Crónica Macaense

MACAU E O ORIENTE NA VIDA DE LARA REIS

Orlando Cardoso*

Fernando de Lara Reis, 1936. Arquivo Histórico de Macau.

Nem sempre se sai por vontade própria do país onde se nasceu. Muitas e variadas são as razões duma decisão tão drástica que leva quantas vezes à perda de uma parte substancialmente importante de nós mesmos. Portugal, para o bem e para o mal, é desde há séculos um pais de emigrantes. A expansão ultramarina, natural seguimento das descobertas, tornou-nos um povo quantas vezes errante ansiando encontrar no mar a solução dos problemas sentidos em terra. Emigração social, emigração económica e emigração política entrecruzaram-se neste êxodo maciço de mais de 400 anos. E dentro de nós a dor de uma nacionalidade sentidamente madrasta.

A Índia foi o primeiro sinal. No grande sub-continente asiático instalou-se uma importante colónia portuguesa ao cheiro da especiaria que deveria ter enriquecido a corte de D. Manuel I e a de D. João III. Por fim foi-se a Índia e, como escreveu Fernando Pessoa, faltou "cumprir-se Portugal".

Depois surgiram novos destinos nesta diáspora. A América estava ali tão perto, mesmo ao dobrar do oceano, no caminho das naus da Índia. E surgiu o Brasil que hoje conhecemos, um país rico e lindíssimo apesar da miséria colossal que o esmaga. Durante séculos os lusíadas aportaram nessas paragens construindo cidades, vilas e aldeias. Nem a própria escravatura, um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade, pôde ofuscar a construção empreendida de um território cuja economia assentava na predação depois da chegada de Pedro Alvares Cabral. Dessa saga brasileira ficaram reflexos na mestiçagem e em muitos outros campos. A Portugal chegaram as casas dos brasileiros do Minho e das Beiras que são, passado o tempo do desconforto na paisagem, a delícia do nosso turismo de habitação e têm lugar marcado nas páginas das nossas histórias de arte.

A África foi outro destino que permaneceu até aos nossos dias e que comprovou a justeza do provérbio popular "O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita". A descolonização forçada e anacrónica teve os frutos que amargamente os povos africanos de expressão portuguesa hoje sofrem na carne. Mas a descolonização só existiu porque houve uma colonização. São as duas faces da mesma moeda.

Concerto musical realizado na sede da Academia de Amadores de Música de Macau, em 24 de Novembro de 1935. Arquivo Histórico de Macau.
Festa comemorativa do Cinco de Outubro, realizada na residência do Governador, em 1934. Arquivo Histórico

Na segunda metade do nosso século assume particular relevo a emigração europeia, com a França e a Alemanha como principais portos de destino. Nos princípios dos anos setenta dizia-se que Paris era a terceira cidade portuguesa, com cerca de meio milhão de compatriotas nossos vivendo e labutando na região parisiense e contribuindo decisivamente para o equilíbrio financeiro do país. Caminhos europeus que estão em recessão no sector da emigração, apesar da integração ser um facto e os nossos passaportes hoje nos identificarem como cidadãos da Comunidade Europeia.

Mas houve sempre no nosso imaginário um destino envolto em mistério: o Extremo Oriente e uma estranha China cujas portas os europeus abriram à força há cerca de cem anos, esquecidos os ecos do veneziano Marco Polo, o mercador conselheiro de um rei chinês que tão belos retratos desse povo nos deixou no seu livro. Essa imagem é bem elucidativa da impressão sentida pelos primeiros portugueses que contactaram os chineses e que é admiravelmente expressa pelo historiador seiscentista João de Barros, que foi durante mais de trinta anos feitor da Casa da Índia, quando descreve detalhadamente na Década III:

"Esta região é a parte mais oriental que a Ásia tem. A maior parte da qual é lavada do Grande Oceano, à maneira que é a nossa Europa, oposta a ela, começando pela ilha de Cález. Porque como desta ilha ela vai torneada e cingida do mar ocidental, e depois que chega ao cabo de Finisterra corre ao norte até chegar às regiões e reino da Dinamarca, e de si faz a grande enseada a que chamam mar Bálteo, entre a Sarmácia e Norduégia, com o mais que se vai continuando com a Terra Lapónia e a outra, regelada, a nós incógnita — assim esta região a que chamamos China, começando da ilha de Ainão, que é a mais ocidental que ela tem, vizinha ao reino Cacho, por nós chamado Cochinchina, que é do seu estado, o mar a vai cingindo pela parte do sul, e corre nesta continuação pelo rumo a que os mareantes chamam de Lesnor, deste a um cabo, o mais oriental dela, onde está a cidade Nimpó, a que os nossos corruptamente chamam Liampó. E daqui volta contra o noroeste e norte e vai fazendo outra enseada mui penetrante, levando por cima de si outra costa oposta à de baixo, com que a terra de cima fica metida debaixo dos regelos do Norte, onde habitam os Tártaros, a que eles chamam Tatas, com quem têm contínua guerra."

Pela mesma época chega-nos o retrato de uma chinesa que vivia nos confins desse grande país através da escrita exuberante de Fernão Mendes Pinto, nas páginas da Peregrinação. Quando se encontrava cativo nessa aldeia, Mendes Pinto encontrou uma velha mulher que rezava o Padre Nosso em português, mas só metade porque mais não sabia. Soube então que se chamava Inês de Leiria, era filha de Tomé Pires e de uma nativa, e fazia parte de uma pequena comunidade cristã fundada pelo boticário. O nome da filha seria uma homenagem de Pires à cidade onde presumivelmente nascera.

Macau, o enclave chinês administrado pelos portugueses é outro dos nossos mitos e o último espaço do Império Português que fecha as portas num misto de inquietação e de esperança, depois de mais de 450 anos de permanência ocidental com altos e baixos. Distante da acção centralizadora de Goa, Macau trazia já nos finais do século XVI fabulosos lucros aos comerciantes que se arriscavam no comércio da Nau do Trato e aos residentes portugueses e chineses da velha aldeia de pescadores, como explicou Charles R. Boxer. E toda a sua história decorreu um pouco à revelia da do restante Império, antes confundindo-se com as oscilações muitas vezes dramáticas da história da Mãe China.

Vista aérea de Macau, 1949. Arquívo Históríco de Macau.
Reproduções de fotografias existentes no Arquivo Histórico de Leiria. Arquivo Histórico de Macau.

Em tempo de profundas mudanças estruturais do nosso país, como foram as últimas duas décadas, Portugal teve de encontrar adequados caminhos aos novos tempos que emergiam. Foi a época do fim do Império Colonial Português com a independência das colónias africanas que, apesar das vicissitudes dramáticas que atravessam, terão necessariamente de encontrar o seu caminho viradas para o futuro, para os novos século e milénio que dobraremos dentro de escassos quatro anos.

Desse tempo ficou como sobrevivência a dor profunda e dramática de Timor, sem saídas aparentes para além da crueza da ocupação indonésia e dos milhares de timorenses mortos nessa tenebrosa anexação.

Macau tornou-se um caso à parte. O seu estatuto próprio foi sempre diferente das colónias de ocupação e daí que a solução encontrada seja diferente. Apesar da incerteza quanto ao seu futuro o território tem caminhado cautelosamente através do diálogo constante entre os responsáveis portugueses e os chineses.

Este território foi acolhedor para os portugueses no passado. Certamente que de um modo substancialmente diferente o será no futuro. A ligação das duas culturas, desejamos, poderá ser um grande cimento da amizade entre as duas comunidades.

Desde há longos séculos Macau foi um dos locais de aportagem dos portugueses emigrados do continente europeu. Foi aqui que chegou há 76 anos um nosso conterrâneo da cidade de Leiria. Viveu e trabalhou durante trinta anos, com um breve intervalo no Liceu Afonso de Albuquerque, em Goa. Foi professor de Desenho, Trabalhos Manuais e de Ginástica no Liceu. A esta cidade hospitaleira, que se transformou numa das suas grandes paixões, entregou desinteressadamente o melhor da sua abnegação e do seu entusiasmo em prol do bem-estar das suas populações.

Mal calculava esse homem, o Capitão do Exército Português Fernando de Lara Reis, que aqui estava o seu futuro. Aqui escolheu viver, trabalhar e morrer. Mesmo na morte a sua opção foi por esta terra que o deslumbrou a partir do momento em que, às 8 horas da noite de 23 de Outubro de 1919, avistou pela primeira vez o Farol da Guia, um pouco antes de se instalar no New Macao Hotel e sorver de sentidos atentos os sons, os cheiros e as luzes desta porta de uma imensurável e fantástica Ásia que ele iria descrever até à exaustão, num notável conjunto de livros de viagens que jazem praticamente inexplorados em todas as suas potencialidades de investigação nas prateleiras do Arquivo Distrital de Leiria a qual nos cabe, na pessoa do seu Director Dr. Acácio Sousa e diligentes funcionárias, deixar público o nosso agradecimento pelas facilidades concedidas ao longo dos dez meses que já levamos na nossa investigação sobre o papel de Macau e do Oriente na obra de Lara Reis.

É sobre Macau e o Oriente na Vida de Lara Reis que iremos falar, agradecendo ao Instituto Cultural de Macau e ao Dr. Isaú Santos, dedicado e generoso orientador do nosso trabalho de investigação sobre aquele ilustre leiriense, a oportunidade que nos deram de levantar das poeiras da memória e dos arquivos a personagem fascinante que foi Lara Reis.

No dia 17 de Janeiro de 1950 o jornal "Notícias de Macau", pela pena de Hernani Anjos, escrevia:

"O professor austero e adorado; o turista tenaz e minucioso; o militar que combateu e consagrou a memória dos que a seu lado tombaram no campo da luta; o amigo sincero e firme; o companheiro amável e bem humorado; o cavaqueador que, por si só, era pessoa para sustentar, durante horas, a animação da conversa em qualquer meio social; o celibatário ferrenho que, apesar disso, não desdenhava toda e qualquer oportunidade de desferir os seus galanteios, sempre gentis e inconsequentes a qualquer palminho de cara que lhe desse no goto."

Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, Goa, [194-?]. Arquivo Histórico de Macau.

Mais à frente o mesmo artigo acrescentava:

"(...) Fernando de Lara Reis despediu-se esta madrugada de todos os seus inúmeros alunos, que tanto o respeitaram e adoraram; de todos os imensos pontos do Mundo até onde conseguiu levar, a par das múltiplas malas de viagem, a inesgotável mala da sua curiosidade (...).

Pôs-se ontem verdadeiramente o Sol no 'Sol Poente'."

Deste modo, como sentidamente escreveu o seu amigo Hernani Anjos, perdia Macau, a 14 de Janeiro de 1950, um dos seus filhos de adopção que muito lhe tinha dado desde que chegou na companhia de Telo Azevedo Gomes, o bacharel em Ciências da Natureza, conterrâneo de Leiria, que o desafiou, num encontro fortuito na baixa lisboeta, a dar novo rumo à vida e demandar as terras do Oriente.

Nesse dia Macau perdia um dos seus beneméritos, professor ilustre do seu Liceu e uma figura incontornável da sua história recente. Perdia um memorialista incansável que, em mais de trinta volumes encadernados em percalina, deixara uma extensa memória manuscrita da sua vida a que chamou Diário de Viagens, e que se prolongou desde 1915 até 1949, altura em que a aproximação da morte se fazia sentir.

Mas as suas memórias não se limitaram ao Diário de Viagens. Deixou também dois volumes que intitulou A Minha Vida e que contêm um importante conjunto de documentos sobre a vida social de Fernando de Lara Reis em Macau. Esta documentação, que inclui recortes da imprensa, artigos de jornais, convites para festas e recepções, fotografias e convites para casamentos, entre outros materiais, permite ao leitor tentar recriar o ambiente social e cultural de Macau, sem esquecer as importantes ligações então existentes com a colónia de portugueses vivendo em Hong Kong, nomeadamente com o Clube de Recreio de Kowloon.

O carnaval em Macau, 1934. Arquívo Histórico de Macau.

A obra inédita de Lara Reis torna-se, neste final de um período colonial que assumiu sempre características bem diferentes dos espaços coloniais africanos, uma memória extremamente viva de um tempo que se vai tornando cada vez mais uma saudade de quem o viveu e um testemunho extremamente vivo e participante de um dos seus mais activos personagens.

A história social e cultural de Macau, entre 1920 e 1950, tem no extenso espólio de Lara Reis um testemunho fulcral que se torna indispensável conhecer e divulgar. Este trabalho é um contributo nesse sentido.

Sarau de inauguração da Academia de Amadores de Teatro e Música, realizado no Teatro D. Pedro V, em 1 de Setembro de 1934. Arquivo Histórico de Macau.

O Homem e o Pedagogo

Fernando de Lara Reis nasceu em Leiria a 28 de Dezembro de 1892. Era oriundo de uma família abastada, sendo filho do médico Francisco António dos Reis e de Maria del Carmen de Lara Reis, uma senhora espanhola. Não teve uma infância feliz, vendo morrer a sua mãe poucos anos após o seu nascimento e o pai, que vivia e exercia a sua profissão em Redinha, pequena freguesia nas proximidades de Pombal, no distrito de Leiria, quando tinha 13 anos.

Frequentou o Liceu de Leiria entre 1902 e 1904, tendo ingressado no Colégio Militar, em Lisboa, no ano seguinte, após a morte do pai. Era seu tutor António de Sousa, de Pombal.

Depois de ter terminado o curso liceal, em 1910, assentou praça no Regimento de Infantaria n° 1, a que se seguiu a matrícula na Escola Politécnica de Lisboa que lhe permitiu o ingresso na Escola do Exército.

Em 1914, por altura do início do primeiro conflito mundial, Lara Reis, então aspirante a oficial, encontrava-se a prestar serviço no Regimento de Infantaria de Elvas. É deste quartel que parte em comissão para Angola em Julho de 1915, perante a ameaça alemã que pendia sobre as colónias portuguesas em África.

Regressado à metrópole, um ano depois, resolve optar por uma das grandes paixões da sua vida e, porventura, a mais frustrante: a aviação. Assim, quando embarca para França em Julho de 1917, integrando o corpo expedicionário português, vai na qualidade de Observador-Aviador.

Sarau de inauguração da Academia de Amadores de Teatro e Música, realizado no Teatro D. Pedro V, em 1 de Setembro de 1934. Arquivo Histórico de Macau.

Pouco tempo depois da chegada a França a infelicidade bate-lhe à porta de novo. Um acidente com o avião que pilotava, em Juvisy, lançou-o para a cama de um Hospital Militar em Ris-Rangis, nos arredores de Paris, onde esteve imobilizado durante cerca de seis meses, regressando a Portugal em 24 de Abril de 1918. Este acidente destruiu-lhe uma carreira militar que se afigurava promissora, tendo sido considerado inválido de guerra em Julho de 1918. Perdida a carreira militar, Lara Reis naturalmente passou um período relativamente longo em que não sabia que opções tomar em relação à reordenação e reorganização da sua vida. Assim, em Maio de 1919, um encontro ocasional com um velho companheiro do Liceu de Leiria, Telo Azevedo Gomes, que se preparava para ir para Macau como professor, levou-o a decidir-se por essa experiência sendo nomeado professor do Liceu daquele território por decreto de 15 do mesmo mês. Deste modo os dois amigos iriam já desempenhar as suas funções no ano lectivo de 1919/20.

Peça de teatro representada pelos amadores da Academia de Teatro e Música, em 4 de Outubro de 1934. Arquivo Histórico de Macau.

A instituição militar perdera um garboso oficial mas o ensino ganhou um brilhante professor que grangeou grande fama nos territórios onde exerceu o seu magistério. Em Macau quase sempre, com um pequeno lapso de tempo em Goa durante os três anos finais da II Guerra Mundial.

Ao longo de três décadas Lara Reis exerceu o professorado no Liceu Nacional, como professor de Desenho, de Trabalhos Manuais e mesmo de Ginástica, deixando marcas assinaláveis da sua passagem. Da sua acção no ensino veja-se o que escreveu o Pe. Manuel Teixeira, um profundo estudioso da vida de Macau que conheceu de perto a acção do professor leiriense:

"Nós que vimos acompanhando a vida do Liceu desde há cerca de 50 anos e que vasculhámos todo o seu arquivo, não encontrámos ainda um professor que tenha servido a sua escola com tanta dedicação como Lara Reis.

É que ele não se limitava às suas funções de professor competentíssimo de desenho, sendo sempre pontual e faltando muito raramente às aulas.

Inauguração do "Rotary Club", em Macau. Imagem da primeira Direcção com alguns sócios fundadores, em 11 de Janeiro de 1947. Arquivo Histórico de Macau.

A sua dedicação levava-o a tomar muitas outras iniciativas, sempre a bem dos alunos: exposições escolares anuais, em que ele sabia despertar o estimulo dos alunos e o interesse do público; festas e récitas frequentes, excursões culturais a Hong Kong, 'pic-nics' às ilhas, etc, etc."

É de recordar que no Liceu de Macau existia nos anos 20 um escol de professores de grande prestígio intelectual como o futuro cardeal D. José da Costa Nunes, Manuel da Silva Mendes e o poeta Camilo Pessanha cuja casa Lara Reis visitará pouco tempo após a sua chegada e de onde sai maravilhado com a sua sensibilidade e a sua colecção de obras de arte e de antiguidades.

Apesar dessa aproximação com o autor da Clepsidra, e sendo colegas, posteriormente membros da mesma equipa directiva do liceu e companheiros de vários júris de concursos artísticos, estes dois homens, sem mostrarem qualquer sinal de hostilidade, nunca serão próximos. As suas perspectivas de vida eram radicalmente diferentes, sendo notórias as vezes em que as suas actividades coincidem e eles se ignoram.

O apoio aos alunos pobres ocupou um lugar cimeiro nas preocupações de Lara Reis. Nesse tempo pagavam-se propinas para a frequência do ensino secundário e ele transformou-se num verdadeiro empresário de récitas para, com o dinheiro dos bilhetes, ultrapassar o magro número de estudantes com direito a isenção de propinas. Data desse tempo a fundação de uma organização filantrópica como a Associação Escolar do Liceu (com Estatutos publicados em 1935) e a promoção da "Feira Escolar para a construção do Campo Desportivo Escolar para uso exclusivo dos estudantes; infelizmente este Campo tão central e tão ideal escorregou das mãos dos estudantes para outras mãos que lhe deram o nome de Campo da Caixa Escolar", como constatou o Padre Teixeira no seu estudo sobre o Liceu de Macau.

Fotografia de 8 de Julho de 1923, a mostrar os efeitos provocados pelo tufão que assolou a cidade. Arquivo Histórico de Macau.

A par desta actividade a favor dos alunos mais desfavorecidos e do exercício com brilho da sua actividade docente, como alguns louvores que transcreve nas suas memórias atestam, Lara Reis deixou alguns quadros, reflectindo as suas actividades artísticas e as de vários alunos, nas instalações do Liceu e que se perderam em 1958, ano da mudança de instalações, por razões a que a incúria e a insensibilidade não foram certamente alheias.

Mas Lara Reis era um homem de sete ofícios que não se esgotava no exercício da sua profissão. Era membro de todos os clubes de Macau e vogal da Comissão de Estética, criada pelo Governo e de várias outras comissões de serviço, inclusive da Repartição dos Serviços das Obras Públicas de Macau pela qual foi encarregado de rever a planta da Península para sua actualização.

Como antigo aluno do Colégio Militar e da Escola de Guerra, assim como na qualidade de ex-combatente com o posto de capitão, Lara Reis tomou em mãos a fundação no território da secção local da Liga dos Combatentes da Grande Guerra e a construção de um Ossário-Monumento no Cemitério de S. Miguel.

Importa também referir que a sua actividade como sócio fundador do "Rotary Club" de Macau assumiu grande relevância, como referiremos noutra altura. Foi, aliás, este Clube que entregou à Santa Casa da Misericórdia a casa de Lara Reis, conhecida por "Sol Poente", depois de aí ter sido instalada uma clínica anticancerosa que na altura, em 15 de Abril de 1951, era o primeiro e único Instituto do género no Sul da China, assim como nas restantes possessões coloniais portuguesas.

Exposição de arte nos salões do Leal Senado, em 24 de Fevereiro de 1924.

Arquivo Histórico de Macau.

A leitura dos volumes que constituem as suas memórias permite ao leitor, na sua aparente superficialidade, formar um retrato elucidativo da figura deste professor de Liceu, cultivador de um snobismo de salão que não impede uma observação atenta do que o rodeia durante três décadas, seja na mais modesta representação teatral, em exposições de artes plásticas, em soirées e chás no Palácio do Governador ou de outros colunáveis da sociedade macaense, seja em bailes, casamentos de amigos e tantos outros acontecimentos sociais de diversa índole.

Viajante incansável e homem de sociedade podemos afirmar que a sua enorme obra literária, cujo desbravamento começa a dar os primeiros passos, é um imenso fresco de paisagens e personagens, em que tomam parte personalidades tão diversas como os aviadores Brito Pais e Sarmento de Beires, o marechal Gomes da Costa ou, durante o período em que Goa lhe deu guarida nos últimos anos da II Guerra Mundial, o mahatma Ghandi que encontra em Bombaim.

É, pois, este extraordinário filantropo, capitão reformado, professor emérito e de espírito sempre brilhante em trinta anos da vida social e cultural de Macau, que fecha os olhos em 14 de Janeiro de 1950, vítima de uma doença longa que tornara a sua última viagem a Portugal, em 1949, num verdadeiro suplício.

O Espólio de Lara Reis

Lara Reis foi, como atrás já ficou dito, um escritor prolífero. Contudo, um aparente "senão" pode apontar-se à sua obra. Quarenta e cinco anos após a morte a sua vastíssima produção permanece praticamente inédita. E é pena, como têm realçado alguns autores que se esforçaram por não deixar cair no esquecimento a sua obra, pois é um monumento em literatura de viagens.

Os volumes originais do seu espólio, que se encontram no Arquivo Distrital de Leiria, intitulados Diário de Viagens e A Minha Vida, profusamente ilustrados (fotos, postais, mapas, recortes, etc.), que abrangem o período que vai de 1915 a 1949, são um inesgotável manancial de informações para os historiadores que se preocupam com a investigação relacionada com o Oriente e com Macau em particular.

Esse valioso espólio, que deixou à pequena cidade que o viu nascer, não se limita aos livros de memórias. Alguns albuns fotográficos, recortes de jornais, livros em português, inglês e chinês, além de mais várias caixas de materiais avulsos, completam esta parte do espólio de Lara Reis.

Exposição de desenhos e trabalhos manuais dos alunos de Lara Reis, em 25 de Maio de 1922 e 17 de Maio de 1934. Arquivo Histórico de Macau.

Não se limitou a livros e materiais gráficos o legado depositado em Leiria. Também a Redinha recebeu a casa que fora de seu pai, destinando-a a Escola Primária, em doação datada de 1941. Ao Museu de Leiria deixou, como refere no seu testamento lavrado em 21 de Junho de 1949:

"Deixo ao Museu de Leiria, minha terra natal, a minha colecção de moedas de oiro, prata, cobre e papel, bem como os livros numismáticos de Teixeira Aragão — três volumes e outros livros de numismática que possuir, para ser colocada numa vitrina com a seguinte inscrição: Doação feita por Fernando de Lara Reis, filho desta terra."

Fernando de Lara Reis de uniforme militar em Moçâmedes, Angola, em 9 de Agosto de 1916. Arquivo Histórico de Macau.

Meritória intenção que ainda não se cumpriu porque nunca sonhou o benemérito que, quarenta e cinco anos após a sua morte, ainda não haja uma vitrina para colocar essa parte do seu espólio pela simples razão de ainda não haver museu em Leiria...

Este espólio permite, devido à meticulosa recolha de documentação efectuada pelo seu autor, reconstituir o ambiente social e cultural do território de Macau, fundamentalmente entre os seus habitantes de origem portuguesa. Podemos afirmar que estes documentos deverão constituir a mais exaustiva e comentada memória dessas três décadas fundamentais de Macau que vão desde os "loucos anos" vinte até aos finais da década de quarenta.

Atrevemo-nos, pois, a considerar que o estudo deste vultuoso espólio permitirá recriar a ambiência da sociedade macaense nesse período, com a sombra tutelar da China como pano de fundo desse ínfimo micro-cosmos de 16 K㎡.

Um Homem de Sociedade

Lara Reis era um homem de salão, um galante adulador de damas e de donzelas, embora sem consequências sérias para este celibatário empedernido. A esta facilidade no convívio social não foi estranha, certamente, a sua formação militar.

Lara Reis promove a Feira Escolar de 1920-1921 para angariar fundos para a Caixa Escolar de Macau. Arquivo Histórico de Macau.

Logo na sua viagem para Macau, que demorou de 17 de Julho de 1919 a 23 de Outubro do mesmo ano, essa sua faceta torna-se bem evidente. Nellie de Lisle, uma jovem americana que conheceu a bordo do vapor "Canadá" durante a viagem de Lisboa para Providência, nos Estados Unidos da América, escreveu, na página 16 do 3° volume do Diário de Viagens, uma mensagem que mostra como este homem era encantador e insinuante perante as jovens damas. Em 26 de Julho de 1919 escrevia Miss de Lisle na sua bela caligrafia:

"Eu gozei a viagem intensamente, estando com Fernando Reis, meu maravilhoso e interessante amigo português. Ele encantou-me com o seu entusiasmo e a sua apreciação do belo" (N. V. de Lisle).

Mas Lara Reis não se ficava pelo retrato escrito dos amigos e amigas que ia conhecendo na sua vida, nomeadamente nas longas viagens que fazia nas férias que se seguiam ao ano lectivo. Mas na primeira viagem entre Portugal e Macau as amizades travadas não se limitaram a Miss de Lisle. A travessia da América, em que dispendeu 23 dias, permitiu-lhe conhecer outras pessoas, homens e mulheres, com quem viajou satisfazendo uma curiosidade insaciável que o levou a Nova Iorque, às cataratas de Niágara, Búfalo, Chicago (onde fotografa Telo Azevedo), o Parque de Yellowstone, a Grande Bacia, Sacramento, Berkeley e S. Francisco.

É espantoso para nós, homens dos anos 90, a percepção do tempo das viagens para Lara Reis. Ficamos sempre com a sensação que, apesar da minúcia com que aproveita todo o tempo das suas viagens, gostaria de permanecer muito mais tempo em cada local. É o que se depreende na descrição desta primeira viagem quando, ao chegar ao Japão, abandona o barco "Seyo Maru" para percorrer o arquipélago japonês e apanhá-lo no porto de Moji, mesmo a tempo de rumar para Hong Kong. E é na viagem de ligação entre a colónia inglesa e Macau que trava conhecimento com o Padre Nunes, seu futuro colega no Liceu.

Dotado de um discurso fluente e de um timbre de voz agradável, culto e de uma educação e polidez brilhantes, rapidamente brilhou nos meios mais distintos do território. Essa sua fácil integração nos corredores da sociedade macaense viria, aliás, permitir-lhe o desenvolvimento da notável acção filantrópica que levou a cabo ao longo das três décadas em que viveu em Macau.

Pouco tempo após a sua chegada torna-se sócio do Clube Militar de Macau, instituição cujos corpos gerentes integrará em Dezembro do mesmo ano. No primeiro Natal fora do aconchego familiar amortecerá as saudades passando a Consoada em casa de Carlos Ricou e esposa.

Extremamente meticuloso em todas as notícias relacionadas com a sua pessoa, protesta em carta enviada à Direcção do jornal "O Macaense" contra o modo como este noticiara uma soirée no Grémio, na noite de 3 de Janeiro de 1920 e que se prolongara até às 5 da manhã. Nessa soirée participou Mademoiselle Silva Mendes, que tocou a dança Polaca de Sharevenka, o Dr. Sousa Afonso, que executou o Intermezzo da Cavalaria Rusticana. No canto, refere ainda Lara Reis, participaram as irmãs Trigo (Ema, Ângela, Deolinda e Maria Amélia) interpretando árias de Il Pescatori e da Madame Butterfly.

Página de um dos manuscritos de Fernando de Lara Reis onde se pode ver a baía da Praia Grande, em 1922. Arquivo Histórico de Macau.

Em 9 de Fevereiro de 1920 é admitido como sócio do Clube de Macau. Em Maio do mesmo ano, menos de um ano depois da sua chegada, recebe o primeiro convite para uma recepção no Palácio do Governo, de que será uma visita constante.

Conhecida a sua paixão pelos aviões não se estranha que a Companhia "The Macao Aerial Transport" o convide para o baptismo do primeiro hidroavião em 4 de Março.

Por ocasião da partida para França de Madame Ricou e do seu filho, em Julho de 1920, participa num serão em sua casa. Participará no seu jantar de despedida no "Hong Kong Hotel" com outros amigos como Madame Nolasco, o marido e a irmã, Mrs. Millar, Fausto Amorim e Telo Azevedo, entre outros. No dia seguinte, antes de ir em viagem com o Padre Costa Nunes até à Missão Jesuíta de Shiu Heng, assiste à partida desta senhora, enquanto Carlos Ricou regressa a Macau de aeroplano.

Nessa viagem o seu espírito de observação manifesta-se notável. Como, por exemplo, quando descreve a povoação de Sam-Sui:

"Ruas estreitas de pedregulhos enormes formando o pavimento, ruas cobertas com esteiras e lonas dum lado ao outro, o que lhes dá um aspecto e uma luz muito especial. De resto muito sujas e com uma aparência muito miserável e o cheiro também não é muito. bom, em parte motivado pelas casas de comida, talhos e outros estabelecimentos que se encontram a cada passo."

Ou regista os versos gravados no barco em que se desloca a caminho de Shanshui:

    "De dia deslizas sobre o mar
    Arrogante como um dragão
    E à noite repousas sobre a praia
    Tranquilo como uma gaivota."

Nas páginas dos Livros de Viagens perpassam constantes referências e documentos fotográficos de personagens destacadas de Macau, como nas curiosas fotografias do regresso dos banhos na Taipa. Além de Lara aí encontramos Augusto Beça e Francisco Chedas.

Na sua actividade social destes primeiros tempos de Macau avulta a participação em actividades desportivas como o Torneio Militar comemorativo do 10° aniversário da Revolução Republicana de 1910 em que venceu a prova de sabre e obteve o 2° lugar em espada, como se lê no recorte escrupulosamente guardado de "O Liberal" de 12 de Outubro de 1910. Uma fotografia de uma partida de ténis na ilha de Nalanchau, contra o alferes Manuel Maria Coelho, em 21 de Novembro do mesmo ano, a sua participação como Juiz de Campo do "First Annual Athletic Sports" em 3 de Março do ano seguinte e a sua importante contribuição para a construção do campo desportivo do Liceu, a sua actividade como professor de ginástica e dirigente desportivo revelam bem o ecletismo deste homem que pisava os campos desportivos com o mesmo à vontade com que bailava nos grande salões, representava e cantava nas récitas de angariação de fundos para causas diversas.

Reprodução de fotografia existente no Arquivo Histórico de Leiria.

Arquivo Histórico de Macau.

Lara Reis não se esquece de registar acontecimentos desportivos envolvendo estudantes. Acontece quando se refere aos Concursos Desportivos Inter-escolares e às aulas de ginástica que fotografa no campo do Chunambeiro.

Por estas récitas e saraus em que constantemente participava vemos surgir muitos dos nomes que fizeram furor nesses "anos loucos" macaenses. Da "Soirée dos Solteiros", realizada em 11 de Dezembro de 1920 no Clube de Macau, recorta a crónica publicada em "O Macaense", que junta à Ementa. Ao lado do texto jornalístico não resiste a acrescentar: "Foram pares marcantes no Cotillon o Lara Reis com Mary Meneses e Delfo Ribeiro com Ângela Trigo." Num Sarau a favor da Cruz Vermelha, promovido por D. Maria do Carmo Belford Corrêa da Silva, esposa do Governador, realizado em 5 de Março de 1921, encontramos a participação de Ema Trigo, Maria Amélia Trigo, Maria Lucília Batalha, Maria d'Eça Pacheco, Judite Peça, Maria Adelaide Lobato, Pauline Pacheco, Maria Leonor Corrêa, Alice Cardoso e Cecília Castelo Branco.

Coleccionador meticuloso de tudo o que se lhe refere, de um narcisismo discreto, nas páginas dos seus Diários encontram-se sucessivamente programas dessas récitas e saraus, menus de restaurantes, convites para recepções, fotografias e menus de casamentos como o de Veng Kun e Chiang Chi Tou, autografado por Maria Amélia Trigo e ele próprio e o de Mário Campos Nery e de D. Lucília de Novais Lopes.

Em 1923, quando apresenta um projecto de adaptação de um terreno baldio no bairro de Chunambeiro para Campo de Exercícios de Ginástica do Liceu Central, reside no número 3 da rua Ignácio Baptista de onde só sairá para a "Casa do Sol Poente", que fotografa pela primeira vez em 4 de Janeiro de 1931. Contudo, este não era um projecto isolado na sua actividade. Já três anos antes fora incumbido pela Repartição dos Serviços das Obras Públicas de Macau de executar a revisão da planta da Península de Macau, como já dissémos, no sentido da sua actualização. Mais tarde colocará em A Minha Vida um recorte do jornal "O Combate" de 15 de Abril de 1926, acusando uma importante personalidade da época de se apropriar desses trabalhos de revisão.

Lara Reis com alguns amigos: Afonso dos Santos, António Conceição. Deolinda da Conceição e Guterres. Arquivo Histórico de Macau.

Em 12 de Novembro de 1921 volta a participar numa récita de amadores em benefício do Teatro D. Pedro V, tendo também participado na sua organização. Pela primeira vez participa numa actividade pública com os seus amigos Sena Fernandes, colaboração que será constante nos anos seguintes. Entre as numerosas fotos destes amigos são curiosas e interessantes as que tira em Cantão, durante uma Tournée do Grupo de Amadores de Teatro e Música em 1924 e as de toda a família já na década de 30.

A sua faceta de homem de sociedade revela-se também nos desfiles e bailes de Carnaval em que participa e regista fotograficamente os disfarces dos seus amigos, como Milly Silva, Alice Cardoso, Angelina Santos e Maria Amélia Trigo em 1923. No Carnaval de 1927 o Grupo de Amadores de Teatro e Música apresentou uma récita aparecendo nas fotos Lara Reis, Milly Silva e José Carvalho Rego travestido.

Outra actividade para que é muitas vezes convidado diz respeito à decoração e cenários de representações artísticas. É o caso da sessão de homenagem a Vicente Nicolau de Mesquita, Pedro Nolasco da Silva, António Joaquim Basto e Ferreira do Amaral, em 3 de Maio de 1923.

A par e passo deparam-se-nos nas suas páginas descrições, convites e cartas para os mais diversos encontros sociais. É visita constante dos diversos governadores que se sucedem e assiste a uma reunião em honra de Sarmento de Beires e Brito Pais, os aviadores portugueses que, em 1924, ligaram Lisboa a Macau por via aérea. Aliás é encarregado pelo Liceu Central de dar as boas vindas aos aviadores, depois de ter participado na subscrição para essa viagem, e assiste ao Baile em sua honra no Clube Militar, não se esquecendo de juntar o Menu à sua descrição. Em 9 de Julho de 1924 é convidado para a inauguração da estação de Telefonia Sem Fios. Em vésperas do Natal desse mesmo ano assiste, a convite do Bispo de Macau, a um concerto de Polifonia Sacra para homenagear o Patriarca das Índias.

Outro acontecimento que repete anualmente é o jantar que oferece aos amigos celibatários por ocasião do seu aniversário. Em 28 de Dezembro de 1924, no seu 32° aniversário, são seus convivas Telo Azevedo Gomes, o Eng° Carvalho, o Capitão Jacinto Morna, o Tenente Dias e José Rego.

Reproduções de fotografías existentes no Arquivo Histórico de Leiria.

Arquivo Histórico de Macau.

A Exposição Industrial e Feira de Macau que teve lugar em Novembro de 1926 teve a entusiástica participação das escolas da cidade. A tuna do Liceu participou no dia da inauguração e a autêntica coleccção de fotografias que Lara deixou mostra o seu grande empenhamento, assim como da escola a cujo corpo docente pertencia.

O que temos dito não passa de uma amostra da imensa actividade desenvolvida por Lara Reis nas três décadas em que viveu em Macau. Foi membro da maioria das associações do território, como o Sporting, a Caixa Escolar, o Clube Militar, o "Rotary Club" e a Liga dos Antigos Combatentes. Aliás a Caixa Escolar "é conseguida em grande parte através das receitas das feiras escolares para subsidiar alunos mais pobres na compra do material didáctico, alimentação e bolsas de estudo e vem a ser implantada com sede própria, no campo do Tap-Seac, em 1925", como esclareceu o Padre Manuel Teixeira. O escritor Joaquim Paço d'Arcos foi um dos estudantes que recebeu um subsídio estabelecido pela Caixa.

Fernando de Lara Reis não teve, pois, quaisquer dificuldades em integrar-se na sociedade macaense dos anos 20. Ele será rapidamente um dos motores da dinâmica social e cultural de Macau, como se poderá inferir de tudo o que acabamos de dizer. Todas as actividades em que participou manifestam o seu engenho e o talento imaginativo que o tornaram num inovador pedagógico em disciplinas consideradas "pobres", como eram o Desenho e os Trabalhos Manuais. As suas exposições anuais de trabalhos de alunos, fossem artesanais, de desenho ou de pintura, foram um sucesso.

Quisémos hoje lembrar uma personalidade marcante na sociedade macaense durante três décadas. São homens como este que ajudam a transformar o mundo para melhor, usando como armas a filantropia e a solidariedade.

Homem mundano e cidadão do mundo, uma enorme curiosidade transportou-o a longas paragens com Macau como ponto de partida e de chegada. Observador atento de povos culturalmente distintos da portugalidade que o tinha moldado, tentou quase como antropólogo avant la lettre compreender e entender essas culturas. As suas numerosas amizades com membros da comunidade chinesa de Macau, ou com famílias filipinas que visitava frequentemente, demonstram o seu modo de estar na vida, defendendo na prática a igualdade e a fraternidade entre os povos, independentemente da raça, do credo religioso, ou dos seus costumes. O seu conservadorismo nunca o isolou nem lhe limitou o entendimento mesmo perante factos culturais que não compreendia.

Fernando de Lara Reis, macaense natural de Leiria, foi um homem bom e generoso. Homem de cultura e observador escrupuloso, deixou nos seus Diários um retrato da sociedade macaense das três décadas que antecedem a sua morte em 1950. Énesse caminho que continuaremos a nossa investigação.

Trabalho apresentado no II Ciclo de Conferências dos Bolseiros do Instituto Cultural de Macau, DEIP, realizado

em Macau no dia 11 de Abril de 1996.

Clipper no porto de Macau: inauguração da carreira aérea, 1940.

Arquivo Histórico de Macau.

* Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Bolseiro do I. C. M., DEIP.

desde a p. 171
até a p.