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ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA DE MACAU: PROGRESSOS E DIFICULDADES: TENDÊNCIAS DA INVESTIGAÇÃO SOBRE A HISTÓRIA DE MACAUNA CHINA

Zhang Haipeng*

Guilherme Ung Vai Meng:"Casa da Misericórdia". Lápis sobre papel, 38×29cm, 1990.

Macau faz parte do território chinês; por isso, a História de Macau é parte constituinte da História da China. Calcula-se que Macau começou a ser povoado pelos chineses nos finais da dinastia Song do Sul, 1126-1279. No entanto, só se tornou num alvo de atenção do Mundo a partir dos meados do século xvi, quando os portugueses se estabeleceram no local, pelo que, quando se fala da História de Macau, refere-se geralmente à História contada desde o estabelecimento dos portugueses na cidade. De acordo com os estudiosos chineses, a História da China divide-se em três grandes fases: Antiga, Moderna e Contemporânea. A primeira fase pode ainda dividir-se em História de Pré-Qing, História de Qin e Han, História de Wei e Jin, História de Tang e Song, História de Yuan e História de Ming e Qing. Acontece que, para estudar a História de Hong Kong, pode tomar-se como ponto de partida o ano de 1840, que até agora só compreende as fases moderna e contemporânea. No caso da História de Macau, a sua origem remonta aos meados da dinastia Ming, o que significa que ela contém todas as referidas três grandes fases: Antiga, Moderna e Contemporânea.

A considerar no sentido científico, a investigação sobre a História de Macau teve início em 1936, quando Zhou Jing Lian publicou a sua obra Zhong Pu Wai Jiao Shi (História das Relações Sino-Portuguesas). O livro, embora intitulado de História das Relações Sino-Portuguesas, trata, na realidade, da chegada dos portugueses ao Oriente nos meados do século xvi, das suas incursões às costas chinesas em busca de oportunidades de comércio, bem como da história da evolução de Macau desde o estabelecimento dos portugueses no território e dos respectivos contactos sino-portugueses. Após a fundação da Nova China em 1949, os historiadores chineses, particularmente aqueles que se dedicam ao estudo da História Moderna, devido às muitas humilhações que a Pátria tinha sofrido durante os cem anos anteriores, prestaram especial atenção à história das invasões imperialistas da China. Eles não só abordaram o tema como ponto de partida dos seus estudos sobre a História Moderna da China, em geral, mas também o tomaram como alvo específico das suas pesquisas, e desenvolveram sobre ele investigações especializadas. Os resultados foram notáveis: um conjunto de trabalhos foi concluído e publicado. Só no nosso Instituto, nos últimos 40 anos, foram publicados Mei Guo Qin Hua Shi (História da Invasão Americana da China), Di Guo Zhu Yi Qin Hua Shi (História das Invasões Imperialistas da China, 2 vol.), Sha E Qin Hua Shi (História da Invasão Russa da China, 4 vol.), Ri Ben Qin Hua Qi Shi Nian Shi (História dos Setenta Anos da Invasão Japonesa da China), Shi Jiu Shi Ji De Xiang Gang (Hong Kong no Século XIX), etc., sem contar os trabalhos publicados nas diversas universidades e nas respectivas instituições de investigação. Desta maneira, a história das invasões da China pelos principais países capitalistas-imperialistas — Inglaterra, França, Rússia, Estados Unidos da América, Japão e Alemanha—já foram todas relatadas em obras especiais. Mas, o que foi interessante, nas décadas de 50-70, a investigação sobre a história da ocupação de Macau pelos portugueses, ou seja, sobre a história de o território chinês — Macau — ser ocupado, revelou-se extremamente fraca. Segundo o meu conhecimento, que é, aliás, possivelmente incompleto, os artigos sobre a História de Macau, publicados durante esse período, não passaram da dezena, enquanto a publicação de documentos foi ainda mais pobre [Jie Zi: Pu Tao Ya Qin Zhan Ao Men Shi Liao (Documentação sobre a História da Ocupação de Macau pelos Portugueses); Di Guo Zhu Yi He Zhong Guo Hai Guan (0 Imperialismo e as Alfândegas Chinesas), série VI].

Com as reformas e a abertura da China no início da década de 80, sobretudo com o progresso das negociações entre os governos chinês e português sobre a questão de a China voltar a assumir a soberania de Macau, aumentou o número dos investigadores interessados na evolução da História de Macau e, consequente e visivelmente, a quantidade dos estudos nela incidentes. De acordo com uma estimativa preliminar, nos últimos dez anos foram acabadas mais de 50 teses e várias obras específicas sobre a História de Macau, tendo os seus autores espalhados por Cantão, Nanquim, Xangai, Nan Ning e Pequim. Por exemplo: em 1984, em Pequim, foi publicado Ming Shi Fo Lang Ji Jian Zheng (Anotação e Verificação para a Biografia dos Frangues na História Ming), da autoria de Dai Yi Xuan, estudioso de Cantão, especializado na História de Macau; em 1989, a editora "Business" de Hong Kong trouxe a público a obra dum investigador de Nanquim, Huang Hong Zhao: Ao Men Shi (História de Macau), com cem mil caracteres; no ano seguinte, saiu à luz, em Xangai, Ao Men Si Bai Nian (400 Anos de Macau), com duzentos e setenta mil caracteres, trabalho do jovem historiador da Academia das Ciências Sociais de Xangai, Fei Cheng Kang; e, em 1991, em Fu Zhou, foi publicado outro livro de Huang Hong Zhao: Ao Men Shi Gang Yao (Resumo da História de Macau), com duzentos e quarenta e cinco mil caracteres. No entanto, os dois investigadores de Cantão — Huang Qi Chen e Deng Kai Song são os mais fecundos neste sentido. É de salientar que, em 1991, eles publicaram Ao Men Shi Zi Liao Hui Bian: 1553-1986 (Colecção de Documentos sobre a História de Macau e Hong Kong: 1553-1986), compilado pelos dois. Além disso, sabe-se que uma outra obra de Deng Kai Song está para sair. Desta maneira, o estudo da História de Macau tem-se quase equilibrado com Hong Kong.

A linha geral da história da evolução de 400 anos de Macau já foi esboçada pelos investigadores chineses. Nos artigos e livros publicados foram já discutidas e relatadas questões como: o processo da vinda dos portugueses ao Oriente no início do século xvi e do seu estabelecimento em Macau; a determinação pelo governo chinês da política de permitir ou não aos portugueses alugar o terreno em Macau para negociarem; as políticas especiais aplicadas pelo governo chinês em Macau para assegurar a administração antes dos meados da dinastia Qing; as razões de os portugueses transformarem Macau, dentro dos 80 anos desde a sua abertura, num centro e entreposto do comércio internacional entre o Oriente e o Ocidente, e a sua prosperidade; a decadência súbita de Macau nos meados do século xvii por consequência dos confrontos que os comerciantes portugueses tiveram com os japoneses, espanhóis e holandeses, da mudança das políticas chinesas nas zonas litorais, e das discórdias existentes no meio dos portugueses, etc.; a recuperação da economia de Macau com a entrada do século xviii, graças ao tráfico do ópio e dos cules; a vinda dos missionários para Macau e a contribuição de Macau no intercâmbio cultural entre o Oriente e o Ocidente, servindo como ponte de ligação entre os dois lados; depois da Guerra do Ópio, os colonizadores portugueses forçaram a alterar a posição de Macau e as respectivas tentativas; em 1887, as assinaturas do Protocolo de Lisboa e do Tratado de Amizade e Comércio entre a China e Portugal e, consequentemente, a mudança da posição de Macau; os projectos e discussões na China sobre a recuperação de Macau e os vários contactos sino-portugueses com a finalidade de resolver a Questão de Macau nos últimos cem anos; etc.

Os investigadores chineses partilham de opiniões semelhantes ou próximas quanto a muitas questões sobre a evolução da História de Macau mas, em relação às matérias mais importantes, as interpretações são diferentes ou, muitas vezes, assinalavelmente divergentes. A seguir, vou apresentar essas divergências e os problemas existentes no estudo da História de Macau e fazer, a propósito, os meus comentários.

I. A ORIGEM DO ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES EM MACAU

Na História da Relações Sino-Portuguesas, Zhou Jing Lian, baseado nas fontes chinesas e estrangeiras, enumerou-nos as versões diferentes sobre a questão, as quais podem serresumidas, em geral, nos dois pontos seguintes: 1.° — os portugueses expulsaram os piratas que ocupavam Macau e, como recompensa, foram autorizados pelas autoridades locais a instalarem-se em Macau; ou o imperador chinês outorgou Macau aos portugueses para os premiar por terem derrotado os piratas; ou os portugueses expulsaram os piratas e ocuparam directamente Macau; 2.° — os portugueses obtiveram licença para residirem em Macau, alugando o terreno, mediante pesados subornos dos mandarins locais, tal como do Hai Dao Fu Shi — intendente da Defesa Marítima, Wang Bo.

Os investigadores chineses, comummente, não estão de acordo com a versão de os portugueses ficarem em Macau por terem expulso os piratas, por lhe faltar o apoio nas fontes chinesas. O compilador de Documentação sobre a História da Ocupação de Macau pelos Portugueses, Jie Zi, julga que esta versão foi puramente uma invenção desavergonhada dos colonizadores portugueses. Huang Hong Zhao, no seu Resumo da História de Macau, refutou, especialmente, todas as falsas opiniões que suportam esta versão, adiantando que não existe nenhum relato sobre a história dos piratas em Macau. E, finalmente, o autor de 400Anos de Macau, Fei Cheng Kang, também não está disposto a aceitar esta versão, nem a de que os portugueses estabeleceram em Macau uma "colónia". É aceite por todos os investigadores chineses a versão de que o estabelecimento dos portugueses em Macau foi o resultado dos abundantes subornos que estes fizeram aos mandarins locais. Só que, quanto à questão de os portugueses obterem ou não a autorização do governo Ming para esse efeito, as opiniões divergem. Jie Zi acha que não.

Huang Hong Zhao e Fei Cheng Kang ambos citaram a carta que o capitão-mor português, Leonel de Sousa, escreveu ao príncipe D. Luís em Janeiro de 1556, segundo a qual os portugueses, para poderem negociar em Cantão, subornaram, através dos comerciantes chineses, o intendente de Defesa Marítima,Wang Bo, e assumindo o nome de outro reino, mostraram-se dispostos a pagar os direitos ao governo Ming. Wang Bo apresentou à corte o pedido dos portugueses em 1553 e, em 1554, recebeu instruções para deixá-los comerciar, o que constituiu uma boa oportunidade para os portugueses desenvolverem o comércio em Macau. No caso de ser verdadeiro este episódio, o estabelecimento português em Macau foi, de facto, autorizado pela corte chinesa. Mas, também, esta versão não encontra nenhum suporte nas fontes chinesas. No seu livro, Fei Cheng Kang escreveu: "Sem o consentimento oficial do governo Ming, os portugueses permaneceram mais dez anos [foram 20 anos, aliás] em Hao Jing." Depois, começaram a pagar o foro do chão às autoridades locais. O autor afirmou que, "o facto de os portugueses pagarem o foro do chão ao governo chinês demonstrou mais uma vez que eles reconheciam que Hao Jing era território chinês; e, quando o governo chinês aceitou o referido foro e o registou no Guang Dong Fu Yi Da Quan (Registo dos Tributos de Cantão), editado no reinado de Wan Li, provou que o governo chinês tinha consentido oficialmente o estabelecimento português em Macau, alugando o terreno". Além disso, com base numa fonte chinesa, em que consta o episódio de que o recém-nomeado vice-rei de Liang Guang, Cheng Rui, depois de ter aceite o suborno dos portugueses, permitiu em 1582 que estes continuassem a viver em Macau, com a condição de "submeterem-se à administração dos funcionários chineses", Fei Cheng Kang acha que isto implica, de facto, que um mandarim da primeira ordem do governo Ming autorizou, pela primeira vez e claramente, que os portugueses residissem em Macau.

Na verdade, as autoridades locais de Cantão começaram a discutir a política de aceitar ou não os comerciantes portugueses logo depois de estes terem desembarcado em Macau. E, em 1614, o então vice-rei de Liang Guang, Zhang Ming Gang, apresentou um memorial à corte em Pequim, alegando que a melhor maneira de enfrentar os portugueses era, em vez de os afastar todos, aproveitar a situação dos portugueses em Macau de "tudo depender de nós para a sua sobrevivência", "fazer saber os regulamentos e as interdições", e reforçar a prevenção e a gestão. A ideia obteve o apoio da corte. O autor de Ya Pian Zhan Zheng Qian Hou Ao Men Di Wei De Bian Hua (A Mudança da Posição de Macau Antes e Depois da Guerra do Ópio, "Estudos sobre História Moderna", 1986, n.o3), Wang Zhao Ming, observou que "esta foi a primeira manifestação da atitude da corte chinesa a respeito da ocupação portuguesa de Macau que até agora conhecemos".

Em conclusão, quanto à eventual obtenção da autorização do governo Ming pelos portugueses para a sua residência em Macau, existem principalmente as seguintes versões: 1o_ em 1554, obtiveram uma resposta favorável da corte chinesa; 2o-- 20 anos depois, em 1573, começaram a pagar formalmente o foro do chão ao governo Ming, facto que se pode interpretar como o consentimento da parte chinesa; 3o-- em 1582, Cheng Rui, na qualidade de vice-rei de Liang Guang, deu a autorização, e foi provavelmente nessa altura que o referido foro foi assente no Registo dos Tributos de Cantão; 4.o-- em 1614, a proposta de Zhang Ming Gang foi aceite pela corte chinesa. Por isso, a opinião de os portugueses não obterem a autorização do governo Ming não merece credibilidade.

II. O CARÁCTER DO ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES EM MACAU

Em relação ao carácter do estabelecimento dos portugueses em Macau, as opiniões tradicionais dos chineses classificavam-no geralmente como uma "invasão", uma "ocupação", ou uma"colonização", sendo esta última partilhada por alguns investigadores estrangeiros. Jie Zi, quando baptizou a sua colecção dos documentos com o nome de Documentação sobre a História da Ocupação de Macau pelos Portugueses, mostrou, inequivocamente, a sua opinião. E Huang Hong Zhao, no seu artigo Ao Men Wen Ti De Li Shi Hui Gu (Revisão Histórica da Questão de Macau, "Boletim da Universidade de Nanquim", 1987, n.o1), dividiua invasão portuguesa de Macau em três fases: 1517-1557, o período de os portugueses subornarem os funcionários chineses para que lhes fosse aberto Macau e entrassem aí fingidamente para comerciarem; 1557-1849, o período de forçarem a residir em Macau e desenvolverem o comércio; e, finalmente, o período pós-1849, período de prejudicarem a soberania chinesa sobre Macau e exercerem a directa governação colonialista da cidade. De resto, um investigador do nosso Instituto, Ding Ming Nan, também defende a versão de "invasão" (vd. a sua obra História das Invasões Imperialistas da China, vol. I, editado em 1958). Saliente-se que o aparecimento destas opiniões foi tão natural quanto compreensível, uma vez que, depois da Guerra do Ópio, as invasões das potências ocidentais que os chineses sofreram foram, de facto, demasiado dolorosas.

Seja como for, a atitude do governo Ming quanto ao estabelecimento português em Macau, atendendo os factos acima mencionados, foi: em 1553, as autoridades locais consentiram tacticamente; em 1573, as autoridades locais aceitaram o foro pago pelos portugueses; em 1582, o então vice-rei de Liang Guang deu a autorização; e, finalmente, em 1614, a corte Ming permitiu que os portugueses ficassem em Macau. Foi verdade que, nessa altura, os comerciantes portugueses não eram ainda tão fortes que fossem capazes de obrigar o governo chinês a aceitar a sua residência em Macau, tanto como o governo Ming dos últimos reinados não era tão fraco que chegasse a ter medo dos comerciantes portugueses. Segundo uma análise de Fei Cheng Kang, o facto de o governo Ming permitir que os portugueses residissem em Macau teve a ver com a infestação das costas chinesas pelos piratas japoneses e as actividades corsárias do poderoso pirata de Dong Guan, He Ya Ba, para além de as contribuições poderem atenuar as dificuldades financeiras locais. Embora os portugueses tivessem tentado bater à porta da China pela força no início do século xvi, as derrotas sofridas tanto em Tun Men e Xi Cao Wan como em Zhe Jiang e Fuquiém fizeram-lhes perceber de que tais tentativas não adiantavam nada perante a China tão poderosa da altura, pelo que, para concretizarem o sonho de poderem comerciar na China, mudaram a estratégia, recorrendo às negociações pacíficas e aos subornos dos funcionários chineses. Além disso, os portugueses, desde o seu estabelecimento em Macau, respeitaram sempre a administração chinesa, situação que durou quase 300 anos, e que foi completamente diferente do caso das invasões da China pelas potências ocidentais nos meados do século xix. Por isso, Fei Cheng Kang não está de acordo com o uso do termo "invasão", considerando que a história de cerca de 300 anos antes da Guerra do Ópio não foi, de maneira nenhuma, uma história da invasão portuguesa de Macau, mas antes uma história dominada pela amizade e cooperação entre a China e Portugal. Esta nova opinião merece a atenção do círculo académico e estudos mais aprofundados.

Da mesma maneira, a versão de Macau ser uma colónia não tem argumento. Macau era diferente das outras colónias ultramarinas de Portugal. Em Macau, o governo chinês exercia, sem restrição nenhuma, a plena soberania. Sobre esta questão, Wang Qi Chen, num seu trabalho intitulado Shi Liu Zhi Shi Jiu Shi Ji Zhong Guo Zheng Fu Dui Ao Men De Te Shu Fang Zhen He Zheng Ce (As Directivas e Políticas Especiais do Governo Chinês em Macau: Séculos XVI-XIX, "Tribuna Científica", Guangxi, 1990, n.o 6), fez-nos uma análise devidamente pormenorizada. O autor considera que, quando em 1583 o então vice-rei de Liang Guang, Cheng Rui, permitiu tacitamente que os portugueses em Macau criassem o Senado, e concedeu ao seu chefe administrativo o título de Yi Mu (Chefe dos Bárbaros), delegando-lhe a gestão dos assuntos autónomos dos portugueses dentro da área murada — a zona sul da península —, este tipo de organização "autónoma" limitava-se a funções no meio dos portugueses, era apenas um órgão autónomo interno deles. Entretanto, o governo chinês administrava efectivamente todo o Território e os portugueses reconheciam totalmente a administração do governo chinês. Fei Cheng Kang acha que o acto do governo Ming de permitir aos portugueses exercer a "autonomia" em Macau era uma imitação do sistema Fan Fang (Zona dos Bárbaros) que os governos das dinastias Tange Song tinham adoptado para administrar os imigrados estrangeiros residentes em Cantão. Por isso, Macau era, como Huang Qi Chen disse, "uma zona especial, de tipo insular, onde o governo chinês exercia a soberania e a administração directa enquanto os portugueses geriam o comércio". Assim, classificar Macau de antes da Guerra do Ópio como uma colónia também não é convincente.

III. AS INFLUÊNCIAS QUE AADMINISTRAÇÃO DOS PORTUGUESES EM MACAU EXERCEU SOBRE A EVOLUÃO DA HISTÕIA DA CHINA

Este é um tema interessante, em que as opiniões dos investigadores divergem. Huang Qi Chen e Deng Kai Song publicaram conjuntamente, em 1984, um artigo intitulado Ming Qing Shi Qi Ao Men Dui Wai Mo Yi De Xing Shuai (A Prosperidade e Decadência do Comércio Externo de Macau nas Dinastias Ming e Qing, "Estudo sobre a História da China", 1984, n.o 3). Uma análise sobre a prosperidade e a decadência do comércio externo de Macau no período compreendido entre 1553 e 1911 e as suas causas indicou-nos especialmente as influências que este comércio exerceu sobre a evolução da História da China. No texto, os autores argumentaram que, como o comércio e as relações externas de Macau eram mantidos desde sempre nas mãos dos países colonizadores, tal como Portugal, e o comércio desenvolvido por estes países tinha, na sua maioria, o carácter de um roubo brutal, pelo que esse comércio, em vez de promover progresso socioeconómico da China, acabou por provocar essencialmente retrocesso em grande escala, nomeadamente durante a dinastia Qing, quando esses efeitos adversos se manifestaram ainda mais assinaláveis. O facto de os comerciantes portugueses controlarem o comércio ultramarino de Macau aumentou consideravelmente as dificuldades e perigos para os comerciantes chineses, quando estes praticavam comércio externo por via de Macau, e desacelerou ou até impediu o desenvolvimento do comércio externo da China, causando, por isso, graves consequências à economia feudal do país — para além de afectar a produção das mercadorias, impossibilitou que a China, através do comércio externo por via de Macau, acumulasse fundos suficientes para desenvolver as suas indústrias artesanais, de carácter capitalista, então surgidas. O autor entende que essas consequências constituíram uma causa importante do atraso da sociedade chinesa em relação aos países ocidentais desde o século xvi.

Posteriormente, o mesmo investigador fez outra análise e chegou a uma conclusão diferente da anterior. Depois dum estudo sobre as políticas especiais que os governos Ming e Qing aplicavam em Macau, adiantou que elas tanto tiveram consequências graves como efeitos positivos. As consequências graves referem-se, em termos políticos, aos prejuízos sofridos pelo governo chinês em relação ao exercício da soberania sobre Macau depois da Guerra do Ópio. E quanto aos efeitos positivos, apontam essencialmente, em termos socioeconómicos e culturais, para as promoçõs efectuadas nos domínios da economia de mercadorias e monetária da sociedade chinesa e dos intercâmbios científico-tecnológicos e culturais. No sentido socioeconómico, Huang sublinhou que, de 1573 até 1644, durante 72 anos, com os negócios feitos pelos comerciantes portugueses, espanhóis e japoneses, foram introduzidos na China cento e quarenta milhões de taéis de prata, que ofereceram condições para a criação dum novo sistema monetário, a partir dos meados da dinastia Ming, que tomou a moeda de prata como elemento principal e a de bronze como suplementar, o qual permitiu que o governo Ming aplicasse, no nono ano do reinado do imperador Wan Li (1581), novo sistema de impostos em todo o país: "Sistema de Chicote Singular"—"cobrar o imposto em prata de acordo com a dimensão da terra cultivada". O novo sistema "fixou legalmente como posição predominante a forma monetária de imposto, o que significava a era moderna" (vd. o artigo de Huang, na "Tribuna Académica", 1990, n.o 6). Esta opinião apoiou-se num investigador de Pequim, Liu Zhong Ri que, em 1993, num trabalho intitulado Macau no Período das Dinastias Ming e Qing: Uma Ponte de Intercâmbio Cultural Sino-Ocidental, citou as fontes para provar que o comércio internacional de Macau, dominado pelos portugueses, promoveu e estimulou a produção e a circulação das mercadorias na China. Liu considera que o fluir de grandes quantidades de prata para dentro da China durante a dinastia Ming através de Macau era, sem dúvida nenhuma, muito vantajoso para a economia de mercadorias em desenvolvimento no país, pois constituiu, na verdade, um adicional à economia monetária da altura e um catalisador para a produção de mercadorias, e proporcionou e acelerou o surgimento do capitalismo nas zonas dos deltas do rio Iansequião e do rio das Pérolas no período das dinastias Ming e Qing (vd. Intercâmbio Cultural Oriente-Ocidente: Seminário Internacional sobre o Intercâmbio Cultural Oriente-Ocidente, editor-chefe Wu Zhi Liang, Fundação Macau, 1994). Esta opinião foi ainda partilhada por Fei Cheng Kang que, ao participar no Seminário Internacional sobre o Intercâmbio Cultural Oriente-Ocidente, edição de 1993, apresentou a sua comunicação -- Reavaliação da Posição de Macau no Intercâmbio Cultural Oriente-Ocidente. Neste texto, o autor argumentou que desde a instalação dos portugueses em Macau até 1849, embora fossem inevitáveis os pequenos conflitos, não houve confrontos militares violentos entre as partes chinesa e portuguesa, antes foram sempre mantidas relações de amizade. Além disso, até 1799, ano em que os ingleses começaram a transportar grande quantidade de ópio para a China, o comércio Oriente-Ocidente por via de Macau era, na sua maioria, comércio legal, que incentivou enormemente a produção de mercadorias, tanto nas cidades como nas zonas rurais da China e, consequentemente, a prosperidade económica das regiões envolvidas, sobretudo durante o período áureo de cerca de 80 anos da História de Macau. "Por isso, até aos finais do século xviii, fosse como fosse complicado o papel desempenhado pela Carreira do Cabo noutras regiões, o seu funcionamento foi muito vantajoso para o progresso da sociedade chinesa."

IV. AVALIAÇÃO DA POSIÇÃO HISTÓRICA DE MACAU

Dada a ocupação permanente de Macau pelos portugueses, na China a avaliação tradicional da posição histórica de Macau não foi muito positiva. No entanto, nos últimos anos, os investigadores chineses, com uma atitude de mais sangue-frio, não negando a História de 400 anos de Macau, por ter sido ocupado pelos portugueses desde 1849, nomeadamente desde 1887, nem subestimando o papel desempenhado por Macau nas antigas relações comerciais internacionais por causa dos tráficos do ópio e dos cules e de se ter transformado no Monte Carlo do Oriente, dividiram a História de Macau em várias fases, em função das suas diferentes situações nas diferentes épocas do comércio internacional desde os meados do século xvi, e sobre cada uma delas fizeram as respectivas pesquisas, chegando por fim a conclusões diversificadas. Regra geral, todos puseram em relevo a posição e o papel de Macau quando servia como entreposto do comércio entre a Ásia, a Europa e a América e como porto para o comércio externo da China nos séculos xvi-xiii, sublinhando que Macau foi uma ponte para os encontros culturais entre o Oriente e Ocidente. Sobre este ponto, Huang Qi Chen, Liu Zhong Ri, Huang Hong Zhao e Deng Kai Song, todos fizeram as respectivas descrições e comentários. Falando do período áureo de 80 anos do comércio internacional de Macau, Fei Cheng Kang chegou a afirmar que, a nível internacional, Macau ficava ainda acima de Cantão, Nagasáqui, Manila, Malaca e Batávia — era o lugar mais célebre de distribuição de mercadorias no Extremo Oriente e a porta mais importante para a China comunicar com o exterior (vd. 400 Anos de Macau).

Comparando com a alta importância atribuída à antiga Rota da Seda terrestre, que teve como ponto de partida a cidade de Chang An, Fei Cheng Kang, na sua Reavaliacão da Posição de Macau no Intercâmbio Cultural Oriente-Ocidente, tendo considerado a posição histórica de Macau num contexto global, apelou para se fazer uma avaliação justa da posição de Macau como "estrela" no intercâmbio cultural Oriente-Ocidente. Fei acha que, em comparação com a Rota da Seda, o intercâmbio cultural praticado por via de Macau era maior em dimensão, mais largo em domínio e mais alto em nível; por isso, a posição e o papel da estrada marítima de que Macau era o ponto-chave não eram, de maneira nenhuma, menos importantes do que os da Rota da Seda. Para a China anterior à Guerra do Ópio, continuava Fei, as carreiras mais importantes que ligavam a China com o Ocidente eram só duas: uma, a Rota da Seda, que partia da antiga capital Chang An, atravessava os desertos e montanhas estendidas pelo Oeste da China, Ásia Central e Ásia Ocidental, e chegava à margem oriental do mar Mediterrâneo, era, da dinastia Han Ocidental até à dinastia Ming, a via principal que a China empregava nos intercâmbios económicos e culturais com o Ocidente. Mas esta rota histórica foi depois interrompida pelo Império Turco, surgido a meio do caminho. A outra, era exactamente a rota marítima que os portugueses abriram quando, nos finais do século xv e no início do século xvi, dobraram de barco o cabo da Boa Esperança, passaram o estreito de Malaca e chegaram à Ásia Oriental. Com a abertura desta rota, a China voltou a estabelecer relações com o Ocidente: Cantão e Macau serviram como porta de saída no processo. Este caminho marítimo tornou-se logo na via principal para as trocas económicas e culturais sino-ocidentais, situação que permaneceu até aos meados da dinastia Qing. Neste sentido, a posição de Macau nas relações Oriente-Ocidente, nomeadamente no seu período áureo, aproximou-se da antiga capital Chang An, cidade da partida da Rota da Seda. Depois, até à Guerra do Ópio, apesar da decadência, Macau continuou a ser o único centro do intercâmbio cultural Oriente-Ocidente na China, um papel semelhante ao da cidade de Dun Huang, na Rota da Seda.

Terminada a Guerra do Ópio, Macau foi substituído por Hong Kong, e sobretudo por Xangai, e viu a perda total da sua posição antiga. A seguir, devido às invasões das potências imperialistas e à ignorância, à confusão, ao descuido e à fraqueza da corte Qing, os portugueses aproveitaram para privar o governo chinês do poder administrativo em Macau e, em 1887, numa circunstância internacional complexa, o governo chinês aprovou o Tratado de Amizade e Comércio entre Portugal e a China, reconhecendo a "perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal", mas exigindo que Portugal prometesse "nunca alienar Macau sem prévio acordo com a China". O governo chinês perdia quase, por isso, a soberania sobre Macau. Apesar disso, seria injusto se negássemos as políticas dos governos Ming e Qing em Macau nos 300 anos anteriores e as colaborações da parte portuguesa na administração de Macau, tanto quanto a devida posição histórica de Macau no processo dos intercâmbios culturais entre o Oriente e o Ocidente. Pelo que, Fei Cheng Kang afirmou que "olhando para a história civilizacional de 5000 anos da China, Macau tem sido obviamente um dos pontos-chaves mais importantes do intercâmbio cultural Oriente-Ocidente na História da China". Sobre esta afirmação, outros estudiosos podem continuar a discuti-la, emendá-la e apresentar as suas opiniões, mas, pelo menos no meu entender, a visão panorâmica de Fei Cheng Kang na investigação e a sua maneira de reflectir sobre as questões merecem a atenção do círculo científico.

De acordo com a exposição que acabei de fazer, pode-se verificar que na China, nos últimos anos, se registaram grandes progressos no estudo da História de Macau; e com estes estudos, chegou a ser esboçado já todo o percurso da História de Macau. Entretanto, persistem ainda muitas dificuldades nesta área.

DIFICULDADE I: NO LEVANTAMENTO DE FONTES

Os investigadores chineses têm feito grandes esforços no aproveitamento das fontes chinesas, o que obviamente não exclui mais descobertas neste sentido; muito pelo contrário, este tipo de trabalho é sempre necessário ser continuado. O problema é que, até hoje, parece que ainda não temos nenhum historiador na China que saiba português, pelo que, nos trabalhos dos investigadores chineses verifica-se uma dificuldade extremamente grande no aproveitamento directo das fontes portuguesas, o que não deixa de ser lamentável. Enquanto se não puder utilizar directamente as fontes portuguesas, fica claro que não é possível falar em estudar globalmente a evolução da história dos mais de 400 anos de Macau, nem será possível efectuar uma pesquisa aprofundada sobre algumas questões da maior importância surgidas no decurso da História de Macau. Por exemplo, sobre o exercício da soberania em Macau, os investigadores chineses e portugueses possuem opiniões diferentes. Segundo os investigadores chineses, está provado nas fontes chinesas que, antes de 1849, o governo chinês não estava sujeito a nenhuma restrição no exercício da soberania em Macau, e foram adoptadas, tanto na dinastia Ming como na dinastia Qing, medidas especiais para administrar o Território, sendo uma delas permitir aos portugueses fundarem o Senado para tratarem dos seus próprios assuntos. Corri a celebração do Tratado de 1887, os portugueses adquiriram a soberania sobre Macau, mas o seu exercício era limitado — nos termos do Tratado, sem a aprovação prévia da parte chinesa, Portugal não podia proceder a tratar da questão da soberania de Macau, tal como aliená-lo.Sobre esta mesma matéria, os investigadores portugueses retorquem que o facto de os portugueses começarem a exercer limitadamente a soberania sobre Macau constituiu um elo importante para a presença portuguesa no local. Sabe-se que, em 1887 ou 1849, os portugueses tentaram conquistar a soberania sobre Macau, mas falharam. Sobre este assunto, se os investigadores da História de Macau conseguirem fazer um levantamento de todas as fontes chinesas e portuguesas interessadas, fazer um estudo comparativo e, à luz da concepção do Direito Internacional de antes do século xix, proceder a uma análise, permitir-nos-ão ter um melhor conhecimento. Será muito proveitoso para o estudo da História de Macau se os investigadores chineses puderem ler os documentos portugueses, conservados em Macau durante os passados 400 anos, e as fontes sobre as relações sino-portuguesas que o governo português guarda.

DIFICULDADE II: NA AVALIAÇÃO DO PAPEL HISTÓRICO DE MACAU

Quanto às influências que Macau exerceu sobre a evolução da História da China, como as acima mencionadas, as versões são diversas: ou dizem que foi uma promoção positiva, ou vice-versa; ou que a promoção positiva foi fundamental e a negativa foi secundária; ou que impediu o surgimento e a evolução do capitalismo, ou ao contrário. Os pontos de vista estão claros, mas as análises parecem um pouco dogmáticas, faltando-lhes fortes suportes nas fontes, pelo que não são muito convincentes. Por exemplo, todos os investigadores dão muita importância ao "Sistema de Chicote Singular", uma reforma muito significativa para o sistema tributário --a substituição de impostos em artigos por impostos monetários --, considerando que a aplicação do Sistema beneficiou dos mais de cem milhões de taéis de prata introduzidos na China através de Macau. Para a sua justificação, os investigadores citaram uma estatística feita por um académico conhecido, Liang Fang Zhong. Só que, de acordo com essa estatística, incluída no texto "Comércio Internacional da Dinastia Ming e a Introdução da Prata", publicado em Zhong Guo Jing Ji Shi Ji Kang (História Socioeconómica da China, vol. 6, n.o 2), foi durante os 72 anos, compreendidos entre 1573 e 1644, que se introduziram, de Macau para a China, cerca de cem milhões de taéis de prata; mas a aplicação do "Sistema de Chicote Singular" foi no ano 1581, ou seja, 8 anos antes da data de partida da estatística de Liang. Será que a introdução daqueles cem milhões de taéis de prata foi concluída total ou maioritariamente nestes 8 anos?

É reconhecido por todos que, durante o período áureo do comércio de Macau, houve um grande fluxo de prata para a China, mas também é verdade que, na decadência, se registou perda do mesmo metal. Por isso, na minha opinião, quanto às matérias como a prosperidade e a decadência do comércio de Macau, o volume do comércio, a introdução e a perda de prata... os estudos sólidos têm ainda de ser feitos; se não, será tudo em vão quando se tentar explicar o papel do comércio de Macau no processo de acumulação primária de capital na Europa Ocidental ou as suas influências sobre a evolução socioeconómica na China. Penso que tanto o aprofundamento quanto as dificuldades do estudo sobre a História de Macau consistem exactamente no esclarecimento destas questões. Se assim for feito, tornar-se-á mais fácil a identificação da posição histórica de Macau. E para esse efeito, o uso das fontes portuguesas é indispensável. Caso contrário, as dificuldades parecem quase impossíveis de serem superadas.

* Director do Instituto de História Contemporânea da Academia de Ciências Sociais da China.

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