Linguística

O CATOLICISMO NAS POESIAS DE MACAU DURANTE A DINASTIA QING

Zhang Wen Qin*

INTRODUÇÃO

Macau foi o centro de propagação do catolicismo no Oriente desde fins da dinastia Ming até a dinastia Qing, e o único pólo de intercâmbio cultural sino-ocidental. O primeiro chinês que se referiu ao catolicismo foi Ye Quan, quando viajou por Macau no 44° ano do reinado de Jiajing (1565). Dizia ele: "Todos os ocupantes das casas estrangeiras na Ilha são folangji (portugueses), vindos de um país do Atlântico. (...) Eles observam rigorosamente a crença e vão às igrejas em cada três ou cinco dias. Os sacerdotes, sempre sentados, encostados ou de pé, explicam os textos religiosos. Terminada a cerimónia, há discípulos que saem do recinto religioso com lágrimas e suspiros. Veneram uma estátua esculpida em madeira de sândalo, de seis ou sete polegadas, inteiramente nua e crucificada, com pregos cruelmente cravados nas mãos e nos pés. Dizem que é seu ancestral e sofreu este sacrifício por causa de pecados (...). Há um painel de nove quadros, três dos quais representam uma cena em que uma linda mulher abraça um homem inteiramente nu. Não sei porquê. Perguntei a um intérprete no local, e ele também não o sabia!"1 O excerto demonstra que a missa semanal dos estrangeiros não era bem conhecida pelos chineses. É sumamente ridículo o entender dos chineses quanto a Jesus crucificado e a Santa Mãe em plena tristeza. Os portugueses acabavam de se estabelecer em Macau e os chineses tinham parcos conhecimentos sobre os assuntos ocidentais, tão pouco o intérprete, ainda que mantivesse frequentes contactos com aqueles. O mesmo acontecia com os estrangeiros quanto aos assuntos chineses.

Posteriormente, houve mais registos documentais chineses sobre o catolicismo, e surgiram muitas poesias que o descreveram. A Biblioteca Nacional de Paris conserva uma colecção, contando com poemas de dezenas de intelectuais chineses da província de Fujian [Fuquiém], exclusivamente dedicada aos missionários ocidentais, vinte dos quais dedicados aos padres Mateus Ricci, Adam Schall e Fernando Verbiest.2 Chen Yuan seleccionou três poesias de Wang Sitong e Quan Zuwang para a sua obra intitulada Catolicismo nos Fins da Dinastia Ming... 3

Influenciado pelos eruditos da velha geração, tomei as poesias de Macau da dinastia Qing sobre o catolicismo, integrando outros documentos, como uma tentativa para pesquisar os contactos culturais sino-ocidentais, com base na conclusão da compilação das Notas sobre Poesias de Macau, volume das dinastias Ming e Qing, a fim de consultar especialistas da área,chineses e estrangeiros. O trabalho iniciou-se com obras de autores não católicos.

A maior parte das poesias da dinastia Ming caracteriza-se por excessivos encómios e votos aos missionários, e raramente se referem à doutrina e às actividades destes. Entrando no período da dinastia Qing, os versos poéticos passam a descrever sistematicamente o catolicismo, com um conhecimento cada vez mais profundo. A seguir, iniciarei sua análise, dando especial relevo a três aspectos: Igrejas e Frades, Sacramentos da Igreja, Conhecimento Chinês do Catolicismo, na dinastia Qing.

IGREJAS E FRADES

Todos os poetas, quando chegavam a Macau, onde se encontravam numerosas construções cristãs, não deixavam de admirar e louvar as imponentes e douradas igrejas. Chen Yanyu, Comissário da Educação do distrito de Panyu entre o 12°; ano do reinado de Shunzhi (1655) e o primeiro ano do reinado de Kangxi (1662), na sua obra Visita às Igrejas Católicas Quando Entrava em Macau Vindo de Xiangshan, escreve os seguintes versos:

    "Erguem-se altos e magníficos edifícios de
    preciosidades, 
    que, com o seu telhado verde e dourado, entre si
    competem... 
    O espírito que reina no templo deslumbra os olhos, 
    Tento detê-lo receando o seu desaparecimento
    imediato."4

As igrejas de Macau — sobretudo a Igreja de S. Paulo — eram consideradas recintos onde se reunia toda espécie de preciosidades. Tan Xianzu, da dinastia Ming, descreve a Igreja de S. Paulo, em Quiosque de Peónia, como "Templo de muitas preciosidades", e diz que o inspector enviado pela Corte da dinastia Ming a Macau admirou muito este Território por neleter encontrado uma profusão de coisas valiosas. No reinado de Yongzheng, o poeta Li Guangzhu, natural de Xiangshan, compõe versos como estes: "As preciosidades encontram-se no templo de S. Paulo, / Enquanto o ribeiro atravessa a Porta da Cruz."5 Entretanto, Chen Yanyu continuava a qualificar a igreja de "edifício de preciosidades", desta feita na obra Alma do Templo, onde descreve sua imponência e mistério, e explica o porquê de tanta urgência em investigar tal mistério.

No 23° ano do reinado de Kangxi (1684), o Inspector e Ministro das Obras Du Zhen inspeccionou o território de Macau e compôs o seguinte poema, intitulado "Xiangshan Ao":

    "Os sacerdotes ocidentais conhecem a geomancia, 
    Estabelecem-se aqui após uma viagem marítima
    de dez mil lis. 
    Trabalham arduamente com tijolos cozidos e
    barcos fluviais, 
    Esculpem paredes, constroem casas e pavimentam
    ruas. 
    Os edifícios são grandes com cem chis  de altura, 
    As estátuas dos deuses são solenes, com barba e
    bigode. 
    Cinco cores combinam-se num ar brilhante, 
    Além de cortinas de pérola e colunas entalhadas."6

A poesia descreve o penoso trabalho dos sacerdotes, a grandeza exterior das igrejas, a beleza das imagens de santos e o luxo da decoração interior. Mas a descrição mais simples é-nos dada por Huang Chenglan, poeta dos primeiros anos do reinado de Qianlong:

    "De cortinas de seda e pórticos vermelhos, 
    De paredes de jade e pilares entalhados, 
    É composta a Igreja de S. Paulo."7

A Igreja de S. Paulo foi construída em 1572, e reconstruída em 1640. Era o núcleo erradiador da cristianização dos Jesuítas no Extremo Oriente até a expulsão dos frades em 1762 pelas autoridades de Macau, sob ordem do Rei de Portugal, e a melhor igreja de Macau antes de sua destruição, causada por um incêndio ocorrido em 1835. Entre as poesias chinesas há mais versos dedicados à Igreja de S. Paulo, como estes de Wu Xingzuo:

    "Quem sabe de uma religião de outro mundo
    que se radicou hoje em S. Paulo? 
    Nas árvores antigas repousa mais a cor do Outono, 
    Pelas janelas abertas penetram os raios da Lua. 
    Alguém será capaz de explicar isto? 
    Palavras, como flores, dispersando-se no ar. 
    Estou sentado há tanto tempo que esqueço a hora
    de retornar, 
    A melodia de qin*  lembra-me o músico Bo Ya."8 

[* Qin: instrumento musical chinês].

O poeta chegou a Macau ao Sol-poente de um Outono e visitou a Igreja de S. Paulo sob os raios lunares. Os versos mostram a sua sinceridade e reverência somadas a um sentimento embaraçoso causado por uma crença desconhecida. A doutrina da "religião de outro mundo" é inopinável para o poeta, mas a música tocada num instrumento da igreja fê-lo esquecer do regresso a casa.

Esta música era a de um órgão, instrumento ocidental que acompanhava o coro, a celebração do sacramento e a reza na igreja. No 29° ano do reinado de Wangli (1601), Wang Linheng já tinha ouvido este instrumento do qual, dizia ele, extraía-se "música natural".9 Durante o reinado de Kangxi houve muitos registos sobre o órgão. Liang Di escreveu uma poesia longa, descrevendo como o seu amigo, subcomandante Lang Yifu, apreciou o som daquele instrumento ocidental, quando fez uma inspecção em Macau, e como o imitou, construindo um outro com sons mais bonitos e o ofereceu ao Imperador chinês:

    "Quando toca a música no andar superior de S. Paulo, 
    Dentro e fora, a uma distância de cem lis, 
    ouvem-se os sons, 
    Que são suaves como se se cortasse uma peça de
    seda com a tesoura, 
    São nítidos como se um ganso grasnasse na estepe, 
    São harmoniosos como se uma andorinha
    cantasse na árvore, 
    São tristes como se um macaco chorasse no bosque. 
    Ora um rio caudaloso e gelado passa por três
    cascatas, 
    Caindo no fundo do tanque e formando uma
    cortina de pérolas; 
    Ora milhares de cavalos competem na corrida
    E as galopadas sacodem a montanha de
    estalactites; 
    Ora um dragão ruge no Pavilhão de Cristal, 
    E os peixes partem em todas as direcções, cheios
    de pavor; 
    Ora um sino ressoa, com cento e oito pancadas, 
    Comovendo toda a gente e despertando o
    mundo inteiro."10

A descrição alternante do som gracioso e saltitante do órgão com ruídos naturais e imagens visuais remonta à dinastia Tang. Um subcomandante da dinastia Qing conseguiu copiar um órgão melhor que o original! O poeta considerava que o órgão poderia entrar na China como um instrumento elegante. O facto merece registo na história do intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente.

Na torre da Igreja de S. Paulo havia um grande relógio, raramente visto no Extremo Oriente, que despertou também a atenção de poetas. Um monge que se chamava Shi Jishan escreveu, no reinado de Kangxi, versos que diziam ter o relógio tocado pontualmente para assinalar as doze horas.11 No primeiro ano do reinado de Qianlong, o primeiro subgovernador Ian Kuong Iam permaneceu em Macau em serviço, e ficou impressionado pelos toques sonoros e graciosos do relógio. Descreveu-o desta forma:

    "Ouve-se ao longe o som relaxado do sino do
    templo, 
    Cada badalada aumenta o silêncio da natureza. 
    A meia lua límpida afunda-se no mar, 
    enquanto as nuvens frias sobrevoam montanhas. 
    Na quinta vigíia, entre a escuridão e a claridade, 
    A natureza ganha mil formas imprecisas. 
    Perguntarei ao padre estrangeiro
    se ele sabe explicar este mistério."12

Meia noite; o poeta ouve as badaladas do sino da Igreja de S. Paulo. Na escuridão silenciosa, os sons são tão suaves e relaxados que se afundam no mar, a oeste, junto com a claridade da Lua, e somem-se nos montes, junto às nuvens frias. No momento da passagem da noite ao dia, todas as coisas parecem incertas, o que desperta a imaginação ilimitada do poeta, que não pode deixar de perguntar se os sacerdotes estrangeiros terão a chave do mistério. É uma obra célebre, que combina impressões da paisagem e sentimento.

A sul de S. Paulo fica a pitoresca Praia Grande, em frente ao canal de acesso à Porta da Cruz, rota necessária para os antigos barcos. O nome é devido às "Quatro Montanhas" — ilhotas de Tuo Wei, Ji Jing, Heng Qin e Jiu Ao, que dividem a superfície das águas em forma de cruz, que também é o sinal dos cristãos. Por isso, os poetas gostavam de associar S. Paulo à Porta da Cruz. No 23&° ano do reinado de Kangxi (1684), Liu Shizhong, natural de Qingshan, escreveu belos versos como estes: "Crianças estrangeiras foram, durante a noite, à Igreja de S. Paulo. / As embarcações estrangeiras reúnem-se, como estrelas, em redor da Porta da Cruz."13 Daí, surgirem outros versos excelentes, como: "A Lua subiu ao templo de S. Paulo ao som do sino / O vento provocou grandes vagas na Porta da Cruz",14 de Li Xialing; "A montanha está perto do templo de S. Paulo / O mar está dividido na Porta da Cruz",15 de Shi Jishan; "A miragem no mar é a Porta da Cruz / A miragem na terra é o templo de S. Paulo", de Huang Chenglan;16 e "Envolvidos entre névoas, os navios ancoraram, / Trazendo o catolicismo de Jesus. / As ondas do mar batiam no Templo de S. Paulo hoje pela manhã, / Nasceram as nuvens junto da Porta da Cruz ontem à noite",17 de Chen Tan.18

Os poetas da dinastia Qing não pouparam pinceladas para descrever as actividades dos sacerdotes católicos, principalmente dos Jesuítas. O prelado da Diocese de Macau, sediado na Igreja de S. Paulo, era chamado pelos chineses fawang (rei da lei). Os versos de Shi Jishan dizem: "Os seus chapéus feitos de folhas de bambu são superiores aos tuduns / Os palanquins gradeados são melhores que as carroças."19 A cena em que um fawang aparece num desfile não é nada inferior à de um alto funcionário chinês que sai de um coche de luxo. Por sua vez, Qu Dajun escreve: "A missa realiza-se no templo de S. Paulo / A autoridade estrangeira é fawang."20 Para o autor, o prelado de S. Paulo tem mais autoridade que o capitão (governador), funcionário superior de Macau. No seu trabalho Guangdong Xinyu, vol. I, diz que "no templo de S. Paulo, era o fawang quem ministrava os castigos impostos aos criminosos estrangeiros. Se ele não concedesse clemência, mandava logo executar o criminoso; se admitisse eventualmente o arrependimento, mandava torturá-lo devidamente com um gancho de ferro em brasa até que todo o corpo estivesse tinto em sangue, a fim de não ser castigado no inferno." Na Idade Média, os sacerdotes da Europa Ocidental possuíam privilégios jurídicos e poderes judiciários. O poder do prelado do templo de S. Paulo seguia precisamente a tradição das igrejas feudais do Velho Continente.

As freiras (as nuxius, em documentos chineses) também tinham os mesmos privilégios jurídicos. No reinado de Qianlong, Ye Tingxun dizia, num de seus poemas: "A Igreja de Fátima e a Sé Catedral observam os ritos / As freiras sempre agem conforme os costumes.21 Por seu turno, o poeta Li Xialing explica:"Se uma mulher for um dia freira, / será respeitada por todo o agregado familiar. / Mesmo que mate pessoas como formigas, / ninguém pode reclamar. / Com o papel da setença tirado da bacia, / faz justiça como um juiz." As duas passagens supra baseiam-se no Capítulo sobre os Estrangeiros da Monografia de Macau, compilada por Tcheong U Lam e lan Kuong Iam: "Quando uma mulher se faz freira, todos os membros da família tornam-se parentes do Buda. Se alguém da família incorrer em grande falta, basta uma simples intercedência da freira para que seja absolvido."

Nas dinastias Ming e Qing, tanto os portugueses de Macau como os frades católicos eram considerados "estrangeiros naturalizados" ou "enviados do Ocidente", estando sujeitos à "Corte Celestial", razão pela qual podiam estabelecer-se na China. Um testemunho disso é o poema "Xiangshan Ao", de Du Zhen, que regista o diálogo que manteve com um frade, quando visitava Macau:

    "Encontrei-me com um velho, 
    Os cabelos brancos cobriam-lhe as orelhas. 
    Apoiado numa bengala e de sandálias, 
    Está de pé na berma da rua, 
    Com a cabeça inclinada, murmura: 
    'Cheguei à China com admiração da sua moral, 
    Todos nós beneficiamos desta Corte Celestial
    que é generosa. 
    A população é incutida por sábios geração
    após geração, 
    persistindo infalivelmente na virtude dos vassalos.'
    Fiquei muito contente por ter ouvido isso, 
    Puxei a rédea e parei o coche para saudá-lo: 
    'Hoje em dia todo o mundo louva as graças da
    dinastia Qingque
    trata com a mesma hospitalidade quem
    quer seja. 
    Espero que transmita essa mensagem ao
    País do Atlântico
    que é nosso vizinho mesmo que fique tão longe.'"22

O velho frade demostra ao inspector chinês ser muito mais "obediente" do que seus antepassados Jesuítas, como Mateus Ricci ao enviar carta ao Imperador da dinastia Ming. Por seu turno, o inspector Du Zhen representa o orgulho e a arrogância do Governo da dinastia Qing que nada conhecia da situação mundial e mergulhava cegamente na "superioridade da Dinastia Celestial".

Erguiam-se em Macau muitas igrejas onde se encontravam numerosos frades. Como discípulo do budismo, Shi Jishan ficou surpreendido com o facto de encontrar muitos frades do templo de S. Paulo a andar pelas ruas de Macau. Escreve então:

    "Todas as pessoas com quem me encontrei, 
    São frades do templo de S. Paulo. 
   ....... 
    O culto do budismo atingiu a decadência, 
    Enquanto os estrangeiros abarrotam as igrejas."

Comentando a poesia, Chen Yuan explica que, vendo as frequentes celebrações de sacramentos cristãos, o monje Shi Jishan lamentava o estado vulnerável em que se encontrava o budismo e incitava a sua recuperação, inspirando-se no espírito católico.23

Muitos versos descrevem a vida quotidiana dos frades. Sendo o catolicismo estranho aos autores, é difícil distinguir realidade e ficção. O poeta "Liu Shizhong refere-se à vida dos frades nos versos: "Começam a aula da manhã ao ouvir o toque de sino do Sol-poente / Terminam a reza ao anoitecer", dando a entender que iniciam os estudos, que deveriam fazer pela manhã, apenas no entardecer, passando mais um dia sem nada fazer. A descrição é muito diferente da dos registos católicos. Wu Li disse no seu trabalho: "Com as aulas divididas em dois períodos de nao e you do dia, / Estão à espera do sinal para estudar duas horas", implicando que os frades tinham duas aulas, respectivamente às seis horas da manhã e às sete da noite. Lu Xiyan faz o mesmo registo, dando-lhe outra forma: "Há intelectuais que / Envergam roupas bonitas / Não deixam de estudar / Entram e saem da igreja / Lêem os livros e explicam a doutrina."24 Por este motivo, a percepção de Liu Shizhong é errada ou, no mínimo, parcial.

A maior parte das poesias sobre a vida dos frades refere-se a questões de ordem sexual. Chen Guan escreve os versos: "Uma vez que tivesse o filho / daria ao fawang para baptizálo."25 Li Xialing diz: "Uma vez que passe a noite no quarto de Deus / Haverá entes que me elogiem nas ruas." Zhang Lin também diz:"Raparigas foram ao templo de S. Paulo / disseram por graça que queriam ter filho com o fawang."26 Todos estes versos descrevem relações ilícitas de frades com mulheres estrangeiras. Ye Tingxun também verseja:

    "À luz das velas acesas e com o ruído dos tambores, 
    A melodia da orquestra acompanha a noite toda. 
    Os frades católicos não obedecem aos tabus do
    budismo, 
    bebendo durante toda a noite com raparigas
    bárbaras ao colo."

O budismo impõe disciplinas rigorosas segundo as quais os discípulos não podem pensar em sexo, nem ingerir álcool. Porém, o que os frades ocidentais faziam era completamente diferente.

De facto, a Bíblia Sagrada apela ao ascetismo. Os sacerdotes católicos não podem casar-se. O ascetismo era uma disciplina frequentemente apregoada nas igrejas, na Idade Média. Porém, convertendo-se numa parte da classe dominante feudal da Europa Ocidental, e possuindo grandes riquezas e privilégios, a vida de frades e de aristocratas tornou-se inevitavelmente mundana e corrupta. No fim da Idade Média, alguns frades mantinham relações permanentes com mulheres, amantes ou prostitutas. Não raro os frades aristocratas levavam vida mais corrupta que a de vassalos feudais. A corrupção nos mosteiros suscitou uma séria crise e foi uma das causas dos movimentos da Renascença e da Reforma Religiosa. Os actos lascivos de frades, descritos nas poesias, constituem justamente a confirmação dessa decadência.

Obviamente, uma parte das descrições dos poetas chineses descurou da verdade. Exemplo disso são os versos de Chen Yanyu: "Mulheres estrangeiras reúnem-se de dia / aceitando em segredo os ensinamentos do sacerdote." Porém, de facto, aquelas mulheres iam declarar os pecados aos confessores da igreja. O mau juízo também acorre nos versos de Pan Youdu, segundo os quais: "São reis os sacerdotes, que levam vida confortável, / Todas as mulheres querem visitá-los para pedir os ensinamentos." A respeito das relações entre os dois sexos, a China Antiga seguia a instrução tradicional do confucionismo, segundo a qual "tudo é confuso se não se distingue o homem da mulher" e "homem e mulher não podem ter contactos físicos". Para o budismo, os contactos entre mulheres e monges nas actividades religiosas são sempre considerados "actos lascivos". Xu Dashou disse, no seu trabalho Zuopi, escrito nos finais da dinastia Ming: "Todas as mulheres estrangeiras que seguem a crença estranha vivem agrupadas, aceitando em segredo os ensinamentos religiosos. Elas têm de fazer muitos serviços na igreja, inclusive regar, deitar óleo, provar sal, acender velas, dividir massa, agitar leques, abrir tendas, usar indumentária própria, e, à noite, ficar juntas. O que é isso?"27 Aí, podemos ver a razão de tal incompreensão.

É necessário sublinhar que uma parte dos missionários que se encontravam na China, principalmente os Jesuítas, observava as instruções da Bíblia Sagrada, e não mantinha relações com mulheres. No 59° ano do reinado de Kangxi (1720), o Imperador escreve sobre os Jesuítas que trabalhavam para a Corte:"Nestes duzentos e tantos anos, desde a chegada do padre Mateus Ricci, os estrangeiros não têm praticado actos corruptos e libidinosos, nem têm transgredido as leis da China. Eles concentram-se apenas em praticar a sua crença em tranquilidade."28 Outra passagem que reforça o testemunho de Kangxi pode ser encontrada na Monografia de Macau, desta feita, nos primeiros anos do reinado de Qianlong: "[Os sacredotes estrangeiros] não têm esposas nem casas, mas são rodeados de mulheres europeias que tomam conta deles. Fazem das igrejas suas casas e ali se abrigam para maior convivência, como os bonzos tauistas... Todos estes bonzos [padres] frequentam as casas dos estrangeiros. Quando entram nessas casas, a fim de visitar as mulheres dos estrangeiros, deixam uma bengala ou chapéu-de-chuva do lado de fora da porta. Os homens, quando voltam, deparando-se com esses objectos, não entram. Porém, as regras do Convento de São Paulo são mais severas. As mulheres estrangeiras, quando entram nas igrejas, é para receberem explicações sobre as fórmulas sagradas. Os frades dos conventos não saem por qualquer motivo. Quando saem, são infalivelmente acompanhados por outras pessoas. E escrevem os seus nomes nas tábuas para informação."29 Este registo é bastante fiável.

SACRAMENTOS RELIGIOSOS

O catolicismo é a crença religiosa mais difundida em Portugal. Os portugueses residentes em Macau mantiveram, portanto, a tradição religiosa de seu País. Ao mesmo tempo e comoconsequência natural, tal como já foi dito no início, Macau tornou-se o centro de propagação do catolicismo no Oriente. Por este motivo, as igrejas promoviam frequentemente actos religiosos em. Macau, ao longo do período Qing, embora a crença fosse proibida no Interior da China.

Os poetas entendiam a religião estrangeira como algo inteiramente diferente do budismo e do tauismo. Chen Guan transmite em seus versos: "A crença religiosa de Macau não é igual à da China / Não respeita o Rei Celestial nem Xaquia Muni." Por sua vez, Qu Dajun diz:"Todo o mundo presta culto a Deus, / e a mulher trata do dinheiro e cozinha para a família." O conjunto das práticas católicas e o estatuto da mulher são notas dissonantes do costume chinês.

Shan Zilian, no poema sob o título de "Jesus", anota uma solenidade católica em Macau em que deixa transparecer o ambiente festivo embora de carácter religioso:

    "No estrangeiro existe uma religião bárbara
    cujo nome é Jesus
   ... 
    Ouvi dizer que os diabos de Macau
    a respeitam com todo o coração. 
    Na tribuna, o padre prega em voz alta, 
    cativando milhares de ouvintes. 
    Com um ar solene, bate no gongo
    declarando os ensinamentos. 
    As borlas vermelhas brilham como estrelas, 
    As fitas multicoloridas trepam como dragões e
    serpentes. 
    Os discípulos aplaudem em conjunto
    e o bater das palmas ouve-se por todas as partes."30

A missa é o principal sacramento do culto católico, geralmente realizada aos domingos. Para os católicos, é sacrifício do sangue e corpo de Cristo. Wang Houlai diz nos seus versos:

    "Os raios do Sol nascente envolvem a Igreja
    de S. Paulo, 
    As névoas brancas abraçam a montanha
    milenar. 
    As mulheres estrangeiras envergam seus mais
    belos trajes, 
    Para assistir à missa a cada sete dias."31
    Ye Tingxun escreve sobre o mesmo assunto:"
    Com chapeuzinhos coloridos à cabeça, 
    As mulheres pisam o salão da Missa. 
    É verdade que Xiyang [Portugal] é país
    religioso, 
    Pois todos estão a rezar com devoção."

Jin Caixiang descreve, em versos poéticos, o ambiente vivo em que a Igreja de S. Paulo celebra, por um dia inteiro, um de seus sacramentos:

    "A Igreja de S. Paulo abre-se com o fumo
    auspicioso, 
    Para a missa, as mulheres estrangeiras entram
    com entusiasmo. 
    Sentadas no chão, rezam esquecendo a hora
    de retornar, 
    À volta do altar de lótus, reina um ambiente
    fervoroso."32

A missa é composta por leitura e oração. Liu Shizhong refere, na poesia intitulada "S. Paulo": "Todos estavam sentados ao redor de um estrangeiro branco / Encontravam-se holandeses entre os ouvintes." Jin Caixiang escreve: "Com um par de mãos finas como lótus, / as mulheres seguram a sutra com toda a piedade. / Acabam de contar o rosário, / enquanto o sacerdote enceta nova leitura." "Um clamor parece ter vindo da vastidão do céu, / A melodia suave do órgão ecoa ao estilo antigo. / Como se escutassem a música soberana do budismo, / As mulheres começam a se silenciar." "A cerimónia foi realizada ao ar livre / Já se punha o Sol quando terminavam as rezas / Hoje posso regressar mais cedo a casa / Passarei, talvez, noutra altura, pelo Seminário de S. José."33

A penitência, aliás a confissão, constitui um outro sacramento importante do catolicismo. Na ocasião, os penitentes deviam declarar os próprios erros ou pecados aos confessores, enquanto estes deviam manter a confissão em segredo, além de indicar os meios para expiar as faltas. Cai Xianyuan descreve-o de forma vívida:"Centenas de mulheres estrangeiras / Chegam ao templo de S. Paulo aos domingos / Confessam os pecados perante o sacerdote / Murmurando numa língua difícil."34

A respeito de festas religiosas, a poesia de Pan Youdu refere-se ao jejum: "O jejum é Dia Peixe / Não se come carne de vaca nem de carneiro / Menos peixe e marisco."35 Nas igrejas católicas, os dias de jejum limitam-se apenas à Quarta-Feira de Cinzas e à Sexta-Feira Santa, respectivamente conhecidas pelos chineses como dazhai (grande jejum) e xiaozhai (pequeno jejum). No xiaozhai, os católicos abstêm-se apenas de animais de sangue, podendo beber líquidos. No dazhai, principalmente no dia da morte de Jesus e na véspera do Natal, os católicos devem comer menos ao jantar e nada pela manhã. O "Dia Peixe" reporta-se ao xiaozhai, Sexta-Feira, portanto.

Ye Tingxun diz num seu poema: "A Dama Chang E abriu o palácio na Lua em Bayue* / enquanto o Deus dos nove firmamentos dispersava flores"36 [*oitavo mês do calendário lunar]. Os católicos chamam Tianzhu (Rei Celestial) a Deus. A poesia descreve a procissão dos católicos que deitavam flores nas ruas de Macau para comemorar o aniversário de Nossa Senhora Santa Mãe, assinalado no dia 8 de Setembro, correspondendo geralmente ao mês oitavo do calendário lunar da China.

Portugal foi, em certo período da história, a nação mais poderosa em termos de navegação marítima. Por volta dos finais da dinastia Ming, o comércio de Macau com o exterior estava muito desenvolvido. Os portugueses de Macau dependiam de seus negócios com Goa e Timor.Por isso, as orações pela navegação favorável e bem-sucedida constituíam-se num importante acto da vida religiosa. Pan Youdu confirma-o:"Pede ao bom vento tocando o sino, / que o marido volte da navegação distante o mais rápido possível."

Na China Antiga, as queixas das mulheres das famílias de comerciantes constituíram um tema importante para as poesias de lamentação, que descreviam a solidão, a tristeza, a saudade e a angústia das mulheres jovens, que se lamentaram da permanente ausência dos maridos em frequentes negócios e que esperavam o seu regresso o mais cedo possível. Da mesma maneira, mas com grande piedade religiosa, as poesias de Macau da dinastia Qing faziam alusão às jovens mulheres das famílias portuguesas que se dedicavam ao comércio. Diz-nos Wang Zhen:

    "O meu coração está doente e o corpo exausto, 
    Amanhã será mais um domingo. 
    Em jejum, tenho que ir a S. Lázaro rezar, 
    e perguntar quando o marido regressará da Costa."37

"Costa" é a costa ocidental da Índia, ou seja, Goa e Diu, outras colónias de Portugal. Naqueles anos, os portugueses residentes em Macau gostavam de fazer negócios comerciais naquelas regiões. A poesia descreve vividamente como uma jovem mulher portuguesa, solitária em Macau, estava ansiosa pelo regresso do marido, ainda dedicado aos negócios na costa ocidental da Índia, além de exprimir a simpatia e os bons votos do autor àquela mulher em grande angústia.

Liao Chilin escreve versos semelhantes:"O marido navega pela Costa, a dez mil lis de distância, / Deverá regressar daqui a poucos dias, segundo a data calculada. / Vou ao templo de Fongsanmiu rezar pelo bom vento, / O meu coração já destroçado, ao ver para além do céu e das montanhas." Fongsanmiu é a Igreja de S. Lourenço, conhecida pelo povo chinês como Igreja da Fé no Vento. Construída em 1558, foi uma das primeiras igrejas católicas de Macau, onde era venerado S. Lourenço, protector dos navegantes portugueses. Logo após sua construção, uma grimpa foi erguida em frente ao templo.38

Ian Kuong Iam e Tcheong U Lam escrevem no Capítulo sobre os Estrangeiros da Monografia de Macau "(...) além deste templo, encontra-se a sudoeste o Fongsanmiu [Igreja da Fé no Vento, i. e., a Igreja de S. Lourenço]. Quando os barcos estrangeiros partem, os familiares dos embarcados, que anseiam pelo seu regresso, manifestam, neste templo, a sua fé no vento." Talvez os chineses considerassem que esta igreja tivesse a mesma função do templo chinês Tianfeimiu (Templo da Barra). A Monografia de Macau continua: "Quanto aos seus costumes, [os portugueses] exercem o comércio como profissão... Qualquer carga dum barco vale a enorme soma de dez mil taéis. As famílias abastadas, para aumentarem suas riquezas, possuem seus próprios navios... Os que são menos abastados associam-se a elas ou juntam-se em grupo de dez para poderem adquirir um barco. Os navios saem uma vez por ano e a sorte de dezenas, centenas de vidas fica então dependente deles. (...) As mulheres e crianças, a calcular a época do regresso, andam em volta das casas, gritando e implorando o vento sul. Se [os maridos ou parentes] morrerem, ou não regressarem, vão umas após outras pedir esmolas pela cidade."

Outro "sacramento" do catolicismo eram as bodas, também uma importante actividade religiosa naqueles anos em Macau. No dia do casamento, os pais levavam os nubentes à igreja para se ajoelharem à frente dum padre que, depois de orar, perguntava-lhes se concordavam com a união e, juntando as mãos do rapaz às da rapariga, declarava o casal unido por Deus e que jamais se separariam.39 Nas dinastias Ming e Qing, chamava-se a esta cerimónia jiaoyin (troca de sinetes ou alianças). No primeiro ano do reinado de Kangxi, o poeta You Tong escreve os seguintes versos, sob o título "Folangji":

    "Remam barcos que, como centopeias, 
    deslizam sobre o mar, 
    Quando entram no templo, já de longe seguram
    o báculo encarnado, 
    Por que se retiram depois de entregarem o selo
    em frente ao Buda, 
    E, quando fixam o seu casamento, por que vão
    pedir a Biqiuni?"

Neste poema,40 biqiuni é um termo do budismo que implica bonzo, simbolizando aqui o padre que presidiu a cerimónia nupcial.

As cerimónias nupciais realizavam-se em igrejas determinadas. A Monografia de Macau diz: "As igrejas de Santo António, Sé Catedral e S. Lourenço são divididas entre a população estrangeira de Macau para nelas celebrar os seus casamentos, que não são permitidos nas restantes." O mesmo documento descreve que "(...) no canto norte, encontra-se uma igreja para onde vão todas as raparigas e rapazes estrangeiros que sentem mútua simpatia, para venerarem as divindades e prestarem os seus juramentos, findo o que os bonzos escolhem um dia auspicioso para unir os seus destinos. Esta igreja chama-se Templo de Huawang." Segundo a tradição chinesa, Huawang é o "Rei das flores": a flor simboliza a união dos sexos. Por isso, os chineses chamavam Templo de Huawang à Igreja de Santo António que ministrava, principalmente, as cerimónias nupciais.

Segundo o costume ocidental, a mulher administrava os assuntos domésticos e o homem, depois do casamento, vivia geralmente na casa da mulher. Vejamos o que nos diz Li Xialing: "A mulher comanda a casa depois da jiaoyin E o homem oferece chá quando chega um visitante."41 O casamento na China dá primazia ao homem, pelo que era a noiva quem cuidava dos convidados durante a boda, razão pela qual os documentos chineses dizem que "as mulheres ocidentais são privilegiadas"42 ou "a mulher ocidental é mais respeitada que o homem".43

Quanto à jiaoyin, Chen Guan dá-nos uma descrição mais concreta:

    "As alianças usam-se com o cheiro fantástico
    do amor que une os dois patos-mandarim. 
    Do casamento jamais ficarão arrependidos, 
    E quando tiverem filhos, levam-nos a baptizar."

O mesmo consta no Registo do Distrito de Xiangshan, compilado no reinado de Qianlong: "A mulher é mais respeitada que o homem. Toda a gente fica contente quando nasce uma filha. Na época de contrair matrimónio, são os pais que escolhem o noivo e apresentam-no à filha. Se esta concorda, oferece logo o anel ao homem como sinal de casamento. No dia das bodas, o casamenteiro leva o casal à igreja. Um padre, antes de recitar uma oração, pergunta aos dois nubentes se não vão ficar arrependidos com a união, e os dois dizem que não. Depois, o casamenteiro conduz todos os parentes e amigos para a casa da noiva, onde ocorre um banquete. Em seguida, a família do rapaz também prepara um banquete como retribuição." Quanto ao baptismo, citado no último verso acima, é outro importante sacramento cristão.

CONHECIMENTO CHINÊS DO CATOLICISMO

Das poesias sobre Macau e outros registos afins, da dinastia Qing, podemos observar que, quer como entendimento popular, quer como atitude de intelectuais, a apreciação dos chineses sobre o catolicismo, naquela Dinastia, baseava-se sempre na sua cultura. Isto é, eles viam esta religião que lhes apresentava o Ocidente com os olhos dos valores tradicionais. O que pode explicar isto claramente é o emprego do método analógico: são frequentemente aproveitadas as crenças e costumes existentes na China, principalmente o budismo, ao se referirem aos mais variados aspectos da religião ocidental.

Apesar de terem sido distintas as linguagens poéticas e as técnicas clássicas e modernas de descrição, a analogia desempenhou sem dúvida um importante papel na composição das poesias.44 Nas citações feitas neste trabalho, a igreja católica é chamada pela crença popular de si (templo), baofang (edifício de preciosidades), shanmen (porta da montanha), jinxiang (imagem dourada), e liantai (plataforma de flor de lótus), e pelo público em geral como miao (templo). Jesus é conhecido por Tianzhu (Senhor do Céu); bispo por fawang (rei das leis) ou daheshang (grande monge); o padre ou frade por seng, shami e biqiuni, termos todos pertencentes ao budismo. Por sua vez, nushi (freira) encontra-se no antigo documento Shijing Zhounan. Como país católico, Portugal era conhecido por Foguo (País de Monges), e a Bíblia Sagrada entendida como Xinjing (Sutras do Coração), também termos budistas.

Quanto aos sacramentos, a nota ao poema de Chen Guan, "O vento e chuva na Porta do Mar abala a Igreja de S. Paulo", descreve Jesus como "ancestral da crença estrangeira".45 Ao mesmo tempo, este trecho de verso: "saudar Jesus com frutas e incenso", lembra o culto chinês aos entes sobrenaturais, aos quais são feitas as mesmas oferendas. Na poesia de Liao Chilin, a expressão nianxiang (queima de incenso), termo do rito budista na China, foi utilizada para descrever o culto a Jesus, a divindade ocidental. Por sua vez, na poesia de Jin Caixiang, o baibamunizhu (108 contas de rezar do budismo) foi empregado para designar o rosário que os católicos usavam na reza. Além disso, as poesias referem-se ao culto dos santos como libai; à penitência como chanhui; à Igreja de S. Lourenço como Fengxintang ou Fengshuntang; à oração pelo vento favorável como qifeng e à cerimónia de casamento como jiaoyin. As poesias "Igreja de S. Paulo", de Wu Xing, e "Soa o Sino de S. Paulo", de Ian Kuong Iam, mostram plenamente o humor do budismo, desenvolvendo o estilo suave dos grandes homens de letras chineses Bai Xiangshan e Su Dongpo, respectivamente das dinastias Tang e Song. Podemos afirmar que estas poesias fazem a apreciação da Igreja de S. Paulo com o sentimento religioso do budismo.

As anedotas do budismo impregnam a descrição dos sacramentos religiosos cristãos. Por exemplo, Jin Caixiang refere-se à lição dada pelo padre como banghe (advertência com paulada). A expressão denota o facto de que, quando um monge budista superior ensinava os discípulos caloiros, dava frequentemente pauladas ou sustos para advertir os ouvintes, e comprovar se estes acompanhavam atentamente a lição que lhes dava. O verso "Ouve-sefanbei na Montanha de Yushan" descreve as rezas ou coro dos católicos a acompanhar a melodia do órgão. Diz a tradição que, durante o período dos Três Estados, Cao Zhi deslocou-se à Montanha de Yushan (no distrito de Donga, da província de Shandong), e ouviu o coro de súplicas pronunciadas pelos monges. Daí, inventou um instrumento chamadofanbei, imitando o ritmo e tom das rezas. O "acto ao ar livre", da poesia de Liao Chilin, demonstra a lição dada pelo sacredote porque, segundo o costume budista, os monges superiores também presidiam os actos ao ar livre, mas a cada cinco anos.

Por que aproveitavam os poetas chineses a analogia para apresentar o catolicismo? Podemos encontrar razões na cultura tradicional da China e na crença cristã.

A China é um grande país de civilização milenar. Tendo por centro a doutrina do confucionismo e por auxiliares o budismo e o tauismo, a cultura tradicional da China tem raízes profundas. Porém, o confucionismo não é, a rigor, uma crença religiosa. Por sua vez, o budismo o é, mas veio de fora. Entretanto, o budismo percorreu, até as dinastias Ming e Qing, uma história de mil anos na China, adaptou-se pouco a pouco ao ambiente chinês e estabeleceu-se na cultura chinesa, convertendo-se em parte dela. Os grandes monges mantiveram estreitas relações com os intelectuais, enquanto os termos e teoria do budismo foram se infiltrando na linguagem poética. Os chineses praticavam culto a diversas divindades e mantinham uma atitude tolerante para com as diférentes crenças, além de terem apoiado a conciliação entre religiões distintas. Por este motivo, quando o catolicismo entrou na China como uma nova fé estrangeira, os chineses, naturalmente, compararam-no com a tradição budista e descobriram pontos de semelhança entre ambas. É a razão principal do emprego de tantos termos budistas análogos na descrição do catolicismo.

A dinastia Qing é a fase inicial dos contactos culturais sino-ocidentais. Devido às limitações de conhecimento dos escritores chineses e da capacidade de entendimento dos leitores, os poetas não podiam deixar de aproveitar a analogia para apresentar o catolicismo. Mas, obviamente, esta metodologia é prejudicial. Verificou-se que o conhecimento dos chineses quanto ao catolicismo poderia permanecer somente a nível superficial, apesar de ter progedido um pouco nos finais da dinastia Ming.

Por parte do catolicismo, nessa época, o Pe. Mateus Ricci e seus continuadores integraram os usos e costumes do rito popular chinês com a apresentação dos conhecimentos científicos e tecnológicos ocidentais, para cumprir a sua missão de cristianização. Nos primeiros anos, a partir de sua entrada na China, imitando a tradição budista, Mateus Ricci cortou os cabelos, usou chapéu e roupa de monge, chamou-se a si próprio xiseng (monge estrangeiro) e à igreja chamou-a si (templo), a fim de facilitar o contacto com os chineses.47 Quando escreveu o trabalho Tianzhushiyi, utilizou-se de termos budistas: "São cada vez mais numerosos os que praticam o egoísmo, são cada vez mais reduzidos os que se dedicam à verdade. Por isso, Deus chegou pessoalmente à Humanidade com a maior bondade para salvar os seres e tornar todos conscientes."48 Os factos comprovam que os padres católicos aproveitaram o budismo para difundir a sua fé. Eis, portanto, outra razão de ser da analogia nas poesias de Macau.

Posteriormente, Mateus Ricci compreendeu ainda mais, na sua missão religiosa, a essência da cultura tradicional da China, que sempre teve por centro a teoria de Confúcio, e chamou-se, desta vez, a si próprio "confucionista" estrangeiro, além de ter adoptado uma atitude tolerante para com os ritos de culto a Tian (Céu), a Confúcio e aos antepassados, expressões que tinham estreitas relações com o confucionismo, a fim de reduzir as resistências à difusão do catolicismo na China e acelerar o ritmo da sua missão. Entretanto, a atitude tolerante de Mateus Ricci contrariou as regras do catolicismo ortodoxo e provocou acesa polémica no seio dos missionários, que durou mais de cem anos. Finalmente, esta atitude foi censurada pelo Chefe da Igreja católica-romana, o que provocou um confronto directo entre a Corte Imperial da China e o Papa Inocêncio XI. No 59° ano do reinado de Kangxi (1720), o Imperador fez publicar um decreto de interdição, banindo a religião católica. O catolicismo sofreu então grandes revezes na China.

Pertencendo à superstrutura, e ao contrário da ciência e tecnologia, a religião e a política são difíceis de ser introduzidas noutro país. O catolicismo, que representa a cultura ocidental, tinha uma enorme diferença em relação à cultura tradicional chinesa. Ao mesmo tempo, as actividades católicas mantiveram estreita relação com a invasão colonialista ocidental. A essência da Questão dos Ritos provou que a atitude do catolicismo ante a cultura chinesa foi de subjugação e não de conciliação. Referindo-se à entrada do budismo da Índia na China, Tang Yijie apontou como o budismo percorreu um caminho entre depender formalmente da cultura e pensamento chineses, confrontar-se depois e tornar-se finalmente parte deles,49 o que representa, na realidade, as três etapas dos contactos da cultura budista indiana com a China tradicional. Para o catolicismo, os esforços de Mateus Ricci de conciliação com os ritos, os costumes e o pensamento da China constituíram a primeira etapa. A Questão dos Ritos foi a segunda. Porém, o resultado dessa polémica e a luta contra as "crenças estrangeiras", por motivo de agressões na mesma altura perpetradas pelas grandes potências ocidentais contra a China, impediram o avanço da integração entre a cultura cristã e a tradição da China. A crença cristã não conseguiu, por fim, integrar-se na cultura chinesa, tal como fez o budismo. Por isso, durante os anos da dinastia Qing, em que as expressões do budismo já eram habitualmente usadas na composição de poesias, a nomenclatura católica continuava sendo rejeitada. Trata-se de mais uma razão da analogia que então aparece nas poesias de Macau na apresentação do catolicismo.50 Os factos comprovam, de outro ângulo, que, além de ter sido primário o nível de conhecimento dos chineses quanto ao catolicismo, não existia a possibilidade de elevá-lo.

As poesias de Macau da dinastia Qing apresentam diversas posições chinesas quanto ao catolicismo: 1) considerá-lo um "costume estrangeiro", sem claramente o apoiar ou censurar;2) manter uma atitude tolerante; 3) considerá-lo um produto de "costumes estrangeiros", encarando-o com desprezo e ironia.

Com veemente tendência anticatólica, o poema de Shi Jishan, "Ilha Verde", diz:

    "Os cães ladram enlouquecidos
    afugentando as gentes, 
    Com a invasão das águias famintas, 
    os pássaros gritam com tristeza nas árvores. 
    Em quem confiamos para alcançarmos dos
    bárbaros
    a restituição do pavilhão chinês, 
    a fim de o transformar num local de pesca?"51

O autor qualificou os padres católicos como "cães" e "águias famintas", manifestando a sua indignação pela ocupação da Ilha Verde, território da China, e o forte sentimento nacional.

Qiu Duiyan diz no poema "Aomen":

    "Quando haverá um general Fu Bo, 
    Que governará os assuntos militares? 
    Ameaçará igrejas católicas, 
    Para estas obedecerem à nossa ordem!"52

Fu Bo, general da dinastia Han Oriental, foi registado nos anais da história pelas façanhas que o levaram a conquistar Cochim. O autor manifesta o desejo de ver surgir um general capaz de proezas como as de Fu Bo, que poderia combater ao sul da cordilheira de Lingnan e recuperar Macau, a fim de golpear duramente as forças do catolicismo. A poesia demonstra a concepção tradicional do confucionismo contra a invasão estrangeira e pela defesa da integridade territorial do País.

As personalidades locais de Guangdong estavam preocupadas com as actividades católicas em Macau e sua influência sobre as restantes regiões do País. Shan Zilian disso dá-nos prova:

    "Quem está preocupado com a situação, 
    Não deixa de suspirar. 
    Que absurda crença essa, 
    Cuja sinistra tendência sabotará o
    confucionismo."

Os versos consideram que deverá ser interditado o catolicismo, porque suas opiniões heréticas sabotarão a ordem social e o coração do homem, além de confundir o confucionismo.

Liu Shizhong diz, num poema: "É necessário ensinar aos estrangeiros os seis sutras / Para eles respeitarem os ritos e crenças da China." Isto é, devem-se mudar os usos e costumes dos estrangeiros, colocando-os conforme os seis sutras do confucionismo, para eles abandonarem o catolicismo e compreenderem a importância de dedicarem culto, segundo os ritos e crenças chineses.

"Os intelectuais chineses persistem em considerar que o seu património, traje e sistema social são superiores aos dos estrangeiros. Os estrangeiros devem aprender, portanto, com os chineses." Esta opinião de Liu Shizhong representa a atitude geral dos intelectuais quanto ao catolicismo e constitui um importante factor impeditivo de sua difusão na China.

As poesias de Tcheong U Lam, um dos autores da Monografia de Macau, são obras as mais representativas da tendência anticatólica. Tcheong U Lam, natural de Xuancheng, província de Anhui, foi Prefeito do distrito de Xiangshan, e subprefeito de Macau entre o 11° e 13° anos do reinado de Qianlong (1746-1748). Naquela altura, o catolicismo foi interditado pela Corte Imperial da dinastia Qing. Em Fevereiro de 1747, Tcheong veio a Macau para fechar o templo católico Tangrenmiao, e impedir a frequência de chineses nas igrejas. No retorno, escreveu sobre a Ilha Verde:

    "O mar é lavrado pelos barcos e pelo vento, 
    Demanda-se o caminho por entre a bruma e
    as ondas. 
    As montanhas perdem-se no mar sem
    ninguém voltar, 
    De novo no pavilhão de palha, as plantas não
    sentem a minha emoção. 
    Não se estranha o nascimento de Jesus em finais
    da dinastia Han, 
    Porque Ricci devia ser fiel à dinastia Ming extinta? 
    O imperador bem consciente, vai restabelecer
    a ordem, 
    acabando de uma vez com a heterodoxia que
    reina durante cem anos."53

O primeiro dístico refere que os portugueses residentes em Macau dependiam do mar, e dedicavam-se predominantemente ao comércio marítimo. O segundo, critica os imperadores Wangli e Chongzhen (da dinastia Ming) por terem tolerado os frades católicos, mas deixa transparecer certo fatalismo pela intertextualidade: conta-se que Qin Shihuang, imperador na dinastia Qin, ao mandar buscar medicamentos divinos no mar, não viu regressar os que transpuseram as montanhas. Nada poderia, portanto, impedir a derrocada da dinastia Ming. O terceiro dístico diz não haver como ficar alheio ao facto de que o nascimento de Jesus ter-se dado no momento em que a dinastia Han encontrava-se em decadência, e que o Pe. Mateus Ricci demonstrava falsa sinceridade ao entregar os tributos no Palácio Imperial. E o último dístico louva a dinastia Qing por ter interditado e censurado decididamente a crença herege que criou confusões nos cem anos imediatamente anteriores.

É mais significante o verso "Não se estranha o nascimento de Jesus em finais da dinastia Han" pois, segundo o dogma da trindade, o Criador Jeová e o Salvador Jesus são um só Deus. Os missionários diziam que o Deus Jesus nasceu na Judeia no 2° ano do reinado de Yuanshou, da dinastia Han Ocidental, que era filho da Virgem Maria, e que morreu crucificado. A tese é completamente diferente de Tian (Céu), na cultura tradicional da China. Os antigos pensadores do materialismo da China consideravam o Céu um símbolo das leis naturais do cosmos. Por sua vez, os pensadores do idealismo louvavam a Deus como um ser sobrenatural que dominava os seres humanos e seus destinos. Por isso, os intelectuais chineses não aceitaram estes dogmas e nunca interromperam sua luta.

Jiang Dejing, intelectual da época, no prefácio ao livro Contra os Hereges, dizia aos frades estrangeiros que "(...) o supremo Senhor é Shangdi [Imperador Celestial, i. e., Deus]. Porém, para nós os chineses, o Filho do Céu [Imperador do Estado] é quem pode venerar Shangdi e não há quem se atreva a opor-se a esta prerrogativa. Conforme os ensinamentos acerca da vida, apregoados pelos nossos doutores, deve recear-se e respeitar-se o Céu. Se ele não existisse, não existiria a tranquilidade celestial. Mas como seria sua imagem? Mesmo que haja uma, penso que não tenha olhos profundos, nariz alto nem barba espessa."54 Nos primeiros anos de Kangxi, Yang Guangxian disse: "(...) Jesus foi condenado à morte, crucificado por ter-se rebelado contra o seu país, o que constitui uma culpa, pois confunde as relações entre jun (dominante) e chen (dominado). A mãe de Jesus tinha como marido José. Mas Jesus não era seu filho, o que constitui outra culpa, por não reconhecer o pai."55 A fidelidade e a piedade filial são dois princípios fundamentais do confucionismo. Segundo a propaganda dos frades estrangeiros, os defensores do confucionismo poderiam chegar à conclusão de que "o catolicismo não tinha monarca nem pai". Tcheong U Lam disse não "estranhar", mas, na realidade, isto significa "não estranhar os que sejam estranhos", considerando tal propaganda um disparate vulgar e absurdo. O verso "Jesus não estranhará o declínio da dinastia Han" demonstra não somente onível de conhecimento dos chineses sobre o catolicismo, como também, em certo grau, a contradição e o confronto entre a cultura cristã e a cultura tradicional chinesa.

    Outra poesia anticatólica de Tcheong U Lam:"
    Gasta-se muito ouro por mil sítios, 
    O relógio toca ao marcar doze horas. 
    Até hoje, a religião estranha ainda cheira mal, 
    O que aconteceu nesta terra dá que pensar. 
    No campo os padres soltam o cabelo para
    propagar, 
    Nas ruas eles impõem a sua crença. 
    Com o vento oeste, a geada murchou as ervas
    daninhas, 
    Chegando a Primavera, elas voltam a crescer."56

Guilherme Ung Vai Meng: "Igreja de S. Lourenço". Lápís sobre papel. 38X29cm, 1984.

O verso "Gasta-se..." implica que os frades difundiram a sua crença com tantas despesas, pretendendo comprar as pessoas. O verso "Até hoje..." diz que a influência negativa da difusão do catolicismo permaneceu até agora. O verso "No campo..." confirma que o catolicismo não passa de uma crença de um punhado de estrangeiros de cabelos soltos, propagando no campo abandonado, com a intenção de apoderar-se de um país alheio. Por último, o verso "Com o vento..." assinala que, apesar da interdição rigorosa, o catolicismo poderá recuperar e desenvolver-se, como as plantas que morrem abaladas pelo frio vento de oeste, e que ressuscitam na Primavera do ano seguinte.

Em fins da dinastia Ming e princípios da Qing, houve mais críticas contra os missionários, por terem seduzido os chineses a ingressarem no catolicismo. An Wenhui disse: "(...) Seduziram os chineses para ingressar no catolicismo com pretexto de conceder facilidades. Quem for admitido receberá pratas."57 Nos primeiros anos do reinado de Qianlong, o Prefeito de Xiangshan disse, no documento Situação de Macau: "Todas as crenças hereges querem riquezas com fraudulência, mas os estrangeiros promoveram a sua crença com despesas financeiras. Eles não pretendiam interesses insignificantes (...), prometendo ao povo facilidades. Um indivíduo miserável que for baptizado poderá obter a pensão anual de dez pratas, e se for um intelectual, dezenas."58

Tcheong U Lam combateu o catolicismo, a meu ver, pelas seguintes razões: por um lado, como funcionário local de Macau, ele devia cumprir a interdição do Governo Central; por outro, como intelectual feudal, estava na boa posição de defender a tradição do confucionismo. Tcheong U Lam, no relatório Solicitação de Interdição do Tangrenmiao, apregoa: "(...) Se não seguirem os livros dos Santos, será então em nome da religião que deverão ser infalivelmente expulsos. Se não for pelos rectos princípios do Imperador, será então pelo prestígio do Império que não serão tolerados. De resto, os súbditos do Império que se converteram à religião dos bárbaros não respeitam o decoro da Nação. É também de recear que o ardiloso feito dos bárbaros excite a maldade dos criminosos chineses. Deve-se, portanto, adoptar medidas de precaução."59 A análise mostra, por um lado, a ideia da defesa da tradição do confucionismo, prevenindo "os súbditos" de se converterem à "religião dos bárbaros" e, por outro, a intenção de evitar os contactos de estrangeiros com chineses, que poderiam ameaçar a dominação feudal da China. Trata-se de uma atitude coerente por ele adoptada, já que pertencia à classe no poder.

Quanto à tendência de tolerância, em comparação com a dinastia Ming, os missionários ocidentais suspenderam, durante a dinastia Qing, as relações com a sociedade intelectual e desenvolveram-nas mais com a população, particularmente após o lançamento da interdição do catolicismo nos últimos anos do Imperador Kangxi e durante o reinado de Yongzheng. O efeito foi passar a raramente encontrar, nos intelectuais, os que tolerassem abertamente o catolicismo, como Xu Guangqi, Li Zhizao e Yang Tingjun, da dinastia Ming. Na dinastia Qing, a única poesia que demostra alguma tolerância é a de Shan Zilian. A respeito da preocupação dos cantonenses sobre o desenvolvimento do catolicismo em toda a Província, escreve ele:

    "Os cantonenses não precisam de estar
    preocupados
    Com este assunto menos importante. 
    Se os estrangeiros não forem obedientes, 
    Eles residirão aqui dependentes do catolicismo; 
    Se eles forem obedientes, 
    Sua crença religiosa não passará de uma
    feitiçaria."

O autor achava que, se os portugueses residentes em Macau não obedecessem os costumes chineses, não poderiam viver um dià sequer sem o catolicismo. Se obedecessem os costumes chineses, mesmo que continuassem praticando o culto católico, os chineses não precisavam de se preocupar pois, enfim, a religião daqueles não passava de uma feitiçaria estrangeira.

CONCLUSÃO

É um facto muito interessante na história dos contactos culturais sino-ocidentais que os poetas chineses tenham descrito, nas antigas formas literárias da China, o catolicismo de Macau, que representava uma cultura ocidental. E podemos perceber, através disso, o importante papel que desempenhou Macau na história do intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente. Tendo como registos históricos as poesias de Macau da dinastia Qing sobre o catolicismo, que descreveram sistematicamente as igrejas, os frades e as diversas práticas religiosas, nota-se um grande progresso em comparação com as mesmas obras, mais vulgares e primárias, da dinastia Ming, quando o catolicismo iniciava sua missionação na China. Porém, a cultura tradicional chinesa tinha o seu próprio alicerce, firme e milenar. Os poetas, quando apresentavam o catolicismo, não deixavam de fazer analogia com o budismo e outras noções da sua própria cultura. As poesias, quer com desprezo, quer com uma evidente intenção contra, quer com tendência de certa tolerância, tratavam sempre a crença católica com os olhos da sua tradição. A dinastia Qing foi a época dos primeiros encontros culturais com o Ocidente, e também uma importante etapa em que a religião cristã enfrentou a cultura chinesa tradicional. O catolicismo tinha grandes diferenças em relação à China e estava estreitamente ligado às actividades da expansão ocidental, de maneira que não podia integrar-se directamente com a cultura tradicional. O facto determinou que os chineses da dinastia Qing só podiam ter um conhecimento elementar e superficial do catolicismo. Desde que ele fosse considerado um "costume alheio" ou uma "crença estrangeira", não haveria na China a possibilidade de elevar o nível de tal conhecimento.

Revisão e tradução de poemas por Yao Jingming.

NOTAS

1. YE Quan, Xiaobobian (Viagem pela Cordilheira de Lingnan), Zhonghua Shuju, 1987, p. 45. Gu Yingxiang, Ministro da Justiça no reinado de Jiajing, faz o seguinte comentário a propósito de Ye Quan: "Está em Guangdong há muitos anos e interessa-se pela literatura budista." Cf. HU Zongxian, Chouhaitubian, vol. 13.

2. FANG Hao, História do Catolicismo na China, Tipografia Comercial, 1947, tomo I, pp. 137-45.

3. CHEN Yuan, Catolicismo nos Fins da Dinastia Ming e Inícios da Dinastia Qing, Registado em Documentos não Religiosos, Zhonghua Shuju, 1980, pp. 204, 224 (Ensaios de Chen Yuan, 1).

4. CHEN Yanyu, Antologia de Lianshan, vol. 2.

5. LI Guangzhu, Aomen, vol. 2. Cf. TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, Monografia de Macau, Macau, Repartição Central dos Serviços Económicos, 1950; Registo do Distrito de Xiangshan, vol. 4: "Defesa Marítima de Macau."

6. DU Zhen, Antologia do Pavilhão de Jinwei, vol. 4.

7. HUANG Mingshi; HUANG Chenglan, Antologia do Pavilhão de Yinzhu, vol. 2; XU Yubin; SHEN Shiliang, Poesia de Guangdong Oriental, vol. 2.

8. WU Xingzuo, Antologia da Aldeia de Lincun. Wu Xingzuo, natural de Shanyin, província de Zhejiang (hoje Shaoxing), foi governador das províncias de Guangdong e Guangxi entre os anos de 1682 e 1689. O poema foi escrito quando inspeccionava Macau, logo após a tomada de posse.

9. WANG Linheng, Espadas de Guangdong, vol. 3.

10. SHI Jishan, Antologia do Pavilhão de Xianshe, vol. 14.

11. GONG Xianglin, Missão a Zhujiang.

12. TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte II.

13. LIU Shizhong, Antologia de Dongxi, vol. 2.

14. LI Xialing, Antologia de Shiyuan, vol. l:"Aomen", 4.

15. SHI Jishan, op. cit., vol. 13.

16. HUANG Mingshi; HUANG Chenglan, op. cit., vol. 2.

17. CHEN Tan, Antologia do Pavilhão de Ganyu, vol. 5: "Cem Poesias sobre o Mar Meridional", 16.

18. Chen Tan escreveu o poema em 1839. Antes dele, Wu Li, no reinado de Kangxi, já comparara, na sua poesia, a Shizimen (Porta da Cruz) à Cruz de Cristo. Yu Zhengxie (reinado de Jiaqing), no prefácio à Monografia de Macau, ao referir-se a duas "portas" shizi no Sul da Península, perguntava: "Será que servirão de abrigo aos católicos para atracarem os barcos em tempo de tufões? Se assim o for, ali estabelecer-se-ão, cedo ou tarde, e provavelmente criarão um entreposto comercial com a Formosa."

19. SHI Jishan, op. cit., vol. 14; TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte II.

20. QU Dajun, Wongshanshiwai, vol. 9. Luo Tianchi escreveu verso semelhante: "As leis estrangeiras respeitam ofawang." Cf. LUO Tianchi, Antologia do Pavilhão de Yingyun, vol. 5.

21. YE Tingxun, Antologia do Estúdio de Meihua, vol. 4.

22. DU Zhen, Inspecção em Guangdong e Fujian, vol. 2.

23. CHEN Yuan, OP. cit., p. 208.

24. FANG Hao, Figuras Importantes do Catolicismo na China, Zhonghua Shuju, 1988, vol. 2, p. 250.

25. CHEN Lanzhi, Antologia de Lingnan, vol. l; LUO Xuepeng, Documentos de Guangdong, série IV, vol. 25.

26. ZHANG Lin, Antologia de Yufeng, vol. 15; ZENG Juntang, Lingnan Guchui, vol. 8.

27. HUANG Zhen, Hereges, vol. 4.

28. Relações entre o Imperador Kangxi e o Representante de Roma: Documentos, 11.

. TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte II.

30. SHAN Zilian, Poemas de Xiaoquan, vol. 4; LI Changrong, Antologia de Liutang, vol. 12.

31. WANG Houlai, Antologia de Lugang, vol. 4; TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte I: "Situação de Macau."

32. FANG Hengtai, Antologia de Xiangping, vol. 9; LIANG Jiutu, Jifengqijue, vol. 17; Registo do Distrito de Xiangshan, vol. 16.

33. LIAO Chilin, Manuscritos do Pavilhão de Zhanhua, vol. l.

34. CAI Xianyuan, Antologia do Estúdio de Mingxin, vol. 2.

35. "Dia Peixe" é conhecido pelos chineses como Liyapishi. N. R.: A expressão correcta em língua portuguesa seria "Dia de Peixe".

36. YE Tingxun, Antologia do Estúdio de Furong, vol. 6.

37. TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte II: "Estrangeiros em Macau."

38. LAM, Domingos, História das Igrejas de Macau.

39. Bíblia, XIX.

40. YOU Tong, Obras Completas de Xitang, vol. 11.

41. Li Xialing utiliza a expressão zuotang que significa, no seu sentido próprio, "juiz sentado na presidência do tribunal para um julgamento", e, no verso, "comandar".

42. QU Daren, Nova Linguagem de Guangdong, vol. 2.

43. TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte II: "Estrangeiros em Macau."

44. A parte que se refere à analogia teve a colaboração dos Professores Cai Hongsheng e Jiang Boqin, aos quais manifesto meus sinceros agradecimentos.

45. HUANG Shaochang; LIU Xiaofeng, Antologia Seleccionada de Xiangshan, vol. 6.

. XU Yubin; SHEN Shiliang, op. cit., vol. 7.

47. XU Zongze, História da Cristianização da China, Xangai, 1990, p. 347.

48. RICCI, Mateus, Tianzhushiyi, vol. 2.

49. TANG Yijie, O Confucionismo na Cultura Tradicional Chinesa, Pacífica, 1988, p. 212.

50. Xu Songshi afirma que, até hoje, os habitantes das províncias de Zhejiang e Jiangsu continuam a chamar ao Natal e à Páscoa, respectivamente, o Dongzhi e o Qingming estrangeiros. Dongzhi, na Primavera, e Qingming, no Inverno, são festas tradicionais do calendário chinês, o que vem provar que a analogia ainda se aplica.

51. SHI Jishan, op. cit., vol. 14. A Ilha Verde era uma pequena ilha a noroeste de Macau. Os padres estrangeiros ali construíram uma igreja nos finais da dinastia Ming e princípios da dinastia Qing. Nos tempos de Kangxi, o edifício transformou-se num lugar de retiro para os missionários.

52. QIU Duiyan, Antologia de Yushan; LI Changrong, op. cit.

53. TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte I: "Situação de Macau."

54. HUANG Zhen, op. cit.; TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte I: "Administração de Macau."

55. YANG Guangxian, Budeyi, parte I.

56. TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte II: "Estrangeiros em Macau."

57. HUANG Zhen, op. cit., vol. l.

58. LIANG Ting, Alfândegas de Guangdong, vol. 28, parte III: "Comerciantes Estrangeiros."

59. HUANG Zhen, op. cit.; TCHEONG U Lam; IAN Kuong Iam, op. cit., parte I: "Administração de Macau."

* Professor de História na Universidade de Zhongshan, Cantão.

desde a p. 105
até a p.