Poesia

LEIBNIZ, JESUÍTAS, YI JING: O IMPACTO DA CHINA NO PENSAMENTO MODERNO EUROPEU

Fred Gillette Sturm*

"Gottfried Wilhelm Leibniz." Li Zhi Yue. Aguarela e lápis sobre cartão, 1996.

Joseph Needham, no segundo volume do seu monumental estudo Science and Civilization in China (Ciência e Civilização na China), revela um interesse extraordinário pela semelhança aparente entre certas posições filosóficas chinesas, mais particularmente a posição do Neo-Confucionismo da escola de Cheng Zhu, e o movimento moderno europeu conhecido como Filosofia do Organicismo. O autor fala-nos deste facto de uma forma algo desenvolvida, em três secções diferentes: a primeira referente a Dong Zhongshu1, a segunda em relação aos apêndices ao Yi Jing (易經)2, e a terceira sobre o Neo-Confucionismo da Dinastia Song3. Em cada parte, ele refere-se à correspondência trocada entre o filósofo alemão Leibniz e alguns jesuítas da missão chinesa do fim do século XVII e princípios do século XVIII, sugerindo que a semelhança é mais do que mera coincidência, tendo Leibniz como ponte intelectual. Na primeira destas três passagens Needham escreve o seguinte:

"O maior de todos os pensadores chineses, Zhu Xi, no século XII (d. C.), desenvolveu uma filosofia que se revelou mais próxima da filosofia organicista do que de qualquer outra coisa dentro do pensamento europeu. Para trás, ele tinha o total conhecimento do pensamento coordenativo correlativo e à sua frente tinha Gottfried Wilhelm Leibniz. Neste trabalho não é possível fazer mais do que uma breve referência ao grande movimento da nossa época relativo a uma rectificação do universo mecanicista de Newton através de uma melhor compreensão do sentido da organização natural. (...) Com afirmações de uma aceitabilidade variável, passa por todas as investigações modernas sobre a metodologia e o quadro internacional das ciências naturais. (...) Agora, se esta linha for traçada no sentido inverso, chegamos a Hegel, Lotze, Schelling e Herder até Leibniz (tal como Whitehead constantemente afirmava) e depois parece desaparecer. Mas não terá sido assim, em parte porque Leibniz tinha estudado as doutrinas da escola neo-confuciana de Zhu Xi (...)? E não seria melhor examinar se alguma coisa dessa originalidade que lhe permitia contribuir de uma forma radicalmente nova para o pensamento europeu era de inspiração chinesa?"4

Ele conclui a terceira parte da seguinte forma:

"Proponho para análise posterior a perspectiva de que a Europa deve ao naturalismo organicista chinês, o qual se baseia originalmente num sistema de pensamento correlativo, levado a discussões brilhantes já pelos filósofos tauistas do século III (a. C.), e sistematizado nos pensadores neo-confucionistas do século XII, um estímulo extraordinariamente importante nos esforços sintéticos que se iniciaram no século XVII para ultrapassar a antinomia entre o vitalismo teológico e o materialismo mecanicista. Os grandes triunfos do início das ciências naturais 'modernas' foram possíveis com o surgimento de um universo mecanicista (...) mas estava para vir o tempo em que o crescimento necessitava da adopção de uma filosofia mais organicista (...) e quando ela chegou, descobriu-se que uma linha de pensadores filosóficos tinha preparado o caminho — desde Whitehead a Engels e Hegel, de Hegel a Leibniz — e depois talvez (...) os fundamentos teóricos da ciência natural 'europeia' mais moderna devam mais a homens como Zhuang Zhou, Zhou Dunyi e Zhu Xi do que o mundo possa pensar."5

Gottfried Wilhelm Leibniz ocupa, de facto, um lugar muito especial na história da filosofia moderna europeia. Ele é ȯ primeiro maior filósofo alemão do período da pós-Renascença. Apesar de ser um autor prolífero, os seus escritos apareciam de uma forma esporádica e cobriam um espectro tão vasto de assuntos e de interesses que tem sido impossível categorizá-lo correctamente nas histórias da filosofia europeia. Ao traçarmos a corrente principal do pensamento continental durante os séculos XVIII, XIX e XX, Leibniz é normalmente interpretado como o expoente de uma posição racionalista, a qual também serviu Kant na elaboração de filosofia crítica, e que continuou a fornecer uma estrutura para o desenvolvimento do idealismo pós-kantiano desde Fichte até Hegel. Leibniz foi "redescoberto" no nosso século. Ele é aclamado como o pioneiro no desenvolvimento tanto da lógica simbólica como do sistema binário, os quais constituem a base da programação moderna dos computadores. Ao mesmo tempo ele é visto como um precursor das relações gémeas do Movimento Circular de Viena, isto é, a criação de uma linguagem formal, dentro da qual as linguagens das diferentes ciências podem ser traduzidas, e a criação de uma Enciclopédia da Ciência Unificada. Houve uma segunda "redescoberta" de Leibniz neste século por Whitehead e Needham que o vêem como a mente filosófica que tornou possível o aparecimento das ciências biológicas durante o século XIX, e que permanece como a fonte principal de todas as filosofias modernas vitalistas e organicistas. Não é exagerado afirmar que, dentro da herança europeia, a sua mente foi uma das mais criativas da história intelectual moderna e que, directa ou indirectamente, ele ajudou a traçar muitos dos caminhos que essa história tomou. Até que ponto é que ele foi influenciado, se é que o foi, pelo pensamento chinês? Será que existem argumentos suficientes para sustentar a tese de que muito do que é novo na ciência europeia e na filosofia moderna representa uma apropriação de ideias que são basicamente chinesas?

Leibniz nasceu em 1646, dois anos depois do nascimento da dinastia Qing. Morre 70 anos mais tarde em 1716. A época da sua vida alinha com o cenário chinês do período inicial do desenvolvimento da aprendizagem Qing, a fase que Liang Qichao, no seu livro Intellectual Trends in the Ch 'ing Period (Correntes Intelectuais no Período da Dinastia Qing) chamou "O Período Formativo"6. Resumindo, este período inicial caracterizou-se pela rejeição da longa e dominante variante Lu Wang do Neo-Confucionismo e o breve ressurgimento do Neo-Confucionismo de Song ou de Cheng Zhu, imediatamente anterior ao início do movimento "Retorno à Aprendizagem de Han". Nem Leibniz, nem os seus informadores, estavam directamente em contacto com os escritos de homens como Gu Yanwu, Yan Ruochu e Wang Fuchi. No entanto, os missionários jesuítas na China mostraram-se, na altura, extraordinariamente interessados no Neo-Confucionismo da dinastia Song, na forma como estava a ser revivido e reinterpretado, e Leibniz esteve sempre em estreito contacto, durante toda a sua vida, com muitos destes homens quer através de correspondência directa, quer através da leitura dos seus livros e artigos. Em 1666, com 20 anos, Leibniz escreveu a sua obra provocatória Dissertatio de Arte Combinatoria, mencionando a sua relação com De Re Litteraria Sinensium Commentarius de Spizel. Pouco antes de morrer, em 1716, ele redigiu uma longa carta a M. de Remond, carta essa que se dedicava exclusivamente a conceitos filosóficos chineses. Nos 50 anos que mediaram entre estes dois admiráveis testemunhos do conhecimento de Leibniz sobre o pensamento chinês, no início e no fim da sua idade adulta, existe uma ampla evidência sobre a preocupação contínua deste filósofo com os estudos sinológicos. Examinarei brevemente esta evidência antes de proceder ao objecto principal deste artigo.

Não podemos substimar a importância do seu primeiro trabalho para a compreensão dos seus últimos pensamentos. Na obra Dissertatio de Arte Combinatoria ele propôs um método que analisaria termos complexos em termos simples (um método que o levaria mais tarde à articulação do seu conceito peculiar de "mónada"), e um sistema de símbolos para representar estes termos simples que poderiam funcionar como linguagem universal para a articulacão de todo o conhecimento humano, e que poderiam ser a base para uma lógica simbólica que serviria não só os fins da demonstração como também da descoberta. A ideia de um tal sistema simbólico chegou-lhe, tal como ele refere, através de uma consideração sobre a natureza ideográfica da escrita chinesa. Esta meditação sobre a escrita chinesa e a expressão simbólica de termos simples começou a crescer depois de ter lido a obra de Spizel sobre literatura chinesa. É de referir que Spizel também aborda de uma forma superficial o Yi Jing, os princípios yin-yang, os Cinco Elementos e a alquimia chinesa.

Dois anos mais tarde, em 1668, Leibniz fez a seguinte observação numa carta"Independentemente da forma paradoxal e tonta como vulgarmente os chineses parecem estar em re medica, a deles é melhor do que a nossa." Isto talvez não assuma qualquer importância e reflecte apenas o espírito da época: a admiração por e a imitação de tudo o que é chinês por parte dos intelectuais europeus, posição que os intelectuais chineses partilhavam relativamente à matemática e à ciência europeia (compare-se, por exemplo, as afirmações escritas de Gu Yanwu na mesma altura relativamente ao facto de os europeus utilizarem técnicas diferentes das técnicas tradicionais chinesas em astronomia, que apesar de tudo provaram ser mais eficazes nesta área). Isto mostra ainda que Leibniz estava envolvido numa tentativa de. se manter a par das últimas novidades da China. Pouco depois disto, após ter lido o livro do Padre Athanasius Kircher sobre a arquitectura da China (China Monumentis Illustrata), ele iniciou a troca de correspondência com este jesuíta e a década de 1670 marca o período de troca de correspondência com a maior parte das figuras mais proeminentes da missão na China. Numa carta que enviou ao Conde Ernst von Hessen-Rheinfels, em 1687, Leibniz menciona ter lido a obra Confucius Sinarum Philosophus, publicada nesse ano pelos jesuítas Intorcetta e Couplet. Dois anos mais tarde, em 1689, ele viaja para Roma com o objectivo de entrevistar o Padre Philippe-Marie Grimaldi, que se encontrava em casa durante uma curta licença. Nesta série de conversas, Grimaldi convenceu Leibniz de que o Imperador Kangxi era a maior aproximação que alguma vez algum monarca humano podia ter tido com o rei-filósofo ideal de Platão. Mais tarde, quando Leibniz tentava criar academias científicas em toda a Europa e na Rússia, escreveu a Grimaldi (20 de Dezembro de 1696) apressando-o a convencer Kangxi a fundar uma academia científica chinesa. De facto, a década de 1690 é marcada por uma segunda torrente de correspondência entre Leibniz e os líderes da missão jesuíta na China. Alguns excertos das cartas que ele recebeu durante este período de correspondência aparecem no prefácio que Leibniz escreveu na sua obra Novissima Sinica: Historiam Nostri Temporis Illustratura, que surgiu em 1697 e que teve uma segunda edição impressa em 1699. Nesta obra Leibniz revela-se um apaixonado pelas coisas da China, referindo-se ao Imperador Kangxi como "o monarca (...) que quase excede as capacidades humanas da magnificência (...) educado para a virtude e para a sabedoria (...) ganhando o direito de reinar", e chamando à China "O Império do Meio da Europa". Apesar de considerar que a Europa estava mais avançada que a China em termos de filosofia teórica, afirmava que a China estava mais desenvolvida na filosofia moral.

No início do século XVIII, Leibniz descobre que se encontra no seio de dois aspectos bastante diferentes dos estudos chineses. Um era o Yi Jing e a sua importância para a aritmética binária. O outro era a Questão dos Ritos, na qual estavam enredados os seus amigos e correspondentes jesuítas.

O Padre Jean-Baptiste Regis traduziu o Yi Jing para Latim. O Padre Joaquim Bouvet enviou uma cópia a Le Gobien com a seguinte nota:

"Apesar de muitos considerarem que o Yi Jing é a obra mais antiga da China e talvez a obra mais antiga do mundo e a primeira fonte de onde esta nação (uma opinião subscrita por todos os estudiosos) fez derivar a sua ciência e a sua tradição, ela não contém senão uma doutrina diabólica, cheia de superstições e sem princípios fundamentais ou básicos: eu não partilho da opinião deles e estou até convencido que eles se iludem a si próprios e que praticam uma injustiça relativamente aos chineses antigos que parecem ter desde há muito tempo uma filosofia tão profunda e tão sã, e atrever-me-ia mesmo a acrescentar, mais profunda e mais lógica do que a nossa hoje em dia."

Quando Le Gobien partilhou esta opinião com Leibniz este tomou consciência imediatamente da enorme semelhança entre o sistema da aritmética binária que tinha começado a desenvolver em 1679 e os símbolos yin e yang, trigramas e hexagramas do Yi Jing. Imediatamente Leibniz e Bouvet começaram a corresponder-se sobre o Yi Jing e sobre a notação binária. Em Abril de 1701, Leibniz enviou a Bouvet uma tábua de números binários. A resposta veio em Novembro em que Bouvet demonstra ter trabalhado em duas combinações alternativas de 64 hexagramas baseados nos Diagramas Circulares de Shao Yong que poderiam simbolizar a progressão binária. No espaço de dois anos Leibniz publicou um extenso artigo sobre notação binária nas "Memoires de 1'Academie Royale des Sciences" (1703) sob o título De Progressione Dyadica: Explication of Binary Arithmetic which is constituted solely of the caracters O and 1, with remarks concerning their utility and concerning the way in which they reveal the meaning of the ancient Chinese figures of Fu Hsi (De Progressione Dyadica: Explicação da Aritmética Binária que é constituída apenas pelos caracteres 0 e 1, com observações sobre a sua utilidade e sobre a forma como eles revelam o significado das figuras chinesas antigas de Fu Xi). A explicação da última observação é feita em termos do ba gua ou "os oito trigramas". Apresentamos seguidamente, em forma de tabela, a correlação de trigramas, de números binários e números dinários de Leibniz:

Insistindo que este esquema de aritmética binária não é uma invenção original sua, mas apenas uma redescoberta do critério inicial do autor do Yi Jing, autor esse que identifica como sendo o Imperador Fu Xi, Leibniz apresenta isto sustentando a tese de Bouvet que afirma que a obra Yi Jing é a chave para a compreensão de todas as ciências! Esta análise, acompanhada com a tese de Bouvet, foi feita numa carta que Leibniz escreveu ao matemático jesuíta, Padre Bartholomaeus de Bosses, em 1709.

A Questão dos Ritos aborreceu grandemente Leibniz e ele veio a mergulhar finalmente nessa controvérsia devido a um sentimento íntimo de envolvimento. Surgem dois livros em 1701, os quais constituem um forte ataque à perspectiva da maioria dos missionários jesuítas na China. A tese comum aos dois autores era que a cultura chinesa é tradicionalmente materialista e como tal essencialmente a-religiosa. Leibniz possuía cópias de ambos os trabalhos e elaborou copiosas notas à margem de cada uma das cópias mostrando a intensidade da sua preocupação relativamente a uma compreensão adequada da mente chinesa. Refiro-me a Traite sur Quelques Points de la Religion des Chinois, do padre jesuíta Nicolas Longobardi, e a Traite sur Quelques Points Importants de la Mission de la Chine, pelo padre franciscano Antoine de Sainte-Marie. Uma das notas marginais de Leibniz é de especial importância para os nossos objectivos. No texto de Longobardi, onde Zhu Xi é acusado de materialismo, aparece a seguinte afirmação: "Eles imaginam que a partir do elemento principal (li), o ar (qi) aparece naturalmente e por acaso."7 Leibniz comenta: "O assunto de todas as gerações e corrupções (alternadamente), apropriando-se ou renunciando a diversas qualidades ou formas acidentais (...) não é o li mas antes o ar protogénico (qi) no qual o li produz a primitiva Enteleehies (Enteléquia) ou as virtudes operativas substanciais que são o princípio da constituição do espírito."8 No dia 1 de Abril de 1715 o Regente dos Conselhos do Duque de Orleães, M. de Remond, escreveu a Leibniz pedindo-lhe uma opinião sobre a natureza do Li Xue que pudesse ajudar a resolver a Questão dos Ritos. Leibniz respondeu-lhe um ano mais tarde numa carta que tinha a data da véspera da sua morte. Contrariando a acusação de Longobardi e de Sainte-Marie, Leibniz traçou estas famosas linhas:

"No início (...) duvida-se se os chineses reconhecem de facto (...) seres espirituais. Mas, após alguma ponderação, concluo que sim, apesar de eles nunca terem reconhecido estes seres separadamente, e completamente fora da matéria. (...) Eu próprio inclino-me em acreditar que os espíritos têm corpos (...) li (...) não como o primeiro ser espiritual, mas como o ser espiritual em geral, a enteléquia, isto é, aquilo que é dotado de actividade e percepção. (...) Ele (Zhu Xi) parece indicar que o particular li é uma emanação do grande Li."9

A carta surge dois anos mais tarde, depois da publicação dos dois trabalhos que articulam da forma mais clara e sucinta a posição ontológica básica de Leibniz: Principles of Nature and Grace e Monadology. A palavra entelechies é usada para designar "substâncias simples" ou "mónadas criadas". Neste conceito de mónada, crucial para a noção de organismo, há na sua mente um pensamento dialéctico entre o conceito de li do Neo-Confucionismo e a sua própria noção de mónada. Com isto pretendo dizer que Leibniz não interpreta Zhu Xi apenas de acordo com a sua perspectiva, como ao mesmo tempo também cria a sua própria posição sob o impacto do Neo-Confucionismo de Song.

Para fazer o registo do envolvimento de Leibniz nos estudos chineses é necessário mencionar o estudo sobre os jogos chineses, Annotatio de Quibusdam Ludis, publicado na revista "Miscellanea Berolinensia" (vol. 1, 1710).

Contudo, a questão mais relevante para nós não é até que ponto é que Leibniz se envolveu, ao longo da sua vida, nos estudos de cultura e filosofia chinesas, mas antes até que ponto é que o seu pensamento foi influenciado pelo Neo-Confucionismo de Zhu Xi e Song tal como este lhe foi transmitido por intérpretes jesuítas dos comentários dos estudiosos de Qing. Será que nos justificamos ao afirmarmos que houve uma apropriação do pensamento chinês no desenvolvimento histórico da ciência e da filosofia modernas europeias, o que poderá ter sido delineado através de Leibniz?

Zhan Wangci levanta sérias objecções a tal afirmação na sua discussão sobre Zhu Xi no livro Source Book in Chinese Philosophy:

"Needham compreende correctamente a filosofia neo-confuciana, especialmente tal como foi desenvolvida por Zhu Xi, como sendo essencialmente orgânica. (...) Decerto que a concepção neo-confuciana do universo é a de um organismo simples. (...) Impressionado com este carácter relacionai da filosofia chinesa, Needham descobriu uma semelhança impressionante entre o organismo chinês e o de Whitehead. Ele fez também um estudo extraordinariamente revelador sobre a influência de Zhu Xi em Leibniz e na filosofia organicista. Contudo, é necessário lembrar que na filosofia de Zhu Xi, o mundo é mais do que um organismo, porque o princípio é metafísico. Além disso, ao mesmo tempo que as semelhanças entre o Neo-Confucionismo e o organicismo de Whitehead (...) são surpreendentes, o Deus de Whitehead está ausente do Neo-Confucionismo, Deus esse que, tal como 0 príncipio da concreção, é a irracionalidade suprema."10

O professor Zhan levanta duas objecções. Em primeiro lugar ele insiste "que na filosofia de Zhu Xi o mundo é mais do que um organismo, porque o príncipio é metafísico". Neste aspecto ele acha que Leibniz está em perfeito acordo com Zhu Xi. Numa carta que ele enviou a Remond de Montmart, escreveu: "Quando procuro a razão fundamental do mecanicismo e das leis do movimento, fico surpreendido ao perceber que não se podem encontrar na matemática e que é necessário voltarmo-nos para a metafísica." Desde o seu primeiro ensaio relativamente à ontologia, Discours de Metaphysique (1686) até às afirmações mais determinantes nos Principles of Nature and Grace e Monadology (1714), Leibniz insiste que para a realidade não são cruciais nem os aspectos físicos nem os aspectos matemáticos mas antes os metafísicos. A distinção traçada nos escritos de 1714 entre o aspecto físico (real mas não verdadeiro), o aspecto matemático (verdadeiro mas não real) e o aspecto metafísico (real e verdadeiro) já tinha sido antecipada no ensaio de 1686:

"Mas se analisarmos os pormenores, podemos observar as leis metafísicas da causa, do poder, da actividade actuando de uma forma admirável em toda a natureza e prevalecendo mesmo sobre todas as leis puramente geométricas da natureza, tal como descobri relativamente às leis do movimento; uma coisa que me impressionou de tal forma que (...) fui forçado a abandonar a lei da composição geométrica das forças, que eu próprio defendi (...) quando era mais materialista."

Whitehead reconhece explicitamente a sua dívida a Leibniz relativamente a este aspecto.

No que diz respeito à segunda objecção de Zhan, isto é, que "o Deus de Whitehead está ausente do Neo-Confucionismo, (...) o princípio da concreção", é de referir que isto também está ausente em Leibniz. O Deus de Whitehead é uma espécie de Deus ex machina, uma versão moderna do demiurge de Platão que aparece no Timaeus. Aparentemente nem Platão nem Whitehead conseguiram compreender o conceito chinês de organismo, apesar dos respectivos antecessores, Pitágoras e Leibniz, o terem conseguido. Tanto Whitehead como Needham sugerem que Leibniz marca o ponto de origem, na história do pensamento ocidental europeu, da proposta do modelo do organismo como uma alternativa viável e preferível à máquina. Será que esta ideia surgiu totalmente da mente criativa de Leibniz, ou será que ele se apoiou no trabalho de algum antecessor? Tem sido sugerido que Leibniz está na tradição de Pitágoras e de Platão. Frank Thilly chamou-nos a atenção para o professor sob a orientação do qual Leibniz fez o seu trabalho de licenciatura em geometria na Universidade de Jena. Erhard Weigel "convenceu Leibniz da verdade de uma concepção que constituiu a base e os princípios condutores de todos os seus últimos esforços para construir uma perspectiva do mundo: a doutrina pitagórico-platónica da harmonia do universo".11 Apesar da ideia que Leibniz tinha de harmonia poder ter sido transmitida pelo professor Weigel, a sua compreensão dessa harmonia não o foi com certeza. O abandono da "lei da composição geométrica das forças" a que ele faz alusão na passagem supra-mencionada do Discours de Metaphysique torna clara esta afirmação. Além disso, é evidente que a solução platónica do problema de como relacionar o domínio essencial das ideias eternas com o domínio existencial dos objectos e acontecimentos espácio-temporais, tal como é dada no Timaeus, não poderia ser aceitável para Leibniz. No seu grande debate com adeptos da mecânica de Newton, ele insiste bastante no facto de os agentes externos serem excluídos dos sistemas explicativos — enquanto "causas ocultas" tal como a força gravitacional de Newton ou o demiurge de Platão. Presume-se que ele tenha encontrado o seu modelo na tradição pitagórica com ênfase na relação monádica-diádica fundamental. O problema em estabelecer uma base pitagórica para o pensamento de Leibniz é uma questão de documentação. De facto, teria que assentar na herança neo-pitagórica que existiu nos limites dos hábitos do pensamento europeu e que constituiu parte da tradição esotérica ou "oculta". É muito mais fácil defender a tese que Needham propôs, isto é, que Leibniz foi profundamente influenciado pela tradição neo-confuciana, principalmente na medida em que representa uma tentativa para explicar certas ideias fundamentais encontradas no Yi Jing e nos seus apêndices. O impressionante paralelo que existe entre as seguintes passagens dos trabalhos de Leibniz de 1714 e a compreensão neo-confuciana de li (理) e de qi (氣) da dialéctica interna do yin (陰) e do yang (陽), quando lidas tendo em conta os antecedentes dos estudos de Leibniz sobre o pensamento chinês antes da sua composição, torna difícil negar a sugestão de Needham a favor de uma tese não documentada sobre a influência neo-pitagórica:

"Mónadas não são forças puras: são a origem não apenas das acções como também das resistências ou passividades. (...)

Distingo (I) a enteléquia primitiva ou a alma; (II) a matéria primária ou força passiva primitiva; (III) a mónada, completada pelas duas; (IV) massa ou matéria secundária ou a máquina orgânica (...); (V) o animal ou substância corpórea."

No seu ensaio sobre "A Harmonia e o Conflito na Filosofia Chinesa", Derk Bodde escreveu o seguinte:

"O universo, de acordo com o pensamento filosófico chinês corrente, é um organismo que funciona de uma forma harmoniosa e que consiste numa hierarquia ordenada de partes e forças, as quais, apesar de serem desiguais na sua função, são todas igualmente essenciais para o processo total. (...) Este padrão cósmico é auto-controlado e auto-operativo. Auto-desenvolve-se devido à sua própria necessidade interna e não por determinação de qualquer poder volitivo externo."12

A passagem podia também ser usada como uma descrição precisa da Cosmologia de Leibniz, e ajuda a estabelecer o paralelo.

O reconhecimento da afinidade extrema — se não um directo compromisso — com o Neo-Confucionismo é feito pelo próprio Leibniz quando defende a tese de Bouvet relativamente ao facto de o Yi Jing fornecer a chave para toda a compreensão científica. Não nego a originalidade e a genialidade da mente de Leibniz. Contudo, é absolutamente evidente que ele mesmo reconhece coincidências espantosas entre as suas reflexões e as dos intelectuais chineses, e que o próprio continuou a desenvolver as suas ideias depois de esse reconhecimento ter sido adquirido.

Whitehead desviou-se do modelo de organicismo de Leibniz através da sua simpatia pela tradição platónica tal como era apresentada no Timaeus. Este desvio não acontece com duas outras posições intelectuais que também devem muito do seu pensamento inicial à herança de Leibniz, isto é, a hegeliana e a marxista. A análise de Needham do modelo organicista, formulada com base na noção de Leibniz de mónada auto-controlada e "sem janelas" examina a importância extrema da ideia relacionada de uma dialéctica interna. Tanto Needham como Whitehead parecem não ter entendido a noção leibniziana de organismo, o qual não depende de um agente externo para o seu desenvolvimento, mas que se desenvolve como Resultado Supremo de uma dialéctica dinâmica interna. Hegel percebeu isto, e a dialéctica da sua Ideia Absoluta tem uma extraordinária semelhança com a análise da interacção do yin e do yang dentro das relações triádicas simbolizadas nos trigramas e nos hexagramas do Yi Jing. A "esquerda" hegeliana usou este conceito como chave para a compreensão do processo natural e da história humana. É quase como se os Materialistas da Dialéctica tivessem lido a defesa de Leibniz relativamente à afirmação de Bouvet de que o Yi Jing fornece a chave para todas as ciências. A polémica marxista contra o materialismo mecanicista e a re-definição do conceito de "matéria" remetem para a rejeição leibniziana da mecânica de Newton. Apesar da preferência de Kant por Newton, a sua articulação das categorias em formas triádicas foi um instrumento para transmitir a noção de dialéctica na tradição europeia, e os marxistas pertencem claramente à tradição que foi introduzida no pensamento europeu por Leibniz.

No terceiro volume da obra Confucian China and its Modern Fate: The Problem of Intellectual Continuity, Joseph Levenson dedica um capítulo ao "lugar de Confúcio na China Comunista". O problema que os intelectuais maoístas enfrentaram em relacionar a tradição chinesa —especialmente no que se refere aos costumes da civilização tradicional chinesa — com o Materialismo Dialéctico foi um problema extremamente difícil e que se encontra por resolver até à data, apesar dos esforços persistentes para desmistificar Confúcio intelectualmente e para descreditar toda a tradição confuciana como a ideologia contínua das classes exploradoras ao longo de toda a história da China. À primeira vista, a minha tese não será popular no seio dos intelectuais maoístas, contudo, aceitariam se colocasse Diamat dentro da herança filosófica chinesa. O Materialismo Dialéctico deve muito da sua estrutura teórica à tradição filosófica confuciana. O pensamento maoísta é de orientação marxista-leninista. Marx era um hegeliano, apesar de ter participado com Feuerbach no processo de "inverter todos os príncipios de Hegel — ou melhor de contrariar esses princípios e de os voltar a colocar no ponto inicial". As ideias de Hegel relativamente ao organicismo e à dialéctica devia-as à tradição kantiana, apesar da sua ontologia não poder ser aceitável dentro da filosofia crítica de Kant. Kant devia muito à posição leibniziana apesar de ter rejeitado a sua articulação popular. Leibniz reconhece afinidades profundas, se não mesmo uma dívida directa, com o Neo-Confucionismo da dinastia Song tal como este foi re-articulado pelos primeiros estudiosos de Qing e interpretado como o racional subjacente ao Yi Jing. Com isto não estamos a sugerir que o conceito de Leibniz de Neo-Confucionismo fosse correcto, nem sequer a defender a escola de Cheng Zhu como sendo a melhor interpretação de uma herança que é decididamente pluralista. Nem a sugerir que Leibniz é um proto-marxista, ou que Mao é um leibniziano tardio. É, no entanto, para insistir numa linha de filiação genuína e discernível.

Como tese mínima pode-se afirmar que Leibniz foi uma ponte através da qual algumas ideias básicas da filosofia chinesa, incluindo o modelo organicista e uma dialéctica interna, foram introduzidas nos hábitos do pensamento europeu. O impacto destas ideias foi profundamente sentido na filosofia, nas ciências e na ideologia política. Traduzido do original inglês por Ana Paula Cleto.

NOTAS

1. NEEDHAM, Joseph, Science and Civilization in China, Cambridge, The University Press, 1955, vol. 2, pp. 291-3.

2. Idem, pp. 339-45.

3. Idem, pp. 496-505.

4. Idem, ibidem.

5. Idem, ibidem.

6. LIANG Qichao, Intellectual Trends in the Ch 'ing Period, traduzido por Immanuel C. Y. Hsu, Cambridge, Harvard University Press, 1959, pp. 20... ss,45... s.

7. NEEDHAM, Joseph, op. cit., pp. 496-505.

8. Idem, ibidem.

9. Idem, ibidem.

10. ZHAN Wangci, Source Book in Chinese Philosophy, Princeton, University Press, 1963, pp. 636... s.

11. THILLY, Frank, A History of Philosophy.

12. BODDE, Derk, "A Harmonia e o Conflito na Filosofia Chinesa", in WRIGHT, Arthur, Studies in Chinese Thought, Chicago, University Press, 1953, pp. 67... s.

* Professor da Universidade do Novo México.

desde a p. 251
até a p.