Artes

A EVOLUÇÃO DOS ESMALTES

Luís Gonzaga Gomes*

Vaso duplo com formato de flor de lótus em cloisonné. Dinastia. Dinastia Qing, reinado de Qianlong (1736-1795), 17 cm. LI Zhiyan; CHENG Wen, Chinese Pottery and Porcelain, Beijing, Foreign Languages Press, 1989, il. 61.

De entre mil e um objectos que representam o esforço da indústria artística do laborioso povo chinês, que atingiu desde remota época um elevado grau de cultura estética, não é raro encontrar peças de diferentes feitios e para diversos usos, além do ornamental, as quais, para os olhares de leigos, se confundem com as de porcelana; no entanto, qualquer curioso de arte chinesa não deixaria imediatamente de aperceber essa diferença.

Ora, esses objectos, fabricados em metal e revestidos de um adiáfano composto, resistente e vítreo, formado de sílica, mínio e potassa, ao qual, quando em estado de fusão, se ajuntaram óxidos metálicos, com o fim de o colorir, são conhecidos pelo nome genérico de esmaltes.

Pormenor de um vaso em cloisonné. JONES, Owen, The Grammar of Chinese Ornament..., London, Studio Editions, 1987, íl. 15.

Afirmam investigadores de crédito que smaltum é vocábulo pela primeira vez empregado no séc. IX, por incógnito autor, numa biografia de Leão IV (847-855) — o vencedor dos Sarracenos na embocadura do Tibre e fundador da cidade Leonina (Vaticano) —, e, no século subsequente, Theophilus, o monge artista, preocupou-se em descrever, com a mais paciente minúcia, num seu manual de artes industriais, coetâneas à época em que viveu, o qual se intitula Diversarum Artium Schedula, os processos então usados pelos esmaltadores bizantinos na produção das suas obras de arte, processos tão idênticos aos que são ainda adoptados pelos seus confrades chineses, que não se torna possível pôr em dúvida o facto, de resto, hoje inconteste, de a arte chinesa de esmaltes (cloisonné) pertencer à mesma origem que a da arte bizantina.

Não foi, porém, Bizâncio, o berço da arte de esmaltes, pois, já ela era praticada, muito antes da fundação dessa cidade, nos principais núcleos de civilização da Ásia Ocidental, e, tendo ganho cedo a sua popularidade, chegou mesmo a alcançar as longínquas praias da nebulosa Manda, onde têm sido encontrados magníficos trabalhos, típicas criações da arte celta, contemporâneas aos primeiros tempos do cristianismo.

Foi só com a queda do Império Romano que a indústria dos esmaltes se fixou em Bizâncio, onde, também, já era conhecida, desde o tempo de Justiniano, tendo, durante a Idade Média, atingido extraordinária fama os produtos oriundos desse centro artístico.

No século XIV, espalharam-se os esmaltadores bizantinos por todas as partes do mundo, mercê de múltiplas circunstâncias.

Os objectos em esmalte introduziram-se na China, primeiramente, através das suas fronteiras setentrionais, provavelmente, como produtos de pilhagens das hordas de Chengjisihan (成吉思汗, Gengiscão), no retomo das suas incursões, em terras do Ocidente Asiático, e também devido às actividades comerciais de empreendedores mercadores arménios e persas, na sua apetência de obter por escambo os produtos nativos do encantado país dos filhos do Celeste Império.

Pouco depois, os mercadores árabes incluíram-nos entre as mercancias que usavam no seu trato, em Cantão, como atesta a designação tái-sêk-iu (dashiyao, 大食諂), isto é, louça árabe, com que ficaram sendo conhecidos no dialecto nativo.

Mas, a indústria organizada e, portanto, a consequente popularidade dos objectos em esmalte, só ficou definitivamente estabelecida, na China, no séc. XIV, apoiando-se os sinologistas para a asserção deste facto na circunstância de só a segunda edição, que data de 1459, da célebre obra Gegu Yaolun (格古要論), incluir uma secção especialmente dedicada à dashiyao, pois que, na primeira edição, publicada em 1387, não figura nenhuma referência acerca de esmaltes.

Dá-se também o facto de os esmaltes serem depois designados, em chinês, por falangyao (琺瑯諂) e, em tomo deste étimo, têm-se aventado várias hipóteses sobre a sua origem, para justificação da procedência estrangeira do produto artístico em questão, hipóteses essas que variam, conforme a interpretação etimológica que cada um dá ao citado vocábulo.

Pormenor de uma haste de estandarte numa combinação entre cloísonné e plique-à-jour (este representado pelofundo negro). JONES. Owen, The Grammar of Chinese Ornament..., London, Studio Editions, il. 17.

Assim, há investigadores que defendem a tese de fát-lóng [falang] ser uma corrupta representação sónica da palavra"franco", nome que, porventura, teria sido corrente na China, para simbolizar a cristandade; outros, que tal termo deve ser a adaptação cantonense da palavra "França"; por sua vez, o sinologista Hirth pretende identificá-lo com Belém, a cidade natal do Divino Salvador; mas Bushell, uma das maiores autoridades em arte chinesa, afirma no seu Chinese Pottery and Porcelains que folin, ou fulin (pronúncia pequinense, 拂菻), surgiu pela primeira vez, na história da China, na primeira década do séc. VII, como a sede do Império Romano do Oriente, em substituição da Daqin (大秦), nome por que foi primitivamente conhecido pelos Chineses a capital do Império Romano do Ocidente, devendo, portanto, o termo folin corresponder ao termo Polin, toponímico com que na Idade Média se usava para designar a cidade de Constantinopla.

Foi, no entanto, publicado o curioso livro de Rockhill, The Journey of Friar William Rubruk, e menciona-se nele o facto deste monge se ter encontrado por volta de 1254 em Caracórum, na Mongólia — onde, nessa época, se reuniam os enviados diplomáticos das naçõesestrangeiras, os missionários católicos e nestorianos, mercadores e aventureiros, europeus de toda a espécie —, com o ourives e cinzelador francês Guillaume Boucher, que devia ter sido o primeiro artista produtor dos artigos, em esmalte, na corte mongol. Desde então, a maioria dos que dissertam sobre arte chinesa, baseia-se nesta circunstância para afirmar que falang não é, senão, a corrupção da palavra "Guillaume".

Não se percebe como é possível aproximar os sons das duas palavras, a não ser que falang tivesse sido o nome chinês que esse Guillaume Boucher tivesse adoptado, na China, como mais tarde fizeram os Jesuítas: Ricci, que era conhecido, em chinês, por Li Madou (利碼竇), Verbiest por Nan Huairen (南懐仁), etc.

Acontece, porém, que falang se escreve com o radical 王, abreviatura da palavra yu (玉, jade), o que vem demonstrar ser essa palavra indicativa duma substância e não dum lugar.

Porém, há um passo no Taoshuo (陶説), obra publicada em 1774, o qual diz que os dashiyao são semelhantes aos objectos trabalhados em falang e isso vem de alguma forma decidir a controvérsia acerca da origem do termo esmalte, em chinês, em favor dos que defendem ser ele o nome da extinta Polin, que depois se chamou Constantinopla e é hoje conhecida por Istambul.

Pormenor de um jarro em cloisonné. JONES, Owen, The Grammar of Chinese Ornament..., London, Studio Editions, 1987, li. 36.

Os objectos em esmalte não são tidos em grande apreço pelos Chineses, não só por o seu fabrico não ter sido por eles inventado como, de facto, a semiopacidade vítrea do seu lustro baço e a rugosidade da sua superfície se não poderem rivalizar com o brilho translúcido e a homogeneidade da porcelana. Por isso, é em tom bastante despiciente que ajá citada Gegu Yaolun se refere às urnas, jarras, bocetas e taças em esmalte, que diz não conseguirem despertar a emoção estética dos literatos por serem exageradamente garridas e, por este mesmo facto, mais apropriadas para servirem de objectos de adorno, nos quartos das senhoras.

Há esmaltes transparentes ou opacos, sendo os primeiros obtidos pela liquefacção dos elementos componentes, a um grau idêntico de calor, ao passo que, nos segundos, intervem a junção duma mistura de estanho com chumbo calcinado.

Conforme os diversos processos por que são fabricados, os esmaltes pertencem às seguintes classes: champlevé, cloisonné, basse taille, plique-à-jour e pintados.

No champlevé, ou esmalte acamado, escavam-se, com cinzel, lóculos ou sulcos, na placa metálica, que se destina a ser esmaltada, de forma a que os delineamentos do desenho sejam formados pelos bordos salientes do metal. Fusiona-se, em seguida, o esmalte para dentro dessas cavidades, sob a acção do calor, ficando os diversos contornos do mosaico separados por esses bordos salientes.

O cloisonné, ou esmalte incrustado, diverge tecnicamente do champlevé por as células ou cloisons serem formadas pelas cavidades delimitadas por uma rede de delgadíssimos septos de metal soldados à placa metálica e, os quais evolucionam, acompanhando todos os delineamentos do desenho que se pretende reproduzir, de forma a constituírem tenuíssimas paredes de pequenos depósitos, onde se vão alojar as substâncias diversamente coloridas e previamente reduzidas a finíssimo pó. O objecto é, então, várias vezes assado até satisfazer o fabricante, sendo, em seguida, esmerilhada toda a sua superfície com pómice e brunida com carvão. Como operação final, doiram-se os bordos não revestidos de esmalte, com folhas de oiro, sob a acção do fogo.

No basse taille, o desenho é incrustado em baixo relevo, na placa metálica que constitui o corpo do objecto, de forma a que o esmalte, ao fundir-se, fique no mesmo nível das partes não escavadas.

O plique-à-jour ou cloisonné translúcido é semelhante ao cloisonné, com a excepção de se remover o molde, imediatamente após a fusão, a fim do produto acabado poder conservar a sua transparência.

No pintado, o colorido é distribuído sobre uma superfície de esmalte que reveste toda a placa metálica.

Os Chineses, porém, só conhecem dois processos de fabricação dos esmaltes: o dos cloisonnés e o dos pintados.

Pormenor de uma garrafa em cobre, exemplo de esmalte pintado. JONES, Owen, The Grammar of Chinese Ornament..., London, Studio Editions, 1987, il. 59.

Os exemplares autênticos dos primeiros tempos da fabricação dos esmaltes, na China, e que datam da dinastia mongol Yuan (元, 1280-1368), são raríssimos e pertencem todos à classe dos cloisonnés.

A era mais florescente para a indústria dos esmaltes, na China, foi o reinado de Jingtai (景泰, 1450-1457), da dinastia Ming, como comprova a abundância dos exemplares existentes, que ostentam a marca da época em que reinou este imperador, a qual coincide com o hastear do pendão turco-osmanli no alto das torres de vigia da velha Constantinopla (1453), acontecimento esse que provocou um novo influxo de refugiados ocidentais, na China. Por este motivo, os objectos em esmalte são ainda conhecidos por certa classe de comerciantes por Jingtailam (景泰藍), devendo notar-se que o lam está incorrectamente empregado, em vez de lan.

Os produtos deste período apresentam-se ousados no desenho das suas linhas e jamais foi ultrapassada a prodigalidade de paciente e rigorosa minúcia empregada na elaboração dos seus ornatos, caracterizados por notáveis profundeza e pureza do colorido.

Para a cor azul foram adoptadas duas matizes que contrastam distintamente: o azul escuro carregado, mais vivo, e um azul-celeste, com uma débil pigmentação esverdeada. O encarnado usado é punício; o amarelo, puro, é genuíno na sua tonalidade; o verde, parcamente empregado, prescindindo os artistas chineses, por completo, do uso do rouge d'or. Quanto à aplicação do negro e do branco, fracassaram, por completo, pois ao primeiro lhe faltam o brilho e profundeza, e no segundo, não conseguiram reproduzir a pureza da sua nitente alvura, pois se apresenta quase sempre adulterado e embaciado.

Embora os exemplares representativos deste período se revelem, no seu conspecto geral, deslumbrantes, à primeira vista, em virtude da conscienciosa distribuição dos elementos decorativos e da equilibrada harmonização das diversas tonalidades do colorido, no entanto, um exame cuidadoso mostrará defeitos de técnica no cozimento, pois, além das ranhuras, quase imperceptíveis do vidrado, que estalara sob a acção do fogo, encontram-se numerosos buraquinhos provocados por uma heterogénea distribuição do esmalte.

Sob o ponto de vista técnico, os produtos dos períodos de grande actividade artística dos reinados de Kangxi (康熙), Yongzheng (雍正) e Qianlong (乾隆), sobreexcedem de modo conspícuo os do período dos Mings.

Os de Kangxi (1662-1722) são caracterizados pela mesma audácia, idêntica concepção nos seus formatos e excelente emprego do colorido, sendo, porém, o estilo dos ornatos menos profuso mas mais original.

Pormenores de vários objectos em cloisonné.

JONES, Owen, The Grammar of Chinese Ornament..., London, Studio Editions, 1987, il. 61.

Os de Yongzheng (1723-1735) não diferem quase em nada aos produtos do reinado antecedente.

Os de Qianlong (1736-1795) revelam notável progresso técnico, sendo os modelos escrupulosamente escolhidos, e o desenho dos ornatos idealizado em rigoroso sincronismo com as linhas configurativas dos objectos, de forma a alcançar-se, com maravilhosa mestria, a unidade da concepção. Apesar de as cores empregadas não excederem, em brilho e luzimento, às dos exemplares do período Ming, no entanto, não se descobrem neles os defeituosos buraquinhos ou outras falhas, originadas pela imperfeição dá fusão do esmalte, ganhando, entretanto, na beleza dos engastes em bronze, ricamente doirados, que são a característica principal, para os diferençar das suas cópias modernas, as quais contêm pouca proporção de folhas de oiro, que, em vez de serem aplicadas pela acção do fogo, são fixadas por processo eléctrico.

Porém, os esmaltes, por mais delgados que sejam os seus moldes metálicos, não conseguem reproduzir o voluptuoso sonido, pleno de agradáveis vibrações, que caracteriza as boas peças de porcelana. Privados deste atractivo e da fascinação da sua descoberta não ser oriunda do engenho nativo, os Chineses, entricheirando-se dentro do preconceito neofóbico, que sempre os caracterizou, estigmatizaram os objectos de esmalte, logo no início da sua introdução.

Esta indústria floresceu, no entanto, com pujança, durante a época dos citados imperadores da dinastia Qing, porque estes, na sua esplendorosa munificência, usavam prodigalizar os inúmeros templos e mosteiros que fundaram, com objectos de esmalte para adornar as suas aras, bem como, para satisfação das necessidades do serviço hierático, tanto que, sob a égide de Qianlong, se fabricavam esmaltes em chapas, não só de cobre mas de prata e oiro.

Criaram-se, então, verdadeiras obras-primas de inexcedível delicadeza de factura, de esmerado gosto na composição de motivos, e os artistas nativos, condescendendo ao momentâneo capricho da época, dedicaram o melhor do seu talento para legar àadmiração da posteridade inúmeras salvas, almofias, vasos, pratos, taças, simpúvios, placas com odes laudatórias — ricamente emolduradas e aconchavadas em rendilhados suportes de preciosas madeiras —, perfumadores, e mil e um objectos de adorno.

Tijela decorada com peónias em cloisnné e fundo amarelo. Dinastia Qing. reinado de Kangxi (1662-1722), 17 cm.

LI Zhíyan: CHENG Wen, Chinese Pottery and Porcelain, Beijíng, Foreign Languages Press, 1989. il. 56.

Uma vez, falha essa protecção imperial e, quando se esfriou o interesse dos países circunvizinhos pela sua importação, o entusiasmo pela arte dos esmaltes foi-se esmorecendo, lentamente, sem nada mais se ter produzido de valor artístico com o findar do reinado de Qianlong, que teve lugar no ano de 1795, porquanto os artistas não trabalham só por mero prazer de dar expressão às suas emoções espirituais ou corpo às suas visões internas. Cessada a procura, deixando de haver quem lhes pague o produto do seu esforço artístico, cessou a produção.

Entretanto, em Limoges, capital do departamento de Alta-Viena, no Sudoeste de França, descobriram, os joalheiros franceses, a possibilidade de se dispensar, por completo, a trama metálica, divisória das células, até então, tão necessária para o fabrico dos objectos em esmalte, bastando para isso fusionar directamente uma camada do vernizado vítreo sobre a chapa metálica, pintando-se, em seguida, sobre o cozimento que receberia mais um empastamento de esmalte, capaz de aguentar novamente o calor do fogo, sem que isso fizesse estalar a camada primitiva.

De entre uma brilhantíssima plêiade de artistas esmaltadores que tão grande renome deu à Limoges seiscentista, distinguiu-se Leonard Limousin, cuja arte foi introduzida na China pelos Jesuítas, que passaram a adestrar os artistas chineses na nova indústria artística, remontando as peças mais antigas deste género de esmaltes ao reinado de Yongzheng (1723-1735).

Por este facto, ficaram, os esmaltes pintados, conhecidos, na nomenclatura chinesa de objectos de arte, por yangci (洋瓷), que quer dizer porcelana estrangeira, vincando-se, por esta forma, o facto de não ser nativa a sua procedência.

Distinguem os coleccionadores duas classes desta espécie de esmaltes: os que foram fabricados no Zaobanchu (造辦處), no Palácio Imperial, em Pequim, e os fabricados em Cantão.

"Par de covilhetes. Esmalte pintado em metal. Dinastia Qing, reinado de Qianlong (1736-1795), 11,9 cm."

LEAL SENADO. Porcelana Chinesa de Exportação: Diálogo entre Dois Mundos, Macau, Leal Senado, 1992, il. 96.

Os desenhos desses objectos são geralmente constituídos por cenas da vida europeia, com personagens trajando também à europeia, ou então, por assuntos puramente chineses, sendo os da procedência cantonense bastante inferiores às da pequinense, visto as primeiras terem sido fabricadas simplesmente com intuito comercial.

Muitos dos assuntos dos objectos desta variante de esmaltes foram pintados pelos próprios Jesuítas, outros, por artistas chineses seus imitadores que, deixando abastardar a sua própria arte, se entregaram à criação de produtos discrepantes, em que aparecem personagens trajados à europeia, mas com rostos marcadamente chineses.

No reinado de Luís XIV, contemporâneo de Qianlong, foi fundada por Mazzarino a grande empresa comercial Compagnie de la Chine, a qual ordenou a factura de enormes colecções de serviços de jantar com as armas reais da França. Essas porcelanas eram trazidas, por terra, dos fornos de Jingdezhen (景德鎮), até Cantão, onde passavam a ser decoradas e vidradas, sendo muitos destes serviços completados com aprestos em esmalte, como açucareiros, chaleiras, etc.

Desde então, seguiram-se encomendas de todos os países para a louça com brazões de armas e, os mesmos motivos usados para a decoração nas ourelas das peças em porcelana desta época, figuram também nas peças de esmalte pintado, o que vem demonstrar que ambos os produtos saíam das mesmas mãos.

Estimulados pelas boas encomendas estrangeiras, os artistas da escola cantonense, fazendo uso da sua longa tradição de pintores, dedicaram o melhor do seu talento e inspiração para se esmerarem nesta nova indústria, datando desta época algumas das mais belas criações do génio artístico chinês, como bandejas, vasos, pratos, jarras, etc., em que figuram poéticos cenários de montanhas contorcidas, tão características da arte pictoral chinesa, sendo todos marcados por uma intenção de equilíbrio, de harmonia e de ritmo inimitáveis, causadores de entusiásticos enlevos dos genuínos apreciadores da arte chinesa.

Contudo essa voga foi também presentânea porque a artificial venustidade dos objectos em esmalte pintado, também, só serviu para satisfazer o gosto estrangeiro sem conseguir alterar a atitude mental e a disposição espiritual dos diletantes chineses.

Desta forma, logo que o poder de aquisição dos mercados europeus se enfraqueceu, deixou de se manufacturar produtos de "arte erudita" para se fabricar somente os sensaborões produtos de "arte comercial", que são os que ainda hoje se fazem para serem vendidos à classe de estrangeiros comezinhos de gosto, e que não querem deixar a China sem levarem consigo, para lembrança, um objecto característico, mas barato.

Publicado originalmente na revista "Renascimento", Macau, 2 (3) Set. 1943, pp. 232-40.

Jarrão em cloisonné. Dinastia Ming, reinado de Xuande (1426-1435).

GOEPPER, Roger, La Chine Ancienne, [Paris], Bordas, 1988, p. 363.

* Investigador e historiador de temas da história de Macau; escritor e sinólogo.

desde a p. 186
até a p.