Poesia

O BINÓMIO PENSAMENTO - VIDA À LUZ DOS CLÁSSICOS CHINESES

José de Almeida Pereira Arêdes*

Assistimos a um progressivo desenraizamento do Homem que, em minha opinião, tem vindo a ocorrer na vida ocidental, e talvez não só, e que se caracteriza por uma esquizóide separação entre a mente e o corpo, o raciocínio e o sentimento, o entendimento e a sensibilidade, com o consequente alheamento dos reais problemas com que nos defrontamos no quotidiano, a saber, a ausência de alegria, a delapidação da Natureza, a agressividade nas relações do Homem consigo mesmo e com os outros, o desamor na nossa relação com tudo e com todos, a perda do sentido e da beleza da vida, e a progressiva desespiritualização do quotidiano.

As causas de tudo isto são múltiplas. Podemos socorrer-nos do mito hindu das Idades do Cosmos e, olhando o nosso tempo como o Kali-Yuga, ou Idade das Trevas, encontrar nesse mito uma consolidação para os nossos sofrimentos.

Ou podemos fazer o balanço da modernidade e talvez aí encontrássemos muitos méritos e muitos erros da civilização greco-judaico-cristã, com tudo o que isso implica de racionalidade e racionalismo, abertura ao mundo e ao Cosmos e tentativas de hegemonização e colonização política, cultural e religiosa, melhoria das condições de vida através da tecnologia e desenvolvimento de mortíferas armas de guerra, alargamento do campo de consciência com o nascimento do sentido da aldeia global e encerramento num feroz egoísmo que isola, entristece e empobrece espiritualmente.

Este estado de coisas — se o diagnóstico é correcto — leva inevitavelmente à interrogação: que fazer?

Por isso, é com encanto que descobrimos Kong Fu Zi (Confúcio) a dizer:

"Se uma pessoa não pergunta constantemente a si própria: que fazer? que fazer?, na verdade não sei que fazer com uma tal pessoa."1

Mas a pergunta "que fazer?" não pergunta apenas o que pode ou deve ser feito, não é o pedido do faminto que reclama um peixe, mas do faminto que quer aprender a pescar, em conformidade com o velho provérbio chinês.

E pescar é uma arte: é, em suma, a arte de viver.

E a arte de viver, para um povo tão sensível à arte como o povo chinês, é a suprema ambição da cultura, é a tarefa em que os seus pensadores se têm profundamente empenhado.

Com efeito, poderíamos caracterizar o espírito da Filosofia Chinesa como tendo em vista a realização do Homem. E qual é a maior realização de que o Homem, enquanto Homem, é capaz? Nada menos do que ser sábio!2

E ser sábio é conseguir realizar a identificação do indivíduo com o Universo. Para tal não é preciso abandonar o Mundo.

Por isso o objecto e o objectivo de toda a Filosofia Chinesa sempre foi o de tornar os seres humanos mais felizes, mais sábios, mais alegres, mais harmoniosos e integrados em si próprios, na família, na comunidade e no universo, pois a filosofia não deve servir para torturar as mentes e angustiar as existências, mas antes para propiciar bom humor e ironia sã.

Assim, e de acordo com a tradição chinesa, o estudo da filosofia não consiste numa actividade específica, distinta das demais, jamais será uma profissão, pois todo o Homem culto "deve ser" filósofo, isto é, deve ter (e na China Clássica tinha)a preocupação de reflectir sobre o seu fazer, independentemente da profissão que exerça. Por isso, o equivalente ao termo grego "Filosofia" é o ideograma Zhe (哲), composto por uma boca e um machado, que mostra bem a importância da unidade da palavra e da acção, do pensar e do agir correcto.

Assim, não é de estranhar que um dos paradigmas da cultura ocidental — refiro-me a Sócrates — seja evocado, como exemplo, num livrinho, hoje clássico, que é uma espécie de resumo para ocidentais da monumental History of Chinese Philosophy, escrita no final dos anos trinta e da autoria do Prof. Fung Yu Lan.

Nesse livrinho (A Short History of Chinese Philosophy) diz o falecido professor (citando um colega):

"Os filósofos chineses foram, na sua totalidade, diferentes graus de Sócrates. E isto porque a ética, a política, o pensamento reflexivo e o conhecimento formavam uma unidade naquele filósofo; nele, o conhecimento e a virtude eram inseparáveis. A sua filosofia exigia ser vivida: ele próprio era o veículo dessa filosofia. Viver em concordância com as suas convicções filosóficas fazia parte da sua filosofia. A sua ocupação consistia em treinar-se contínua e persistentemente para a pura experiência em que o egoísmo e o egocentrismo fossem superados, e assim alcançasse a unidade com o Universo.

Consequentemente, do ponto de vista cognitivo andava sempre às apalpadelas, e do ponto de vista conativo continuamente ensaiava, ou tentava ensaiar, novos comportamentos.

E uma vez que estes dois aspectos não podem ser separados, nele estava presente a síntese do filósofo no sentido original do termo. Tal como Sócrates o filósofo, na sua origem, não se ocupava da filosofia apenas durante as horas de expediente, nem era um sujeito poeirento e bolorento encerrado no seu estudo, sentado na periferia da vida. Com ele dificilmente a filosofia era apenas um modelo conceptual proposto à compreensão humana, mas antes um sistema de preceitos para uso prático do próprio filósofo; no limite, a sua filosofia confundia-se com a sua biografia."3

Esta espantosa declaração de um erudito chinês sobre Sócrates legitima o nosso próprio interesse pelos grandes filósofos chineses do período clássico e mostra que a apregoada unidade fundamental do espírito humano não é uma palavra vã e sem sentido, dando a impressão de que as grandes diferenças entre os humanos só se estabelecem em função do nível ou grau de consciência em que estes agem, a que estes chegam ou aspiram.

Isto por um lado.

Por outro, o depoimento transcrito como que descreve em poucas linhas a figura ideal do próprio sábio chinês.

E é "de" Sábio que gostaria de falar.

Melhor: é "com" dois Sábios que gostaria de dialogar [...].

Por isso colocaria a seguinte questão, em termos restritos:

— Como pode o pensamento clássico chinês ajudar-nos hoje a viver? e em termos mais latos:

— Como pode o pensamento e a vida de grandes figuras do passado ajudar-nos a construir o futuro vivendo harmoniosamente o presente?

Confesso que não tenho uma resposta, e apenas me proponho dar algumas achegas.

Comecemos por algumas precisões de carácter mais ou menos académico. Ao falar de "Clássicos Chineses" quero referir sobretudo dois homens ditos Mestres de duas das mais famosas correntes de pensamento e vida nascidas no solo cultural chinês: falo de Kong Fu Zi (Confúcio) e de Lao Zi. Falo de Confucionismo e de Tauismo, com tudo o que isso de mal entendidos, dificuldades, imprecisões, em suma, dificuldades de reconstruir o passado, dificuldade de comunicação com o Outro ou, menos metafisicamente, com os outros.

Viveram na dinastia Zhou (circa 1122-256 a. C.), mais propriamente nos períodos conhecidos por Época dos Anais da Primavera e Outono (722-481 a. C.) e Época dos Reinos Combatentes (475-221 a. C.).

De Kong Fu Zi se diz que viveu entre 551 e 479 a. C.

De Lao Zi se diz (sem unanimidade) que terá vivido ou no tempo de Confúcio pois se relata um hipotético encontro entre os dois, ou cerca de um século depois.

E se os textos da Escola Confuciana têm sido preservados, o mesmo se não pode dizer dos da Escola do Tau.**

Na verdade, houve mesmo um imperador que promoveu uma grande fogueira onde destruiu tudo o que encontrou de doutrinas que lhe desagradavam, tendo, oficialmente, apenas escapado as obras confucianas.

O que temos de certo, a propósito do Tauismo, é que em 1973, durante escavações realizadas em Mawangdui, província de Hunan, foi encontrado o túmulo do filho do Marquês de Dai — no seu tempo um pequeno Senhor Feudal — e nesse túmulo um manuscrito do célebre Dao De Jing (mais conhecido por Tao Te Ching), livro base da Escola Tauista, e que foi datado de fins do século III e princípios do século II a. C.

Seja como for, a verdade é que qualquer destes Sábios procurou equacionar a situação humana, qualquer deles se preocupou com o aperfeiçoamento humano, ou, talvez melhor, com o seu auto-aperfeiçoamento.

Mas de maneiras diversas. E de tal modo se houveram que Confúcio acabou por ser o representante do lado oficial, social e ético do ideal de vida na China, e Lao Zi o lado marginal, misterioso, natural e espontâneo desse mesmo ideal.

Vejamos, então, alguns traços do pensamento e vida do Mestre Kong Fu Zi.

Dos mais célebres textos do Confucionismo devemos destacar os chamados Quatro Livros que são constituídos pelos Diálogos (ou Analectos), o Grande Estudo (ou Grande Escola), a Harmonia Perfeita(ou Harmonia Central), e o Livro de Meng Zi (ou Mêncio), sendo a Harmonia Perfeita o aconselhado como introdução, e o Livro de Mêncio a obra de um dos mais célebres discípulos de Mestre Kong Fu Zi. Foi a partir deste conjunto de Clássicos que se formaram os chamados "Três Caracteres Clássicos" que eram uma espécie de Manual por onde as crianças na Escola aprendiam a ler, recitando-o em voz alta, com um ritmo que facilitava a memorização, tal como antigamente também as nossas crianças "cantavam" em coro a tabuada. Por aqui se vê que a filosofia (confuciana) era dada às crianças nâo só num batido feito com o leite materno, mas também confundindo-se com as primeiras letras.

Como poderia o Homem Chinês ser "naturalmente" filósofo?

Mas a abordagem dos textos clássicos não é fácil. E para nós, ocidentais, que desconhecemos a língua chinesa, e para mais a língua chinesa clássica, um dos maiores problemas com que nos defrontamos, ao ler as traduções é a sua diversidade e diferença. E, infelizmente, neste caso, diversidade e diferença não significam riqueza, mas confusão e dificuldade de acesso. Basta pegar em três ou quatro traduções para vermos que são versões e interpretações e que muitos dos termos não podem sequer ser traduzidos pois não existem conceitos equivalentes nas línguas modernas ocidentais.

Aliás, já o mesmo se passa relativamente aos textos clássicos da nossa própria tradição, como por exemplo os da Filosofia Grega ou do Antigo e Novo Testamento.

Todos se recordam de alguns vocábulos gregos que não se traduzem; todos se recordam da polémica dos primeiros Concílios na fixação do Texto Canónico.

Por isso gostaria de deixar já uma primeira achega que é uma advertência de dois investigadores e experientes viajantes das culturas.

Um é Alexandre Koyré que afirma:

"O que é mais difícil — e mais necessário — quando abordamos o estudo de um pensamento que nos é estranho, não é tanto aprender o que não sabemos aprender o que o pensador em questão sabe, mas antes esquecer o que sabemos ou julgamos saber."4

O outro é Mircea Eliade que diz:

"A análise de um cultura estrangeira revela aquilo que nela procuramos ou aquilo que nela já estamos preparados para descobrir."5

Que é então dado captar do ensinamento do Mestre ao não especialista?

Poderiamos dizer com Lin Yu Tang:

"O Confucionismo procura estabelecer uma ordem social racionalizada através da ética, com base no auto-aperfeiçoamento individual. Tende para uma ordem política cimentada por uma ordem moral e busca a harmonia política procurando aperfeiçoar a harmonia moral do próprio homem. O seu ponto de vista é claramente ético (...) [e] era também o seu positivismo, o seu agudo sentido de responsabilidade para com o próximo e a ordem social em geral que o distinguia do Tauismo. Fundamentalmente era uma atitude humanista, despojada de qualquer metafísica ou misticismo vão, interessado sobretudo nas relações humanas fundamentais, e não no mundo dos espíritos ou da imortalidade."6

Por estas palavras já se vê que Mestre Kong Fu Zi era um homem extremamente preocupado com o bem estar social, com a ordem e harmonia política sendo talvez um exemplo que no nosso tempo merece ser meditado, pois pretendia fundar a acção política no aperfeiçoamento e na exigência ética do Governante relativamente a si mesmo. O Governante devia ser justo para o Povo. A sua acção devia ser harmoniosa, equilibrada e honesta. Para isso o Mestre buscava na auto-exigência de rectidão a condição da rectidão governamental. A auto-cultura pessoal seria a base da ordem social e política nacional e internacional.

Numa separata do Livro dos Ritos que foi apensa aos já referidos "Quatro Livros" sob o nome O Grande Estudo ou a Grande Escola, como prefere o Padre Guerra, lê-se (ainda segundo a tradução deste Sacerdote): "Antigamente, quem queria fazer uma política esclarecida no Império, fazia primeiro um bom governo dentro do seu Estado. Para governar bem o seu Estado, ordenava antes a própria família; e para isso aperfeiçoava-se primeiro a si. Em vista deste aperfeiçoamento próprio, tratava de regular o seu interior, começando pela sinceridade nas intenções e antes de mais nada por um conhecimento aprofundado de tudo.

Este conhecimento aprofundado obtêm-se pela análise das coisas, que leva ao fundo da realidade. Daí se segue a autenticidade das ideias, e consequentemente a ordem no espírito, bem como o aperfeiçoamento próprio, a fim de poder depois ordenar a família, a seguir o Estado e finalmente o Império. Desde o Imperador ao homem do Povo, todos por igual devem ter o seu aperfeiçoamento como a coisa principal."7

Mas tudo isto era feito não em nome de um direito divino, mas de um humanismo total, pois, segundo as palavras do mestre, "a medida do Homem é o Homem".

Mas que Homem? Que é o Homem? Qual a sua natureza?

Naturalmente, o próprio Mestre não era um qualquer homem.

Primeiro porque pertencia à classe dos Letrados. E dentro dos Letrados a um grupo denominado Ru que usava um gorro especial e uma túnica diferente como símbolo da sua adesão às verdades da Tradição.

E daí que vem o nome da Escola que em chinês se chama Ru Jia, à letra, "Escola dos Letrados", sendo o nome Confucionismo invenção de ocidentais. Que era então um Ru?

Segundo palavras do próprio Mestre:

"Um Ru é alguém que cultiva a sua inteligência noite e dia para estar preparado para dar conselhos se lhos pedirem; cultiva a integridade e honestidade do seu carácter de modo a estar pronto quando for chamado; esforça-se por ordenar a sua conduta pessoal para estar nas devidas condições para ocupar o cargo. Tal é a sua independência!

Um Ru é discreto no vestir e cuidadoso nos actos; quando se apresenta em público inspira um temor reverente, e em privado é retraído; tal é a sua aparência!

Um Ru pode ser abordado com maneiras suaves, mas a força não o assusta; é afável, mas não pode ser obrigado a fazer o que não quer; pode ser levado ao patíbulo, mas não à humilhação; tal é a força do seu carácter!

Um Ru vive com os modernos, mas estuda os antigos; o que faz hoje será exemplo para as gerações seguintes; quando vive em época de caos político não solicita favores às autoridades superiores, nem é promovido pelo inferiores; ainda que viva em perigo, continua a ser dono da sua alma e não esquece os sofrimentos do povo; tal é o seu sentido de responsabilidade!

Um Ru amplia constantemente os seus conhecimentos; cultiva a sua vida continuamente e na privacidade não se desleixa; cultiva a beleza do seu carácter e é moderado nos seus hábitos; admira os que são mais inteligentes e é generoso com o vulgo; é sempre profundamente flexível; tal é a altura do seu espírito e a generosidade do seu carácter!"8

Não é isto um bom programa para qualquer aspirante a político?

No entanto este Ru não é um super-homem!

É apenas um exemplo do grande ideal confuciano que é o Homem Superior. Superior porque cultiva em si a verdadeira natureza humana que é o Ren, (仁), que deverá traduzir-se por "humanitarismo" para poder conservar na nossa língua o radical "humano" que é parte fundamental do ideograma composto pelo grafismo que significa "ser humano" (人) e pelo grafismo que significa "dois" (二). Daqui se vê que a vocação da natureza humana é a sociabilidade, a relação com os outros, ou, como disse Aristóteles, "o Antropos é um animal da Polis".

Mas que ideal é este do Ren (仁)?

Respondendo a Fan Chi, diz o Mestre:

"É amar os Homens." "E a sabedoria?" pergunta ainda o discípulo: "É conhecer os Homens."9 E noutra passagem: "Praticar o Ren é começar por si mesmo: querer elevar-se a si mesmo para elevar os outros; desejar para os outros o êxito que se deseja para si mesmo."10 Ou nestra outra, quando outra vez Fan Chi pergunta: "O que é o Homem de Ren ?" O Mestre responde: "Cortês e calmo na vida privada, diligente e sério na vida activa, leal nas suas relações humanas: tal ele é, tal ele continuará a ser, quer esteja entre os Bárbaros do Este quer entre os do Norte."11

Mas é claro que, para ser um Homem de Ren, é preciso começar por ser um bom filho ou filha, irmão ou irmã e bom cidadão.

Para Confúcio é no seio da família que, ao respeitar os Pais (a célebre piedade filial), se aprende a respeitar o príncipe, ao amar os irmãos se aprende a amar os outros. Ao criar filhos educados e respeitadores estamos a criar bons cidadãos.

(Podemos ver, talvez, neste ideal de Homem Superior o ideal grego dos Aristoi, aristocratas não por nascimento mas por auto-cultura, ou quase o ideal medieval de Cavaleiro, ou ainda o ideal de Cavalheiro, mais próximo de nós).

O Povo seria educado — e a educação é uma grande preocupação de Confúcio — através do exemplo de vida do Homem Superior.

Assim se compreenderia a resposta do Mestre a um rapaz rico, funcionário de um estado feudal, muito preocupada com a proliferação de ladrões e salteadores no País. Disse Confúcio: "Se tu próprio não amasses o dinheiro, poderias dá-lo aos ladrões e eles já não to tirariam." Ou ainda aquela outra resposta dada ao Barão Kang Chi quando este interrogou o Mestre sobre o Governo:

"Elevar ao poder os homens rectos e deixar que eles sirvam de exemplo aos inícuos: assim estes corrigir-se-ão."

Não serão estes pensamentos dignos de reflexão quando os jovens de hoje afirmam não acreditar nos valores morais depois de olhar para certas figuras públicas? Por isso se diz que o Mestre ensinava quatro coisas: literatura, conduta humana, autenticidade consigo mesmo e honestidade nas relações sociais, ao mesmo tempo que criticava a arbitrariedade de opinião, o dogmatismo, a intolerância e o egoísmo. São suas as seguintes palavras: "O que mais me inquieta ou preocupa é o seguinte: que me esqueça de cultivar o meu carácter, que descure os estudos, que não tenha podido seguir a via justa embora a conhecesse, e que não tenha podido corrigir os meus erros."

Parece, pois, haver nesta exortação ao respeito pelos valores éticos um sublinhar Kantiano do sentido do dever:

— Dever para consigo, porque o Homem de Ren jamais se encontra numa situação em que não tenha completo controle de si mesmo.

— Dever para com os pais, a célebre piedade filial que se poderia caracterizar nesta citação: "Reunir-se nos mesmos locais em que os nossos pais se reuniram; realizar as mesmas cerimónias que eles realizaram; tocar a mesma música que eles tocaram, homenagear quem eles homenagearam; amar os que eles amaram; em síntese: servir os mortos como se eles estivessem vivos e os ausentes como se estivessem presentes."

— Dever para com o Príncipe: uma espécie de Pai colectivo.

E disse quase Kantiano pois se para Imannuel Kant, filósofo da Aufklarung, o imperativo categórico moral, o dever pelo dever, é um fim em si mesmo, quase o mesmo se poderia dizer de Mestre Kong Fu Zi. A instância moral é efectivamente decisiva. Mas esta instância, ligada ao contexto político do tempo conturbado que então, como agora, se vivia, era simultaneamente um apelo ao respeito pela hierarquia feudal, e o excesso de acento tónico no respeito pela figura do Pai levou a que, num caso concreto, um pai, ao castigar um filho que o desrespeitara, chegasse ao homicídio, sem que posteriormente o Tribunal o considerasse culpado de acordo com o princípio da piedade filial.

Perversão própria dos Homens, que são incapazes de seguir os Mestres, dirão. E certo. Tal como no caso daqueles que em nome do Deus do Amor torturam e matam.

E isto é espantoso!

Por que é que os humanos pervertem os grandes princípios que os próprios humanos são capazes de elaborar e, em muitos casos, de ser deles exemplo vivo? Bastarão os enunciados éticos?

Se todos os seguissemos... Seriam.

Mas será a ética capaz de domar a natureza humana? Não serão, no humano, as tais inclinações para o egoísmo e para a violência e despotismo fruto de disposições naturais?

Não denunciou Nietzsche, entre nós, a máscara ética como disfarce para o insaciável desejo do poder? Não denunciou Freud a superestrutura ética como uma sublimação das pulsões primárias?

A nossa experiência cultural do Iluminismo do séc. XVIII com a sua vocação para a resolução racional de todos os problemas humanos mostrou-nos a necessidade de prudência na abordagem dos problemas da auto-cultura. E o resultado do desenvolvimento unilateral da mente vê-se claramente hoje quando se pode dizer — à boa maneira budista — que a mente é apenas mais um dos sentidos e que, por isso, deve ela própria estar sob controle.

E será o controle ético suficiente?

Será a educação — que Mestre Kong Fu Zi tanto prezava — solução para a correcção da imperfeita natureza humana?

Se o objectivo é, como disse, viver melhor consigo, com os outros, e com a Natureza, se ser sábio é identificar-se com a ordem do próprio Universo, importa ver, e apenas também de passagem, que ordem é essa a que o Homem deve adequar-se.

A posição de Mestre Kong Fu Zi comporta naturalmente uma certa dose de utopia. Do mesmo modo que defendia a existência de uma natureza humana superior (Ren), falava de uma ordem social e natural superior: o Li. O Li era como que um princípio racionalizado de uma vasta ordem, de um vasto conjunto "objectivo" de prescrições do comportamento envolvendo o ritual, cerimónias, boas maneiras, e os procedimentos que ligam os seres humanos e os espíritos no seu trabalho conjunto na família, na sociedade e nas relações com o sagrado ou numenoso.

Poder-se-ia dizer que o Li, mesmo quando referido apenas às funções ou negócios humanos no sentido estrito, ainda envolvia uma dimensão sagrada, de tal modo que o ritual, que o Mestre tanto respeitava, nunca era inteiramente profano, mas, antes, supunha sempre como que uma atmosfera de sacralizaçâo do quotidiano.

Isto parece aliás ser uma característica da mentalidade do Antigo em que deuses e homens partilhavam o real, às vezes com inveja e competição, outras sem inveja e em cooperação, tal como acontecia no próprio Ocidente e que me parece ser uma espécie de poético e fascinante panteísmo sem rupturas Criador/ Criaturas, antes uma partilha deste imenso mar de beleza que é a contínua criação, nascimento e morte de tudo quanto "é ser e não ser" no Universo e, se calhar, no não-Universo.

Mas para não nos alongarmos mais neste outro imenso mar que é a vida-pensamento de Confúcio, e antes de nos demorarmos também um pouco nesse outro fascinante mundo do Tau, apenas duas citações que me são particularmente caras, testemunho da grandeza do Mestre. Ei-las:

"Saber o que se sabe e o que não se sabe é a característica daquele que sabe."

A outra:

"Não é a verdade que torna grande o Homem, mas o Homem que torna grande a verdade."

Tal é o testemunho daquele que, usando a expressão de Mêncio, poderia ser chamado um "Cidadão do Universo".

E agora falemos do Tauismo.

É uma das Seis Escolas Clássicas do pensamento chinês; a saber:

Yin-Yang Jia

Yin-Yang Jia

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— A Escola do <I>Yin-Yang

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Ru Jia     

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 — A Escola dos Letradosou Confucionismo

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Mo Jia     

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 — A Escola Moista de Mo Zi ou Mo Di

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Ming Jia   

 — A Escola dos Nomes

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Fa Jia     

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 — A Escola Legalista

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Dao Jia    

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 — A Escola Tauista, de Lao Zi e Zhuang Zi.

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Acerca do Tauismo, que é a religião autóctone da China, gostaria de dizer que há que distinguir a Dao Jia — Escola do Tau, no sentido de corrente filosófica — e a Dao Jiao, esta sim, o Tauismo enquanto religião, mas uma religião muito especial, à qual a categoria ocidental "religião" não se aplica exactamente, como de resto acontece com muitas outras categorias do nosso pensamento que, quando aplicadas sem mais à cultura chinesa apenas revelam um "europeuocentrismo" que nos dificulta a compreensão da diferença, conforme já disse antes.

O Tauismo-religião foi a base da investigação da Natureza e o ponto de partida da ciência chinesa que, conforme Joseph Needham demonstrou, era já avançadíssima, até nas suas realizações técnicas, enquanto o Ocidente europeu ainda vivia na barbárie. Até ao Renascimento e Idade Moderna, os Chineses detinham um avanço tecnológico tal sobre a Europa que, em muitos casos, as mesmas descobertas foram realizadas por nós com cinco e mais séculos de atraso.

O Filósofo Chinês, contrariamente ao que aconteceu no Ocidente, cujos filósofos depois de Platão parecem ter perdido a capacidade de usar os mitos, a poesia, as metáforas e os aforismos para expressar o seu pensamento, tem um discurso que é, regra geral, menos articulado e árido que o nosso. Grande parte do encanto deste género de literatura advém do seu estilo que é extraordinariamente sugestivo, mais próximo da linguagem pictórica que da linguagem matemática.

A pintura chinesa, produzida sob a influência do Tauismo e do Budismo Chan (mais conhecido no Ocidente pelo nome japonês Zen), Budismo que resultou do modo como o Tauismo assimilou o especulativo Budismo indiano, sugere mais do que diz, apresenta e aposta mais no vazio que no preenchimento do espaço pictórico deixando ao que a contempla um convite à criatividade da interpretação.

Na Filosofia tauista acontece o mesmo. Por isso, em vez do discurso lógico, rigoroso e cheio de definições e conceitos, contam-se histórias, apresentam-se parábolas, oferecem-se metáforas.

Deixa-se ao intelecto consciente e ao psiquismo inconsciente do discípulo espaço para meditação.

O objectivo não é conhecer intelectualmente teorias e doutrinas, mas meditar e reflectir para descobrir o saber e alcançar discenirmento.

Assim, começo com uma pequena história de Zhuang Zi:

"No Oceano Setentrional encontra-se um peixe chamado Kun, cujo comprimento é de vários milhares de li (mais ou menos 500 metros). Este peixe transforma-se num pássaro chamado Peng; o dorso do pássaro estende-se por vários milhares de li. Quando o pássaro se eleva e voa, as suas asas são como as nuvens do céu. (...) Quando se dirige para o Oceano Meridional faz saltar a água ao longo de 3 mil li. Sobe em espiral, sustentado pelo ar ascendente. (...) Uma cigarra e um pombo riram-se (ao ouvir isto) do pássaro Peng dizendo: Nós subimos rapidamente e voamos e podemos posar no freixo ou no castanheiro. Por que é que há-de ser necessário elevar-se até 90 mil li para se dirigir para o Sul? Mas que sabem estes dois pequenos animais? Um conhecimento pequeno não é comparável a um grande, nem uma existência curta a uma longa."12

Tenho para mim que sou uma cigarra atrevida que ri alarvemente ao olhar para o Grande Pássaro do Tauismo. E talvez por isso, porque a ignorância é atrevida, que me afoito a falar quando o que devia fazer era calar-me.

Conforme já disse antes, fala-se da Dao Jia e da Dao Jiao. Mas falar de filosofia e de religião a propósito de Tauismo é extraordinariamente enganoso pois o Tauismo não é um sistema de conceitos nem um sistema de crenças. O "Tauismo filosófico" não é para eruditos e intelectuais, enquanto o "Tauismo religioso" seria para as massas.

Obviamente que também existem conceitos no pensamento tauista, e crenças e superações na religião tauista. Poderemos por isso julgar o Tauismo? Imaginemos o que diria da religião cristã um tauista que apenas visse o cortejo de pagadores de promessas rastejando em sangue até ao santuário de Fátima! Teria o direito de confundir Cristianismo com auto-punição?

Todas as formas humanas de representação do Mundo e do Sagrado têm a sua circunstancialidade. E, se calhar, todas têm a tripla componente devocional, mística e gnóstica. Mas, enquanto no Ocidente se tem reforçado a componente devocional e intelectual (com toda a panóplia de teologias que se conhece), ignorando ou reprimindo (e receando) a componente mística e gnóstica, parece que a religião chinesa não despreza nenhuma dessas facetas, e privilegia mais a componente experimental e vivencial que a intelectual/mentalista.

Assim, e contrariamente ao que muitas vezes se diz, o Tauismo não está morto; apesar de todos os esforços de séculos para o liquidar, está bem vivo no seio do povo e, creio bem, entre grupos esotéricos que continuam a transmitir o ensinamento oral de Mestre a Discípulos.

Mas não é preciso ir tão longe. Todos conhecem, pelo menos de nome, a acupunctura: depois de tantos anos de desprezo, a medicina ocidental finalmente aceitou-a. Todos conhecem os Bonzai. Não são invenção japonesa (apesar do nome). São um exemplo do modo como a paciência chinesa lida com a natureza. Ora: ambos são criação tauista.

O Tauismo vive o dia-a-dia com as pessoas. E uma das razões por que a categoria mental "religião" criada no Ocidente não se aplica ao Tauismo é esta: o termo religião que para uns deriva de relegere, que significa respeitar, prestar culto, e, para outros, deriva de religare que significa religar, unir, supõe justamente uma ruptura e uma dicotomia dos planos do sagrado e do profano. A religião é, então, como se vê entre nós, algo de uma outra esfera, algo de especial que se faz, diria, um sítio onde se vai. E esta é a grande, radical e fundamental diferença: o Tauismo é uma ou a religião do quotidiano; o quotidiano é sagrado, deuses, demónios e homens são todos filhos do mesmo Tau e apenas diferem em grau de poder.

Mas esta força que faz as potências do Sagrado (deuses e demónios) é inerente a cada ser. A transcendência não é característica de um espírito separado da matéria, mas é uma espiritualização da dupla matéria-energia que se designa por Qi ou Ki (conforme as escolas de romanização dos caracteres).

Por isso, no Tauismo, é o corpo que ao participar numa acção cíclica prolongada e repetida se transforma, transmuta e purifica.

Por isso os deuses populares não são, como para o Confucionismo, homens virtuosos divinizados após a morte, mas aqueles — quase diria com Camões — "que por actos calorosos se vão da lei da morte libertando".

Como? Um exemplo:

O divino Senhor Guan é modelo de lealdade e coragem, incarnação do espírito de cavalaria, protector da Dinastia Manchu, patrono dos comerciantes. É representado a cavalo, com uma alabarda à mão, e segurando um livro clássico. Ora este Senhor foi morto pelo inimigo mercê de uma traição. Seria de esperar que as suas várias almas se dissipassem após a sua morte. Mas não. Quando o rei de Wu dava um banquete em honra de um tal Lu Meng, que havia capturado o herói, o espírito do Senhor Guan manifestou-se, apoderou-se do seu inimigo e obrigou-o a falar como se fosse o próprio Senhor Guan. O que se ouviu foi um grande louvor ao falecido e insultos ao rei, após o que o tal Lu Meng caiu morto!

O Senhor Guan vingara-se... e eis que se tornou merecedor de culto!

Outro exemplo, que toda a gente conhece de Macau:

A bela Mazhu, patrona das gentes do mar, dos viajantes, das mulheres e das crianças, a célebre A-Má que tem Templo na Barra. Quem não se lembra?! Filha de um pobre pescador, desde pequena se interessou apenas pelas coisas santas: em vez de brincar às bonecas, fechava-se em casa a recitar os livros sagrados. Conhecia e praticava a meditação, ficando longas horas imóvel, enquanto as suas almas superiores vogavam pelo espaço. Um dia, durante uma grande tempestade, o seu espírito correu em auxílio do pai e dos irmãos que naufragavam no alto mar. Estes, no momento mais crítico, viram aproximar-se uma grande figura branca que, pegando nas cordas do barco, os conduziu a porto seguro.

Infelizmente, nesse momento, a mãe da jovem, irritada com tanta passividade abanou-a para a fazer sair daquele estado letárgico. Um instante de desconcentração foi o suficiente para que o seu espírito vacilasse, e o desastre ocorresse: já não conseguiu salvar o pai; só os irmãos chegaram a bom porto. Uma vez em terra, os irmãos contaram o sucedido e a mãe reconheceu o seu erro.

Chegada à idade casadoira, Mazhu fez voto de castidade e não casou. Alguns anos mais tarde faleceu. E apesar de ter morrido virgem, o que é considerado uma sorte deveras lamentável, foi divinizada. O seu culto é famosíssimo na província de Guangdong, onde Macau se situa.13

Esta última história coloca-nos no centro do complexo que é a Filosofia — Religião — Tauismo.

Vejamos os seus elementos: um ser humano (uma mulher: aqui faço notar que se o Tauismo tivesse de eleger um deus único nunca seria o Pai, mas a Mãe) que pratica a meditação extática (e é conhecida a importância desta prática nas chamadas "religiões orientais"), que sai do seu corpo e auxilia os seus semelhantes, que lamentavelmente morre virgem, e que, devido ao poder demonstrado, é divinizada pelo povo. Tem templos e tem culto. Isto é Tauismo.

Mas isso é um conjunto de superstições!, dirão.

Cuidado, pois o que suja o homem não é o que entra pela sua boca, mas o que dela sai!

O Tauismo tem uma forma popular. É uma verdadeira religião do Povo. O Mestre Tauista que se encarrega de funerais, vive no meio da Comunidade, participa da sua vida, das suas festas, é um deles, mas, se for preciso, saberá por os demónios na ordem!

São muitas as histórias, agora até em banda desenhada, que excitam a imaginação popular e escondem verdades tremendas. São muitas as festas (como as do Ano Novo Chinês) em que as imagens dos Três Imortais decoram as portas das casas.

O Mosteiro Tauista (hoje transformado em curiosidade arqueológica e turística) só aparece depois da influência budista.

Mas, a par destes Mestres, que através da sua medicina naturista curam doenças do corpo, e que através dos seus exorcismos tratam dos demónios das almas das gentes, existem os eremitas que procuram a imortalidade. E muita gente há que se ri disto. A imortalidade corporal! Será corporal? E que dirão os mesmos da crença cristã da ressureição dos corpos no Juízo Final?

Por tudo isto já se vislumbra a complexidade do Tauismo. Mas não é tudo. Nem sequer a maior parte.

Tentemos pois espreitar o Corpo do Tau.

O Dao De Jing é uma pequena e difícil obra composta por cerca de 5000 caracteres. Dos três ideogramas que formam o seu título só o último (Jing) é fácil de traduzir: significa livro ou obra clássica.

Já com o Tau a questão é mais complicada. Muitos têm traduzido por Via, Caminho, Logos, Élan Vital. Mas que significa exactamente?

Diz o Mestre Lao Zi:

"Há qualquer coisa indeterminada, pré-existente ao Céu e à Terra. É inaudível e vazia, independente e imutável. Circula por toda a parte, mas não se deixa apanhar. Podemos considerá-la a Mãe do Céu e da Terra. Como não conheço o seu nome, designo-a por Tau.

Esforço-me por lhe chamar 'grandeza'.

A grandeza implica extensão. A extensão implica afastamento. O afastamento implica retorno.

O Tau é grande. O Céu é grande. A Terra. é grande.

O Homem é grande. É por isso que o Homem é um dos quatro grandes do mundo. O Homem imita a Terra. A Terra imita o Céu. O Céu imita o Tau. O Tau não tem outro modelo que ele próprio."

Dao De Jing, XXV.

E ainda:

"O Tau (ou Via) que pode ser procurado, não é o próprio Tau; o Nome que pode ser pronunciado não é o seu nome adequado. Sem nome representa a origem do Céu e da Terra; com nome constitui a Mãe dos dez mil seres (ou noutra tradução: O Vazio — o não ser — é usado para exprimir o estado existente antes do nascimento do Céu e da Terra. Realidade —o ser — é usado para exprimir o estado em que os Dez mil seres têm uma existência individualizada).

Por isso, quando a Mente alcança o estado do Vazio, o enigma pode ser compreendido; quando a Mente permanece no estado da Realidade, os limites podem ser alcançados."

Dao De Jing, I.

O Tauismo — na sua dimensão mais oculta —já foi comparado aos Mistérios da Antiguidade, de que são exemplo os célebres Mistérios Dionísicos, na Antiga Grécia, e acerca dos quais praticamente nada se sabe.

O Tau é pois o icognoscível, o vasto, o eterno. Vazio indiferenciado é Mãe do Cosmos; não — vazio; é sustentáculo de todos os seres. É a união de todos os contrários que se manifesta em perpétuo devir. Para o Adepto, o Iniciado, é o Caminho e ele próprio, pois para o Homem a via do Tau passa por si próprio e, se em última análise, tudo é UNO e UM, o Caminho, o Caminhante e a Meta coincidem.

O Tauismo é a proposta mais humana que conheço de o Homem ser Deus sendo Homem.Ou seja: nunca pregando — o Mestre ensina pelo silêncio —, rindo-se do moralismo confuciano, exaltando a alegria espontânea de viver, a frugalidade, a ironia, o desapego ao poder, exorta o Homem suficientemente lúcido para o procurar — pois o verdadeiro sábio não se oferece, espera que o procurem —, exorta o Homem lúcido a transmutar alquimicamente o Chumbo do seu pequeno "eu" em ouro cósmico.

Como? Cultivando o De.

E o De é o outro conceito que não tem equivalência. Muitos tentaram traduzi-lo por "virtude", não no sentido moralizante da Escola Confuciana, mas no sentido renascentista de virtus, isto é, poder, capacidade. Mas a palavra virtude tem uma raiz masculina: vir, de onde nasceu o viril. Ora, o que é exaltado no Tau é o feminino, embora a Misteriosa Mãe aja pela união do Yin (feminino) e do Yang (masculino). Tem sido também traduzido por natureza, no sentido de constitutivo intrínseco, ou ainda por integridade, que significa a totalidade do ser, quer no sentido chamado positivo, quer no negativo.

Como, então, seguir o Tau e o De?

Como seguir o Caminho e realizar a nossa natureza?

Diz o Mestre que a auto-cultura é o que de mais importante existe e afirma:

"Aquele que conhece os outros é avisado; aquele que se conhece a si mesmo é iluminado. Aquele que vence os outros é forte; aquele que se vence a si mesmo é poderoso. Aquele que sabe bastar-se é rico. Aquele que se aperfeiçoa a si mesmo é resoluto. Aquele que permanece fiel à sua natureza original dura longo tempo. Aquele que não se aliena no quotidiano alcança a imortalidade."

Dao De Jing, XXXIII.

Mas isto não significa a fuga do Mundo. Significa apenas, como disse Mestre Eckhart, gnóstico alemão do séc. XIII, que "o Homem Exterior pode exercer uma actividade, e o Homem Interior permanece, apesar disso, completamente desapegado e impassível." 14

Porque o Adepto Tauista quer passar pelo mundo, quer mesmo prolongar pelo máximo de tempo possível a sua presença neste mundo, mas sem deixar traço de si. Na verdade, e talvez contrariamente à nossa ansiosa pretensão de nos afirmarmos, enquanto eu efémero e ignorante, nas coisas deste mundo, o que logo origina inveja e malquerença, não será preferível agir sem nos apegarmos à obra produzida? Não será preferível, em vez de fogo que assusta e logo desencadeia reacções de defesa, ser água que mole e suavemente vai vencendo após obstáculos?

Diz o Mestre:

"A suprema capacidade é como a água que a todos favorece e não rivaliza com ninguém.

Ocupando a posição que todos desprezam, está mais próxima do Tau."

Dao De Jing, VIII.

Mas o Ocidente — Yang de sua natureza — tem nutrido mais a força directa que o contorno torneante; mais o cheio que o vazio; mais o ser que o não ser.

Assim diz o Mestre Lao Zi:

"Trinta raios convergem para o centromas é o vazio intermédio que faz andar o carro.

Modela-se a argila para fazer os vasos,

mas é do vazio interior que depende o seu uso.

Uma casa está furada por portas e janelas,

e é o vazio que a torna habitável,

O ser dá as possibilidades,

mas é o não ser que as utiliza."

Dao De Jing, XI.

E esta noção conduz-nos a uma questão tão central quanto mal compreendida: a chamada quietude do não-agir, e a utilidade do inútil.

Já antes, a propósito da jovem Mazhu vimos que a sua quietude era tudo menos passividade. Mas como pode o cego ver a luz? Se os olhos interiores de nós estão fechados, como ver para além do imediato?

A aparente passividade, o quietismo, é na realidade um grande movimento. Mas noutro plano. Através da prática da meditação extática, através de um Ioga que transforma, sem frustar, as energias (o célebre Qi ou Ki) de baixa vibração em energias de alta vibração, temos uma proposta seríssima de transmutar a natureza humana sem a reprimir através de códigos morais. Talvez assim se consiga realizar o que Fernando Pessoa chamava "a mais civilizada das ciências, a ciência da inacção".15

É assim que, numa concepção unitária da alma e do corpo, do espírito e da matéria, o monge é convidado a utilizar o seu desejo erótico para alcançar as mais sublimes e elevadas realizações. Analogamente ao Mestre Cristão que afirmou que "só quem nascer outra vez entrará no Reino do Céu", o Mestre Tauista, numa filosofia-religião que não faz da repressão sexual a base do seu ensinamento, apela à prática da concentração, da meditação e do Ioga respiratório para alimentar os princípios vitais, os conduzir através dos canais subtis do corpo e, fazendo nascer o Feto Imortal, regressar, em vida, ao seio do Tau, viajando, sem sair de casa, pelos espaços sem fim, vivendo a experiência da Luz Infinita ou, se preferirem, a experiência da Consciência Supraconsciente que não pode ser dita por palavras.

O Tau é, portanto, vasto, como o Mar. O Mar agita-se, estando quieto. Transforma-se, sendo o mesmo. Assim a vida, assim a morte.

Valerá pois a pena levar demasiado a sério o bom e o mau? O belo e o feio? O lucro e a perda? Quem sabe ver no eterno fluxo do sucesso e do insucesso, no eterno movimento das marés a eterna manifestação do Tau, não vive angustiado.

Por isso diz o Mestre:

"Abandonar o estudo é tirar-se de preocupações. Pois, em que é que diferem o sim e o não? Em que é que diferem o bem e o mal?"

E Zhuang Zi secunda o Mestre com esta saborosa história:

"Era uma vez um pobre agricultor que tinha um cavalo. Certo dia o cavalo fugiu para os montes deixando o agricultor sem um precioso instrumento de trabalho. Nessa noite os vizinhos vieram lamentar a sua má sorte, mas ele apenas respondeu: 'Como é que eu sei que é má?'

Passados alguns dias o cavalo regressou na companhia de três éguas. Perante isto, os vizinhos foram de novo visitá-lo a fim de o felicitarem.

O nosso agricultor apenas respondeu:'Como é que eu sei que é boa?'

No dia seguinte, ao tentar montar uma das novas éguas, o filho do agricultor caiu e fracturou uma perna. De novo os vizinhos vieram lamentar a má sorte do rapaz e do pai, mas o nosso amigo apenas respondeu: 'Comoé que eu sei que é má?'

Estava o rapaz imobilizado quando vieram os emissários do Príncipe recrutar homens para o exército. Dado o seu estado de saúde, o rapaz foi dispensado. Eis que os vizinhos voltam para dar os parabéns. Responde o sábio agricultor: 'Como é que eu sei que é bom?' "

Assim a visão tauista da vida, uma unidade de contrários em perpétuo devir tão ao gosto de Heraclito de Éfeso, grego do séc. IV a. C., e que está bem patente na seguinte passagem do Dao De Jing (II):

"Todos consideram o belo como belo,

e nisso está a raiz do feio.

Todos consideram o bem como bem,

e nisso está a raiz do mal.

O ser e o não-ser engendram-se mutuamente,

o fácil e o difícil completam-se,

o longo e o curto engendram-se mutuamente.

Eis porque o Sábio adopta a táctica do não-agir

e ensina sem palavras."

Mas sem palavras tenho eu estado.

E o Mestre diz:

"Aquele que fala não sabe; aquele que sabe não fala."

Dao De Jing, LVI.

A conclusão é fácil de tirar.

Assim, e para terminar, o que faço votos seja o início de uma viagem ao Misterioso Vale do Tau, gostaria de apresentar uma pequena história de Zhuang Zi, na tradução de Silva Mendes, filho de Macau:

ZHUANG ZI E A BORBOLETA

    Uma noite em que estive meditando 
    Horas longas nas cousas deste mundo, 
    Pouco a pouco me veio um sono brando 
    E, logo após, um sonho tão jucundo, 
    Exquisito, tão leve e extravagante, 
    Que só eu, mais ninguém já teve assim: 
    Sonhei que era uma lépida e elegante 
    Borboleta... E da dália, do jasmim, 
    Do cravo, dojunquilho, da violeta, 
    Tempos e tempos, uma vida inteira, 
    Andei eu, verdadeira borboleta, 
    De pouso em pouso, ali, numa doideira, 
    Sobre o nectar dulcíssimo das flores. 
    E, com outras brilhantes companheiras, 
    Na estação doce e quente dos amores, 
    Montes percorri, campos e ribeiros, 
    Ao sabor das loucuras volitando. 
    
    Tal qual estou dizendo. E até me lembro 
    Que, numa tarde muito fria, quando, 
    Sol procurava, em meados de Setembro, 
    Um vento tão gelado de repente 
    Me assaltou, e tão doente me senti, 
    Tão mal, tão mal, o corpo tão dormente, 
    Que logo ali sobre um jasmim morri! 
    
    Despertei; e acordado, por instantes, 
    Ainda insecto morto me julguei! 
    Que sonhos tem a gente extravagante! 
    Sonhos!? — Que fosse sonho acreditei 
    Na ocasião; porém depois e agora, 
    Por muito que cogite — e cogitado 
    Tenho eu — no que tudo aquilo fora, 
    Vejo só que é um caso emaranhado... 
    
    Justifico: é que a minha convicção
    De existir como insecto foi tão firme, 
    Como antes tinha sido a de sentir-me
    Um bímano, de humana geração. 
    E, portanto, era eu homem e sonhei
    Que era uma borboleta? ou esse insecto
    Era e sou e, por erro de intelecto, 
    Me julgo homem sem o ser?! — Não sei... 

NOTAS

1. CONFÚCIO, Diálogos (Analectos), XV, 15

2. FUNG Yu Lan, A Short History of Chinese Philosophy, Collier MacMillan, p. 6.

** N. E.: 道, Dao (em pinyin), origem do derivado Tauismo, ou Taoísmo, será aqui grafado Tau.

3. Idem, p. 10.

4. KOYRÉ, Alexandre, Mystiques, Spirituels, Alchimistes du XVIéme Siècle Allemand, Paris, Gallimard, p. 46.

5. ELIADE, Mircea, Le Yoga, Immoratlité et Liberté, Paris, Petite Bibliothèque, Payot, p. 5.

6. LIN Yu Tang, The Wisdom of Confucius, trad. castelhana, La Sabiduria de Confúcio, Buenos Aires, Siglo Veinte, p. 13-4.

7. GUERRA, Joaquim A. de Jesus, S. J., Quadrivolume de Confúcio, Macau, Jesuítas Portugueses, 1984.

8. LIN Yu Tang, op. cit., p. 13-4.

9. CONFÚCIO, Entretiens, XII, trad. Anne Cheng, Paris, Du Seuil, 1981.

10. Idem, VI, 28.

11. Idem, XII, 19.

12. TOBOUANG Tseu, Oeuvre Complète, Gallimard, Unesco. vol. 1, p. 28-9.

13. SCHIPPER, Kristofer, Le Corps Taoiste, Fayard, 1982, p.56-60.

14. ECKHART, Mestre, Oeuvres de Maîtres Eckhart: Sermons, Traités, [Paris], Gallimard, 1987.

15. PESSOA, Fernando, Sobre Portugal, [Lisboa], Ática, p. 82.

* Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

desde a p. 261
até a p.