha na metrópole:"Recebi carta do Venceslau: 'Por outro lado, a alma foge-me, sinto-me velho, triste, irremediavelmente condenado; experimento como que uma fatalidade de judeu pesando sobre mim, uma incompatibilidade com todos os países, um frio de morte. Viesse ela, a morte, e seria o lógico e grande remédio para o estado do meu espírito." A poesia "Viola Chinesa", datada "Macau, Julho de 1898", é dedicada a Venceslau de Morais, assim como as "Elegias Chinesas" III e IV, publicadas no semanário "O Progresso de Macau", em Setembro de 1914. Há alusões a Morais na correspondência de Pessanha, além da indicada.16

Na Biblioteca da Ásia da Universidade de Estudos Estrangeiros de Quioto encontram-se três cartas inéditas de Morais, com alusões a Macaue a figuras da vida da cidade. Alude depreciativamente aos professores do liceu de Macau. Menciona Pessanha: "Diz-me que o Pessanha está admirado do meu silêncio; deve a estas horas estar de posse de uma carta minha, que o deve contentar."17 Noutra carta aduz:"Sim, pelo que me conta, o nosso Pessanha foi vilmente intrujado, impondo-se-lhe que pedisse a demissão do Liceu. Tenho muita pena; mesmo porque creio que, persistindo ele em viver em Macau, o melhor lugar que poderia exercer era o de professor. Mando-lhe um abraço."18

Nas cartas, Morais refere-se ainda a outras figuras de Macau. Um dos visados é o governador Eduardo Galhardo (1845-1908), que se distinguira no combate de Coolela contra Gungunhana (1895). Depois de sair de Macau foi governador do Estado da Índia. Morais não parece ter sido seu admirador. Há ainda alusões a Barjona de Freitas, a Hintze Ribeiro (depreciativas) e a Fialho de Almeida (laudatórias). Mencionam-se ainda Horta e Borja, figuras da vida de Macau do tempo. Em 1900 Morais ouvira rumores de Hong Kong sobre a possível nomeação de um deles para governador de Macau.

Há ainda uma alusão à Revolta dos Boxers: "Com que então a nobre colónia anda atrapalhada com os boxers! Pela minha parte, lamento se não se oferecer o ensejo de dar a toda essa gente o devido prémio das suas virtudes."19 A revolta (1899-1900) fora consequência de uma reacção nacionalista conservadora, após a derrota da Guerra Sino-Japonesa. Portugal enviou então uma canhoneira estacionada em Macau, para protecção dos súbditos portugueses. A Revolta dos Boxers preparou o ambiente para a proclamação da república na China.20

Num livro póstumo, Cartas Íntimas, encontra-se um feixe de cartas datadas de Macau, de 1888 a 1896, dirigidas à irmã mais velha de Morais, Emília. As cartas revelam extrema dedicação à família que deixara em Lisboa.21

De 1900 a 1914 Morais dirigiu um total de 16 cartas e 3 bilhetes postais ao seu amigo e condiscípulo da Escola Naval, José Godinho de Campos. Imediato do "Adamastor" no início desta correspondência (que se encaminha primeiro por via marítima e depois pelo Transiberiano), Campos receberia os últimos bilhetes postais já como contra-almirante.22 Numa carta de 1905, datada de Cobe, Morais refere-se a Macau: "Vão-me aparecendo ganas de largar este poiso. Mas, largando-o, é a reforma e a modorra, não provavelmente no Reino, mas talvez em Macau, onde os fados me chamam. Ora, custa-me a decidir-me por este sepulcro antecipado; bem mais valeria que o diabo me levasse daqui; mas vaso ruim não quebra, e posto que fraco, não morro... Se me reformar... Para Macau é que conto ir viver. Em que havia de dar o 'Loti português'!..."23

Nota-se uma certa amargura nas referências de Morais a Macau e ao funcionalismo português. Comenta Janeira: "Os primeiros anos da sua carreira de marinheiro foram de rápidas promoções. Aos trinta e sete anos entrava em Lisboa a comandar um vaso de guerra. Mas a ida para Macau parou-lhe a carreira; a preterição por um oficial mais novo para o cargo de capitão do porto desiludiu-o e levou-o a dá-la por finda e a decidir-se por um interino posto consular, provavelmente com a intenção de se dedicar definitivamente à literatura. Não é de surpreender que os dissabores e os êxitos tão ambicionados que se recusavam, impregnassem de amargor o seu exílio."24

Numa outra obra póstuma, Osoroshi, há referências a Macau. O volume é constituído por cartas dirigidas de Cobe e Tocoxima ao oficial de artilharia Alfredo Dias Branco, de 1905 a 1929. De 1905 a 1907 Branco comandou o Grupo de Artilharia de Guarnição em Macau. Numa carta Morais mencionou a China: "A China e os chineses estão bem longe de valerem o Japão e os japoneses; mas olhe que a China e os chineses também merecem interesse e simpatia. Recomendo-lhe os passeios fáceis à Ribeira Grande, Onze Mesas, Águas Quentes, Casa Branca, etc., e sobretudo a Cantão, que nos deixa uma impressão enorme... A arte chinesa também é interessante, exemplo a pintura, a louça, o trabalho em marfim. A literatura e a lenda chinesa encerram tesouros de graça; o que é dificílimo é entrar com eles." Depois de lamentar o imperialismo ocidental que a seu ver oprimia a China, Morais continuou a referir-se àquele pais: "Estimo que visse Chin-San, onde eu passei muitas vezes sozinho em tancá e voltando a pé. Insista em ir ver as Águas-Quentes, que são bem curiosas; todo o rio é interessantíssimo; há uma aldeia a meio caminho, cujo nome já me esqueci, que é bem interessante e digna de visita. As Onze Mesas, Ribeira Grande, Passaleão, etc., e um caminho à borda da água depois das Portas do Cerco devem ser vistas. E quando tenha visitado todos estes pontos, e Lapa, e o hospital dos Leprosos e tudo, e tirando da observação directa as deduções merecidas, vá a Cantão, não deixe de ver Cantão, ruas de comércio, tancás-flores, rio, Foshan, Pagode dos 5 Andares, prisões, Henan, seus templos, etc., etc., etc., porque Cantão é simplesmente uma das grandes maravilhas do mundo."25 Noutra carta, escrita em 1907, Morais acentua: "Macau mesmo nos enternece e nos cativa."26 Apesar do peso dos anos e do anseio da morte, no soçobrar da sua vida, Morais apreciava então a China mais do que na sua juventude.

Uma pequena narrativa, "Os Padresinhos," incluída em Páginas Africanas, outra obra póstuma, recorda um encontro com crianças destinadas ao seminário de Macau.27

A China é analisada em A Vida Japonesa. A obra de Morais, tal como a do seu admirador Fialho de Almeida, é fragmentária, contraditória e repetitiva, como seria de esperar de crónicas destinadas a um jornal, "O Comércio do Porto".

Neste livro Morais dedicou alguns comentários à vida económica de Macau.

Referiu-se à ameaça da concorrência ao monopólio do ópio, ao da lotaria, do vai-seng e do fantã. Concluiu: "Em todo o caso, Macau, que é uma espécie de Mónaco extremo oriental, tem de arrojar-se a mais sisudas empresas, se não quiser ver-se sufocado pela onda de tantas energias vizinhas."28

Morais interessava-se também pela introdução dos vinhos portugueses na China. Regozijava-se com a companhia de oficiais do exército vindos de Macau. Um deles era filho de Cristovão Aires, autor de artigos importantes sobre o predecessor de Morais no Extremo Oriente, Fernão Mendes Pinto.

Morais voltou a mencionar o "remoto padrão dos nossos feitos neste mesmo Extremo Oriente — Macau, o morro calvo que avança da costa chinesa, banhado quase todo pelas águas lodosas do estuário de Cantão." E recordou a morte de Ferreira do Amaral em 1849 e a proeza do tenente Vicente Nicolàu Mesquita. Concluiu: "Este grande feito de armas esta comemorado no arco triunfal das Portas do Cerco, onde se lê: "Honrai a Pátria, que a Pátria vos contempla."29 Mas outras páginas demonstram que Morais estava atento ao despertar do nacionalismo chinês que, na sua opinião, acabaria por varrer a influência estrangeira do Celeste Império. De resto, Morais era um devotado leitor de Oliveira Martins. Descreve com tons lúgubres a expansão política, religiosa e económica do Ocidente na Ásia.

Em Cartas do Japão encontram-se outras alusões a Macau. Morais compreendera que a hegemonia ocidental na Ásia iria defrontar-se com o crescente potencial militar do Japão. Este tinha uma missão messiânica: libertar a Ásia, liquidando o domínio ocidental. Mas o Japão deveria eliminar os adversários de forma gradual: "Seria suicídio para os japoneses pretender desalojar simultaneamente todos os ocidentais da Indonésia, de Hong Kong, de Macau, de Kiauchau (alemães), das Filipinas e de Java."30 Previa que o Japão acabaria por ter de enfrentar o seu principal rival do Pacífico: os Estados Unidos.

Em 1908 Morais estava optimista quanto ao futuro da China: "O que será a China dentro de 20 anos, dentro de cinquenta anos, ninguém pode prever; mas já promete oferecer à história as páginas mais surpreendentes, mais maravilhosas, de transformação e de regeneração de que é capaz uma família humana."31 Em 1912, depois da República proclamada por Sun Yat Sen, reflectia: "Entra em cena uma outra China, inexperiente e hesitante por agora, mas sedenta de aprender, palpitante de emoções modernas, embriagada em ideais tremendos... O inteiro mundo ocidental terá um dia de medir-se com esta China, ou falando com mais propriedade, com a nova Ásia que se forma."32 E louvava o nacionalismo triunfante que faria ressurgir as tradições gloriosas da vastíssima civilização da China.

Em Paisagens da China e do Japão encontram-se narrativas sobre a natureza e as lendas da China. Em "As Borboletas", Morais celebrou a beleza daqueles insectos: "Mas na China são talvez mais lindas do que todas. É um deslumbramento surpreendê-las na quietação dos bosques, voejando aos pares, que se tocam, que se abraçam, e enfiando pelas sombras misteriosas dos bambuais, com as suas longas asas palpitantes, lanceoladas, em matizes maravilhosos, de negros aveludados, de azuis meigos, de amarelos quentes, como se as loucas vestissem cabaias de Cetim, de sedas de alto preço..."33 E Morais contou a história da deliciosa Choc-In-Toi [Zhu Ying Tai], duma aldeia do Ianseguião e do seu companheiro Leun-San-Pac [Liang Shan Bo], uma lenda trágica de amor. Descreveu o cortejo de noivado da infeliz com outro homem imposto pela família. "O estilo de há mil anos é o mesmo estilo de hoje. São os grandes balões, os estandartes, conduzidos por moços vestidos de vermelho. São os enxovais primorosos, as cabaias, a colecção dos sapatinhos, tudo disposto nas liteiras luzentes dos esmaltes. São as colossais peças de doçaria, castelos de açúcar, dragões de açúcar, coisas espantosas. São os porcos assados, loiros, deliciosos, espalmados sobre os tabuleiros, com laços de fita nos focinhos. São as orquestras estridentes, de flautas, de rebecas. São as crianças ataviadas em cetins, em alegorias de cenas de outros tempos, cavalgando alimárias pachorrentas. É finalmente a liteira da noiva, toda ela oiros, toda ela esmaltes, fechada como um cofre, furtado à vista dos curiosos o precioso fardo, Choc-In-Toi. Mas ela é tragada pela terra:"O pedaço de seda, de mil matizes, transforma-se de súbito numa borboleta de mil cores, que voa das mãos rubes, e desaparece no azul, desaparece!... É desde aquela época que há borboletas neste mundo, tão lindas, tão cheias de matizes!..."34 Esta bela narrativa foi dedicada a Moreira de Sá.

É bem mais lúgubre "O Ano Novo", dedicado a Feliciano do Rosário, uma crónica sobre Macau, passada "no seio desta colónia nostálgica".

Era o ano lunar, relativo à entrada no ano XXII do reinado de Guangxu. Morais evoca "o pálido reflexo da civilização do Ocidente que logrou chegar a este Macau, a este exíguo penedo asiático, onde Portugal implantou a sua bandeira". Macau estava em festa: ouvia-se o ruído dos foguetes, dos milhares de embarcações, os clamores. Estava frio, caiam dilúvios. Morais sentia "o frio da alma", a "apatia enervante" do seu espírito, mantinha um "sorriso amargo" perante o júbilo da multidão. Não se integrou na festa. Descreveu as ruas lamacentas, as cabaias negras ensopadas pela chuva, "os lumes tremeluzentes das lanternas de papel". Sublinhou a paixão chinesa pelos jogos. Descreveu a vida de miséria e de opressão e as calamidades da China do seu tempo. No Sul grassava a peste. A China enfrentava as consequências da derrota perante o Japão. Morais relatou em tons negros a amargura, a fatalidade da existência, os horrores da prostituição, as extorsões dos mandarins, a longa série de humilhações perante os estrangeiros. Lamentou as pragas que se abatiam sobre a China: doenças, como a cólera, a peste e a lepra, a promiscuidade, o excesso da população, a mortalidade calamitosa.35

A China dos imperadores da dinastia manchu — os Qing — estava bem longe dos esplendores da dinastia dos Ming, sob a qual o Império estendera a sua influência sobre a Coreia, a Mongólia, o Turquestão, a Birmânia, o Sião e o Vietnam, dominando a Ásia oriental. Sob os Ming tinham-se tornado famosos produtos como a porcelana e o cloisonné, símbolos do requinte das belas artes chinesas. Mas sob os Qing a China fora dilacerada por sucessões de rebeliões como a dos Taiping e a Revolta dos Boxers, por calamidades naturais, pelo declínio do nível de vida e pela mais abjecta humilhação perante as potências ocidentais e o Japão. Esse declínio acentuara-se sob a imperatriz Ci Xi. Mas Morais só via as calamidades. Não previa então a ressurreição da China.

Outra narrativa, "A Primeira Formiga" refere-se à era do imperador Da Song e à penitente Zhong Mao Yan.

"Pau-Man-Chen" menciona os aposentos inferiores da residência de Macau, em que o cozinheiro de Morais se dedicava às suas devoções: "Ali ardem lumes místicos; e frequentemente, pela noite, como agora, se queimam pivetes, círios rubros, resinas e papéis, de tudo emanando um fumo atroz, que invade em torvelinho a casa toda, que chega sem respeito ao sítio onde me encontro, e me sufoca. Paciência! Paciência é o único código de conduta para o aventureiro que escolheu para exílio um canto exótico, longe, muito longe do torrão onde nasceu, e no qual a civilização disparatada, a feição própria das gentes com quem lida, hão de fatalmente apresentar-se, dominantes."36 E Morais conta a seguir a história maravilhosa do deus Pau-Man-Chen, então venerado em todo o imenso império.

"Amores..." grava "uma impressão de Macau". É uma história sobre amores de leprosos, uma grotesquerie à maneira de Fialho de Almeida. Refere o destino dos leprosos na China de então: "Em paragens mais rústicas, matam-no à pedrada, se o encontram; em Macau, porém, a brandura dos costumes rejeita em regra esta medida, tenha embora o miserável de viver pelos esteiros, em barcos podres, ou sobre os lodos, escondido das gentes como um bicho peçonhento."37

Durante este período, no início do século XX, Morais manteve vivo o seu absorvente interesse pelo seu antecessor, Fernão Mendes Pinto, o grande apologista da civilização chinesa:"Voltando a Mendes Pinto, e referindo-me à parte da Peregrinação que diz respeito ao Japão, convenço-me de que qualquer que haja lido este delicioso livro, e tenha habitado por algum tempo este império, reconhecerá que o nosso viajante descreve com muita verdade o que viu do pais nipónico, embora muito naturalmente erre por vezes os nomes próprios e cometa outras faltas. Quanto aos costumes do povo, descreve-os com tão fina observação que nos parece estar lendo, salva a linguagem obsoleta, a tradução portuguesa de um capítulo de algum dos livros modernos que falam deste povo com mais autoridade."38Morais, em contraste com outros estudiosos, pensava que Mendes Pinto tinha estado na China: recordou as cidades movediças que entrevira numa viagem fluvial de Nanquim para Pequim.39

Em cartas escritas nos seus últimos anos Morais refere-se várias vezes a Macau. Numa carta afirma que nunca conhecera Canto e Castro, então Presidente da República: "Não, creio que nunca o vi. Quando eu cheguei a Macau, retirava ele, creio. Em compensação, vi muitas vezes em Macau uma rapariga mestiça (pai holandês), a quem chamavam a noiva do Canto e Castro."40 Noutra menciona um amigo comum: "Se me lembro do Magalhães e Silva! A última vez que tratei com ele foi em Macau. Chamavam-lhe, se não me engano, 'O Magnífico'."41

Num prefácio até há pouco inédito, Morais refere-se várias vezes a Macau. Na menção maís longa Morais louvou a cidade: "Convém notar que Macau, o formoso Macau, com a sua população chinesa de cerca de setenta mil indivíduos, aferrados aos seus costumes e à remota tradição, com as facilidades que oferece a excursões curiosíssimas, como são os seus arrabaldes, e mais longe Hong Kong e Cantão — formigueiros humanos —, Macau é incontestavelmente um poiso maravilhoso para um homem de talento, que estuda o que vê e escreve as suas impressões, patenteando assim a estranhos o estupendo caleidoscópio, que é a China."42 Assim pensava Morais em 1921.

Venceslau de Morais foi uma figura de um tipo frequente numa época marcada por audaciosas explorações africanas. Foi no seu tempo que António Maria Cardoso chegou ao Niassa, que Serpa Pinto, Capelo e Ivens cruzaram o interior do Continente Negro. Foi no seu tempo que Mouzinho de Albuquerque se estabeleceu em Moçambique. Mas foi também o período marcado pelo Ultimato de 1890, pelo fim da Monarquia e pela obra de Oliveira Martins, cuja doutrina influenciou profundamente Morais. A obra deste tem pontos de contacto com as inspiradas pela exploração africana do seu tempo.43 O principal biógrafo de Morais, Armando Martins Janeira, assinalou, sobre o opus morasiano: "Esta é sobretudo inspirada na observação do mundo estranho que faz vibrar as antenas da sua curiosidade sempre aberta, no gosto apaixonado do desconhecido em que continua a ânsia inexaurível de encontrar — dos Portugueses das Descobertas. Também deixam capítulos admiráveis na sua obra suas experiências amorosas. Aqui aparecem já os dois traços essenciais do perfil psicológico de Venceslau — o seu gosto da aventura e o seu permanente encantamento na mulher. Apesar das cores escuras com que alguns biógrafos portugueses o pintam, Morais era no fundo o mais agradável de todos os tipos humanos — o amoroso e aventureiro."44

Noutra passagem, Armando Janeira apresenta uma perspectiva final sobre as relações entre o escritor e a China: "Morais nunca sentiu sério interesse pela China. As breves descrições que nos dá da China mostram uma injusta incompreensão desse grande país e da sua extraordinária cultura. Os seus amores chineses deixam uma impressão superficial na sua obra."45

Com efeito, o culto morasiano do exotismo estava restrito ao Império do Sol Nascente. Ali viu sobretudo o quadro impressionista, os "fundos de paisagem salpicados de brancos e vermelhos", a "quermesse hilariante do povo em festa".46 Em Macau e na China, Morais viu sobretudo, em tonalidades de água-forte, os aspectos sombrios de uma civilização milenária em aparente agonia.

Um Juízo Final...

"As melhores páginas de Morais são aquelas em que fala da mulher e da paisagem. Quando se põe a digressar sobre a religião, a arte, o amor e a morte, o seu pensamento é banal. A sua cultura é pouca e a sua filosofia não é nenhuma. A sua dialéctica, e até a sua prosa, sobre questões abstractas, não vão além das dum jornalista dum semanário de província. Mas quando nos fala da mulher e dos seus encantos, do povo e da sua vida e dos seus hábitos pitorescos, da cor, da luz, do céu, da terra e do mar japonês, então é o verdadeiro artista, entusiasmado e engrandecido pelo amor do que vê e do que sente. Não surpreende que, com algumas grandes páginas e trechos admiráveis, ao lado de páginas de reportagem banal em descuidade prosa, Venceslau tivesse o sucesso de que ainda goza. É verdade que aproveitou da voga e da novidade do assunto no tempo em que escreveu e da curiosidade portuguesa por tudo que é novo, longínquo e exótico. Mas a riqueza do homem e a força criadora do escritor estão no seu grande coração, que aquece e dá vida ao assunto que o entusiasma, no seu amor da gente e naquela fraqueza e ardor com que se dá rendido aos encantos da mulher japonesa. O seu espírito não é genial, mas o seu gosto é refinado e cintilante.47 ... e um Epitáfio para Venceslau de Morais

Em 1895, Vicente Almeida de Eça descreveu o seu amigo e camarada da Marinha, que considerava "um coração de ouro e umicavalheiro da mais primorosa distinção": "É um triste, magro, loiro, de olhos azuis e cismadores, retraído na mais concentrada modéstia.48

Na sua demanda do exotismo, Morais buscava os recantos mais libertos da influência ocidental: "Também eu, de Macau, o que mais estimo é o Bazar; e aqui, no Japão, o que mais amo são os recantos ainda virgens da influência da civilização europeia. Creio que as nossas preferências têm defesa. A nossa civilização achata-se cada vez mais na vulgaridade, no egoísmo, na sensaboria. Percebo que os argentários, os industriais e ainda os politiqueiros a amem, para interesse da bolsa própria. Mas quem não é nada disso e tem de viver pelo sentimento, há-de forçosamente afeiçoar-se às civilizações primitivas, ainda com um fundo de ingenuidade, de bondade e de pitoresco, que a nossa já não tem."49 Escrevia assim em Cobe, em 1908, ainda esperançado. Mas em 1913 Morais mostrava-se desiludido perante a ocidentalização da Ásia. Amargurava-o, de forma excruciante, o caso do Japão: "Sim senhor, o Japão vai-se civilizando, como deu provas pelos últimos tumultos populares. Faz realmente pena ver como este belo país e esta bela nação rejeitam a sua velhíssima civilização, cheia de encantos, para adaptarem em tudo a civilização ocidental!..."50 Assim clamava, ecoando Lafcadio Hearn e outros.

Na época das suas últimas declarações sobre Macau, na década de 20, Morais estava longe de ser o homem louro e elegante do período macaense. Era já o alquebrado Osoroshi que vagueava solitário pelos cemitérios e praças de Tocoxima, a sonolenta metrópole de Xicoco. E uma solidão exulcerante e uma tristeza pungentíssima atormentavam o êxul, leitor de Goncourt e Loti, que julgara possível refugiar-se da banalidade apenas entrevista do Ocidente na ilusão de um Extremo Oriente cuja superfície brilhante ocultava uma evanescente miragem.

Numa página manuscrita, datada de 12 de Maio de 1904, conjugam-se a presença da China, a obsessão do Japão e o apelo portuguesíssimo da Saudade. A página está ilustrada com temas japoneses: silhuetas opacas de gueixas fazem vibrar shamissen na orla do texto. Mas o documento está datado de Macau. Nostálgica e melancólica, ressoa na quadra de Morais a plagência da poesia popular portuguesa:

    "A dor, minha constante companheira, 
    Votei íntimos laços de amizade. 
    Se hoje encetasse a 'strada das venturas, 
    Crede, talvez morresse de Saudade..."51

A "religião da Saudade": dois poemas consagrados a Venceslau de Morais

Musumé

    Graça da Musumé
    que a Venceslau de Morais enfeitiça, 
    agora vejo muito bem como é... 
    ave do Paraíso que se arriça. 
    Ave do Paraíso, ou borboleta
    d'um ceú de fantasia! 
    Como ela entreabre a pupilita preta, 
    diabinho de Quimera e de Ironia! 
    
    E azuis, de nácar, cor d'opala ou rosa, 
    de folhas mortas ou de flor de vida, 
    os seus kimonos fazem-na radiosa, 
    asa de sonho sobre a larva erguida. 
    
    Asa de sonho, mas também de presa. 
    Gosta de mel ou sangue a Musumé, 
    Como a das asas vejo agora que é, 
    graça que a alma de Morais tem presa. 

(Estreito de Bancá,

Arquipélago de Sunda,

Janeiro de 1908.

CASTRO, Alberto Osório de,

Flores de Coral, Dili, 1908, p. 22.)

A Wenceslau de Morais O que não quis voltar

    Não voltaste. Para quê, se a pátria mais amada
    é, sempre, a que se vê, de longe, com saudade? 
    Português, a aventura elegeu-te a morada; 
    marinheiro, no mar procuraste a verdade. 
    
    Ficaste lá no Oriente. Exóticas paragens
    suprema sedução tiveram para ti. 
    Artista e homem do mar, como Pierre Loti, 
    aprendeste a viver entre o esplendor das
    viagens... 
    
    Sonhador, o teu sonho alimentou-se, ao longe, 
    em montanhas de anil e cerejais em flor... 
    Poeta da solidão, contemplativo monge, 
    hauriste do exotismo o embriagante licor... 
    
    Lá morreste, sozinho, entre a paisagem linda
    desse império do Sol nascente cujo encanto
    infiltrou na tua alma a essência do quebranto, 
    feitiço da paixão que só na morte finda... 
    
    O-Yoné... Ko-Haru... Dias de Tocoxima... 
    Coração português sempre a bater de amor... 
    Também tu respondeste aos apelos do clima
    que ao sangue e aos nervos dá mais lassidão e
    ardor... 
    
    Não voltaste. Para quê, se a terra do Japão
    te pôde alimentar melhor a fantasia; 
    se a tua alma oriental viveu como queria; 
    se o verdadeiro amor te encheu o coração? 

(ROCHA, Hugo, Poemas Exóticos, 1940, p. 185.)

CRONOLOGIA

1854 — Venceslau José de Sousa Morais nasceu emLisboa, em 30 de Maio, na Travessa da Cruzdo Torel, 4, 2° andar.

1871 — Assentou praça em Caçadores 5, que depois abandonou para entrar na Marinha.

1875 — Aos 21 anos, concluído o curso da Escola Naval, foi promovido a guarda-marinha, indo servirem África.

1880 — Promovido a segundo-tenente.

1885 — Vai fazer a sua terceira estação a Moçambique e dali vai a Timor, de onde regressa no ano seguinte.

1886 — Aos 32 anos, promovido a capitão-tenente.

1888 — Aos 34 anos vai para Macau, onde começa a escrever os Traços do Extremo Oriente, publicado inicialmente em artigos avulsos no jornal "O Correio da Manhã", sob o pseudónimo de A. da Silva.

1889 — Passa a viver com Atchan, uma rapariga anglo-chinesa. Visita pela primeira vez o Japão dos seus sonhos.

1891 — Aos 37 anos, promovido a capitão-tenente supranumerário e nomeado imediato do capitão do Porto de Macau. É a sua última visita a Portugal. Em Macau conhece o poeta simbolista Camilo Pessanha, autor de Clepsidra.

1892 — É baptizado seu filho João, em 1 de Setembro, na igreja de São Lourenço, em Macau. A mãe é a chinesa Atchan, com a qual Morais vive.

1893 — Promovido a capitão-de-fragata supranumerário. Novamente visita o Japão.

1895 — Publica o seu primeiro livro, Traços do Extremo Oriente, em Lisboa.

1897 — Publica Dai-Nippon. Bela edição, patrocinada pela Sociedade de Geografia.

1898 — Aos 44 anos, vai viver para o Japão, em Cobe.

1899 — É nomeado cônsul em logo (Cobe) e Ósaca.

1900 — Casa, à maneira japonesa, com O-Yoné Fukumoto.

1902 — Começa a escrever as Cartas do Japão para "O Comércio do Porto", que serão publicadas até1913.

1905 — O Culto do Chá é publicado em Cobe. É baptizado o filho José, em 2 de Setembro, na igreja de São Lourenço, em Macau.

1906 — Paisagens da China e do Japão.

1912—Morre O-Yoné.

1913 — Morais demite-se das funções de cônsul de Portugal em Cobe e de oficial de Marinha. Aos 59 anos, Morais vai para Tocoxima, terra natal de O-Yoné, onde passa a viver na companhia de Ko-Haru, sobrinha de O-Yoné.

1916 — Aos 62 anos, assiste à morte de Ko-Haru. Visita todos os dias os túmulos de O-Yoné e Ko-Haru. Publica O Bon-Odori em Tokushima.

1917 — Sai Ko-Haru em separata de "O Comércio do Porto".

1923 — O-Yoné e Ko-Haru.

1924 — Relance da História do Japão.

1925 — Relance da Alma Japonesa.

1926 — Serões no Japão.

1929 — Numa noite de forte temporal, Morais morre sozinho na sua casa de Igachô, em Tocoxima. Tinha 75 anos. "Viveu no Japão 33 anos, sem ter voltado uma só vez a Portugal."52

OBRAS PÓSTUMAS

1933— Osoroshi.

1944— Cartas Íntimas.

1954 — Páginas Africanas.

1961 — Cartas a Polycarpo de Azevedo.

Publicado originalmente em: 京都外國語大學 COSMICA XVI 印刷 昭和62年3月.

NOTAS

1. ESPARTEIRO, António Marques, Venceslau de Morais Oficial de Marinha, "Ocidente", Lisboa, 77 (375) 1969, p. 15.

2. Idem, p. 16.

3. Idem, p. 19.

4. Idem, p. 21.

5. Idem, p. 22.

6. Idem, ibidem.

7. Idem, p. 23. O comandante Esparteiro apoiou-se em Documentos do Arquivo Geral da Marinha. Inclui dois relatórios do 1ō tenente Morais: o "Relatório da Viagem de Macau a Banguecoque da Canhoneira 'Tejo'" (1890) e o "Relatório da Viagem de Macau a Lisboa da Canhoneira 'Tejo'" ( 1891 ).

8. MORAIS, Venceslau de, A Outra Mamã, in "Lembranças da China", Traços do Extremo Oriente, 2aaed., Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1971, p. 54. A primeira edição era de 1895.

9. PEREIRA, Ângelo; CÉSAR, Oldemiro, Os Amores de Wenceslau de Morais, Lisboa, Editorial Labor, 1937, pp.59-64.

BARREIROS, Leopoldo Danilo, A "Paixão Chinesa" de Wenceslau de Moraes, Lisboa, Agência do Ultramar, 1955.

LABORINHO, Álvaro Brilhante, "O perfil de Atchan", in Wenceslau de Moraes no seu Primeiro Centenário, Lisboa, Sociedade de Geografia, 1955. O autor foi cônsul-geral de Portugal em Hong Kong e depois ministro plenipotenciário de 2a classe, em' serviço na Legação de Nova Delhi. O autor falou com Atchan em 1935 e notou-lhe "um vago sentimento de saudade" de Morais. Em Hertfordshire faleceu em 1982 um neto de Morais: o Rev. Basil Tyson Morais. Planeava visitar o túmulo do avô quando a morte o surpreendeu. Segundo documentos do "International Committee of Kansai"

10. MOTTA, Alfredo, Três Cartas de Wenceslau de Moraes. Separata de "Ethnos", 5, 1966, pp. 116-7, revista do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia de Lisboa. A carta era dirigida ao Dr. Sebastião Peres Rodrigues, médico da Armada. Morais conheceu-o a bordo da canhoneira "Douro". Nesse momento Rodrigues estava embarcado no "África". A carta encontra-se na colecção de Manuscritos da Biblioteca Central da Marinha.

11. MORAIS, Venceslau de, A Gruta de Camões, pp. 62-6. AZEVEDO, Rafael Ávila de, A Influência da Cultura Portuguesa em Macau, Lisboa, 1984, pp. 89-91, 113-4.

12. MORAIS, Venceslau de, Um Eclipse Total da Lua, p.128.

13. MORAIS, Venceslau de, A Minha Casa, p. 90.

14. MORAIS, Venceslau de, Dai Nippon: O Grande Japão, 3a ed., Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1972, pp. 64-6. Primeira edição: Lisboa, Sociedade de Geografia, 1897.

15. JANEIRA, Armando Martins, Perfil de Venceslau de Moraes, in "Introdução", Wenceslau de Moraes, selecção de textos e introdução de Armando Martins Janeira, Lisboa, Portugália Editora, 1971 (Antologias Universais, 42).

16. LANCASTRE, Maria José de, "Notas", in PESSANHA, Camilo, Cartas a Alberto Osório de Castro, João Baptista de Castro, Ana de Castro Osório, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p.113.

No filme A Ilha dos Amores de Paulo Rocha (1982) há cenas relativas à amizade entre Camilo Pessanha e Venceslau de Morais. Luís Miguel Cintra desempenhou o papel de Morais. Rocha personificou Pessanha.

17. Carta de Cobe, de 2 de Março de 1900, dirigida a João Pereira Vasco, professor do Liceu de Macau. A carta, tal como as seguintes, está escrita em papel timbrado do Consulado de Portugal em Cobe e Ósaca. DIAS, Jorge, The Presence of Wenceslau de Moraes: Notes on Three Unpublished Letters, "Gaidai Bibliotheca", (47) 3 Dez. 1979, p. 11.

18. Idem, p. 13. Carta de Cobe, de 13 de Julho de 1900.

19. Idem, ibidem. As três cartas são todas dirigidas a Vasco. Morais colaborou nas seguintes publicações: "O Lusitano", Macau, 1896. E em "Portugal-Macau", Jornal Único. Celebração do 4° Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, 1898.

20. Júlio Gonçalves, "Boxers, Revolta dos", SERRÃO, Joel, dir., Dicionário de História de Portugal, Lisboa, 1971, v. l, pp. 363-4.

21. MORAIS, Venceslau de, Cartas Íntimas de Wenceslau de Moraes, prefácio e anotações de Ângelo Pereira e Oldemiro César, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1944, pp. 27-48. Numa carta de Macau, de 23 de Novembro de 1888, refere-se ao clima da cidade: "Vou vivendo como sempre, sem novidade. Agora com frio, porque chegou o inverno a Macau; inverno mais rigoroso que o de Lisboa, muito mais húmido, muito mais triste, e que se sente muito mais, por se suceder a um verão de escaldar. No entanto, há dias, poucos, lindos." Referiu-se ao Natal: "Estamos chegados ao Natal; e faço votos para que as minhas irmãs o passem o melhor possível. Peru como o do ano passado, comprado por mim, não o apanham; mas fica a lembrança para outra vez", p. 28.

22. ROCHA, Andrée, Carta de Venceslau de Morais, "Cadernos de Literatura", (2) 1979, p. 75. Esta revista é editada pelo Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra.

23. Carta de Cobe, de 31 de Janeiro de 1905. DIAS, Jorge, Uma Carta de Venceslau de Morais Inédita no Japão, "Gaidai Bibliotheca", (54) l Abr. 1981, p. 36. A carta foi traduzida para japonês por Hiroshi Hino, pp. 36-8.

24. JANEIRA, Armando Martins, op. cit., p. LIII.

25. MORAIS, Venceslau de, Osoroshi, Lisboa, Ventura Abrantes, 1933, prefácio e notas de Álvaro Neves. Carta de Cobe, de 3 de Fevereiro de 1906, pp. 42-3.

26. Idem, p. 67. Carta de Cobe, de 27 de Fevereiro de 1907.

27. MORAIS, Venceslau de, Páginas Africanas, Lisboa, Editorial Cultura, 1954.

28. MORAIS, Venceslau de, A Vida Japonesa: Terceira Série de Cartas do Japão (1905-1906), 27a ed., Porto, Lello e Irmão, 1985. la edição: 1907.

29. Idem, p. 172.

30. MORAIS, Venceslau de, Cartas do Japão: QuartaSérie de Cartas, Portugal-Brasil, 1928, vol. l, pp.92-3.

31. Idem, p. 241.

32. Idem, p. 128.

33. MORAIS, Venceslau de, Paisagens da China e do Japão, Lisboa, Tipografia de Francisco Luís Gonçalves, 1906, pp. 1-2.

34. Idem, pp. 2-8.

35. Idem, pp. 20... ss, 98-106.

36. Idem, pp. 20-29.

37. Idem, pp. 164-70.

38. Carta de Venceslau de Morais, datada de Cobe, de 29 de Novembro de 1904, dirigida a Cristovão Aires. Cf. AIRES, Cristovão, Fernão Mendes Pinto e o Japão: Pontos Controversos: Discussão: Informações Novas, Lisboa, Tipografia da Academia, 1906, pp. 30-2. Com a reprodução de quatro cartas geográficas portuguesas, até hoje inéditas, e de uma carta representando o Japão no século XVI. Morais tinha na sua biblioteca um livro precioso: PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação, 4a ed., Lisboa, Oficina Ferreiriana, 1725. Lera o seu exemplar "muitas vezes".

39. MORAIS, Venceslau de, Fernão Mendes Pinto no Japão, Lisboa, 1942, pp. 4-36. Separata de "O Comércio do Porto", 1920. Fac-símile do manuscrito original. Exemplar n° 40 de uma tiragem de 300 exemplares em papel vergé numerados e rubricados. É dedicado aos admiradores de Morais. Este exemplar pertenceu a Ângelo Pereira.

40. MORAIS, Venceslau de, Cartas ao seu Amigo Polycarpo de Azevedo: Escritas em Tokushima entre 1914 e 1927, Lisboa, Arnaldo Henriques de Oliveira, Livreiro Antiquário, 1961, p. 31. Carta de 15 de Abril de 1919. Canto e Castro (1862-1934), almirante, governador ultramarino e político. Presidente da República (1918-1919).

41. Idem, p. 79. Noutra passagem nota a morte do Dr. José de Azevedo Castelo Branco, que fora ministro de Portugal em Pequim, p. 89.

42. DIAS, Jorge, O Núcleo de Venceslau de Morais da Biblioteca Nacional de Lisboa, "Anais: Órgão da Associação Japonesa de Estudos Luso-Brasileiros", Tóquio, (18) 1984, p. 37.

43. Algumas dessas obras:

PINTO, Serpa, Como Eu Atravessei a África, Lisboa, 1880;

CAPELO; IVENS, De Angola à Contra-Costa, Lisboa, 1886;

CAPELO; IVENS, De Benguela às Terras de laca, Lisboa, 1888.

Numa passagem de uma carta de Tocoxima, de 25 de Dezembro de 1922, Morais, referindo-se a Gago Coutinho e a Sacadura, que tinham empreendido a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, menciona um daqueles exploradores, comparando a sua proeza com a daqueles aviadores: "Sim, um H. Capelo, ou um Anchieta, ou um F. Mendes Pinto do século XX." MORAIS, Venceslau de, Cartas ao seu Amigo Polycarpo de Azevedo, p. 81.

44. JANEIRA, Armando Martins, op. cit., p. XXXIV. Sobre o tipo amoroso de Morais: O autor deste esboço possui um exemplar de uma tradução do Werther de Goethe, Paris, 1864, datada por Morais: Moçambique, 10 de Abril de 1877. O livro está anotado por uma "Marie" com comentários tórridos em francês, datados de 1880. Suponho que se trate de uma Maria Isabel, mencionada em PEREIRA, Ângelo; CÉSAR, Oldemiro, op. cit., pp. 45-52. E numa carta de 1920 menciona uma Laura de Alenquer, que conhecera meio século antes. MORAIS, Venceslau de, Cartas ao seu Amigo Polycarpo de Azevedo, p. 53.

45. JANEIRA, Armando Martins, op. cit., p. XXX.

. MORAIS, Venceslau de, "A Primavera", in Paisagens da China e do Japão, p. 35.

47. JANEIRA, Armando Martins, "Lendo Wenceslau de Moraes numa Pequena Aldeia Japonesa", in Caminhos da Terra Florida, Porto, Manuel Barreira, 1955, pp. 77-8.

48. EÇA, Vicente Almeida de, "Prefácio", in MORAIS, Venceslau de, Traços do Extremo Oriente, p. 21.

49. MORAIS, Venceslau de, Osoroshi, p. 89.

50. Idem, p. 146.

51. MORAIS, Venceslau de, Cartas Íntimas deWenceslau de Moraes, p. 5.

52. JANEIRA, Armando Martins, "Cronologia," in Wenceslau de Moraes, pp. LXXVII-IX. Nota Final. Bibliografia Suplementar.

INSO, Jaime do, Visões da China, Lisboa, 1933. PARREIRA, Carlos, Wenceslau de Morais, "Cultura", Jul. 1929.

PARREIRA, Carlos, Wenceslau de Morais, "Jornal de Macau", 19 Set. 1929.

RAMOS, Jorge, Wenceslau de Morais e a Alma Chinesa, "Jornal de Macau", 8 Fev. 1930.

Referiram-se ainda a Morais os seguintes jornais de Macau:

"Clarim", 18 Abr. 1965. Idem, 25 Abr. 1965. "

Notícias de Macau", 19 Abr., 23 Ago. 1965.

Recentemente têm sido reeditadas algumas obras de Morais. Ei-las: Dai-Nippon, Porto, Civilização, 1983; A Vida Japonesa, Porto, Lello e Irmão Editores, 1985.

Kikuo Furuno apresentou uma versão japonesa de O Túmulo de Atsurnori: Atsumori Zuka, Quioto, K." F., 1986. A atitude de Morais perante o Oriente, durante a era da expansão do imperialismo ocidental, pode ser contrastada com a de outros ocidentais. SAID, Edward W., Orientalism, Penguin Books, 1985. Esse contraste é ainda mais nítido num livro anterior: STEADMAN, J. M., The Myth ofAsia, New York, 1969.

* Professor da Universidade de Quioto, Japão. Escritor e ensaísta com várias obras publicadas, nomeadamente sobre temas da presença portuguesa no Oriente, sobretudo no Japão.

desde a p. 123
até a p.