
I. Introdução
A água é insondável
quando a dureza do céu abraça todo
o astro maleável;
a terra procura o repouso,
na mais alta das montanhas;
energia que se sobrepõe à doçura
dos lagos e dos rios.
Pensamos a serenidade assim
fluida e feminina;
e a tempestade, que desperta,
cobre-se de vento e de um ardor que penetra
a fundura antiga dos vulcões.
Nada é inacessível ao homem sem fadiga,
o céu, a terra, a criação e os modos de tudo isso ser:
jogo, cálculo ou destino.
II
o selo vermelho quer dizer, que o meu amor por ti
é muito antigo e prestimoso.
Dediquei-me tanto ao mistério deste sentimento
que esqueci a miséria da minha condição;
como Hi K'ang
abandonei, todos os amigos
para me dedicar a ti,
deixei de escrever, deixei de pintar,
julgo até que deixei de pensar,
pelo menos em tudo o que não fosses tu.
Esqueci tudo
o que um dia aprendi nos quatro compêndios,
foi difícil esquecer algumas partes de Ji.
Todos os poemas que acontece ler,
é através dos teus lábios que, sem que saibas, o faço;
ainda que não entenda o que murmuras.
Tu és o meu imperador
e o meu silêncio é o meu tributo,
não constarei dos tributários à corte da dinastia Qing,
nem uma das 602 figuras humanas eu serei.
O meu único espelho és tu.
Se acaso tu não és humana, eu não o serei mais.

III
sombras e impérios,
os peixes são mais reais, quando pintados,
ao lado dos caracteres que os nomeiam
e mares descansam na abundância de sombra
que o imperador lhes promete.
Prefiro os pássaros
porque são o oriente do oriente,
quando voame também quando adornam,
e não há caracteres que os imobilizem.
a felicidade e a moral
devem procurar-se nos poetas.
São eles que decidem o que é importante:
a seda, a tela, as palavras ou proezas heróicas

IV
abrupto é o pensamento dos que suspeitam;
o que preocupa os inimigos e aflige os deuses.
Durante o segundo século da dinastia Qing
viveu o imperador Qianlong, que apreciava a paz
e escrevia poemas em manchu e chinês.
Olhava para dentro das coisas e percebia
que o exterior não tinha um princípio
e que, uma vez olhando-o de perto, se reduzia a pó.
O imperador não sabia nada de geografia,
mas tinha um olhar tenaz, a que faltava,
o poder divinatório do fundador dos Han.
Sobre os homens e mulheres do Atlântico
ele mandou que se escrevesse:
que eram católicos e bons comerciantes,
além de que cultivavam a monogamia, entre si,
quando se gostavam

V
A gratidão era uma qualidade para o imperador
e uma forma de proceder, que não premiava evasivas;
assim se constroem casas quando o frio acossa
e se fazem sacrifícios aos deuses se ocorre a seca.
O rei Tang assim o fez, diz-se,
por vocação e ser humilde.
Melhor isso que morrer
em terras distantes
por pura vaidade,
porque desafiar os deuses
nunca foi de boa norma,
que o digam os generais de Long-si.
Certos povos criam bois para o talho,
um destino como qualqer outro,
e não vale a pena discorrer sobre isso;
em por mim preferiria caçar tigres;
mas nas montanhas da minha terra natal
vivem cervos, coelhos e javalis.
Como o presente é a colheita do passado
importa semear, para no futuro colher o futuro,
mas o bem só o presente o dá:
não faças um capote tão pesado
que o não suportes
ou uma lança maior que o teu tamanho

VI
Existe para o imperador uma relação
entre cavalos, geometria e cinemática,
isso não oferece dúvidas,
e ainda a propensão,
(natural num Qing),
à hipérbole e ao anacoluto;
(mas sem imagens como seria a narrativa do mundo?)
Cultiva a similitude para mostrar as diferenças,
as descrições abstractas exigem rigor
em tudo o que é concreto,
só assim ele pode ser levado a sério.
O estilo nunca é inesgotável
mas nada se ganha por dizê-lo.
(Se uma paliçada esconde outra paliçada, que por sua vez
esconde outra e assim por diante até ao infinito, percebe-se
que não há nada para esconder, mas disso nunca teremos a certeza.)

VII
O género descritivo é-lhe familiar:
os países aparecem como Dao,
a partir de um vazio imenso;
o vazio é o pano de fundo
onde tudo é nomeado
assim o mel, a madeira, o âmbar e as mulheres.
(Se multiplicarmos as comparações tornamos, aos
estranhos, o mundo menos estranho)
Combinar climas e cortes de cabelo,
vestuários e animais domésticos, competência e arrumo,
dá ao imperador a ilusão do conhecimento,
que é o que, do conhecimento se torna útil.
Como ele não pode religar o céu à terra,
(todos sabem que o que Zhuanxu engendrou
nenhum humano pode inverter),
ele é prolixo nas enumerações;
descrever o mundo
deveria sossegá-lo, e portanto, os seus súbditos,
assim o imaginamos
satisfeito com as suas obras.
Aquele que é pensado
pode não se reconhecer no quadro,
mas isso não deve afectá-lo muito,
Ao imperador dava imenso jeito
VIII
Homens e mulheres,
usam sapatos de couro preto
para facilitar o andar,
As cores são um contraste com a pele;
que ele imaginou
como os corvos ou a laca;
tudo não é mais que uma ligeira brisa na mente imperial,
o coração, sendo o lugar em que se naufraga,
é um adereço de que ele se despe.
Um pouco de história, que legitima contornos mais obscenos:
os Tang e os Ming são ruínas de uma melancolia
que, sendo antiga, é menos suspeita.
(enumerar aquilo de que se morre, seja fogo ou solidão,
deixa o sentimento exposto
à profusão de acusações e dúvidas)
Iluminura e texto, coabitam e resistem
a todas as tentações piedosas;
porque as cores são quentes e o porte altivo
não retira nada à miséria de que são vítimas.
A disposição vertical de figuras e palavras,
avessos à tradução e à fuga,
torna as figuras mais nítidas e o texto mais frio.
Só o vestuário é humano.
Quando se é escravo, olha-se a direito
para longínquas ilhas,
onde o inconcluído se encontra esperando,
assim o pensam os homens
as mulheres, essas, ligam-se mais ao mundo,
por isso se deixam decotar
e usam vestidos curtos
e tanto nas mãos como nos pés pulseiras.
IX
Agora o ar soturno e angélico,
o vestuário de preferência escuro,
e o desejo de perceber, o que o exterior
não pode nem deve poder.
Não se detém perante seja o que for,
classificar é uma paixão,
que toca ao de leve
o que se move e exclui.
Rituais, prerrogativas, oferendas, fisionomias,
em tudo julga ver sinais;
acumula, selecciona, dispõe por uma ordem.
Do insondável fica o que se vê que é quase nada.
Penso por instantes no atelier do imperador Quianlong:
as tintas, as telas, as palavras,
informações chegadas de longe,
(fragmentos desajustados ao todo que é seu desejo)
as insónias,
e o tapete de frases recolhendo
pormenores obscuros;
os riscos calculados e os inúteis
e ainda os que surpreendem
aquele, que na desordem,
ergue uma muralha que proteja
em repouso a alma

X
Em particular os lenços pretos
não aparecem na gravura,
desacordo entre o real e a sua representação,
que ao imperador deve ter desagradado.
Em tudo o resto, os de Goa são redimidos
pela substância do olhar, que neles depositou uma prisão,
onde a escrita e a pose mutuamente se anulam
e submetem a um destino aparente.
Enclausurados, ambos, no esboço imperial, olham
através do cerco dos nomes, nenhuma inquietação os move.
Eu próprio me resigno a um sorriso vago
quando registo a distância em lis;
e percorro as volutas dos bordados
que o imperador viu, ou julgou ver,
mas que o pintor obliterou
escondendo as mãos
É no plano das nãos que os raios de luz se cruzam,
nas margens desse encontro abre-se um espaço,
ondeo texto, pode cair,
a prumo

XI
Pode estruturar-se, agora, a realidade a partir
de desejos e apetites,
quando a tela era ainda um ermo
na mente do imperador. A fadiga enumerativa
exige que os passos, sejam substituídos
pelos lugares a que os passos conduzem;
a mesma fadiga exclui acasos e adianta pretextos,
para o que, sem pretextos, seria acidental e inócuo.
O discurso chama a si a orientação dos fins,
e a menor digressão torna banal
os adereços de que se rodeia,
porque a evocação satura e a contemplação comove.
Estirado no canapé, ele olha
o fundo do seu pensamento, detém-se por momentos
na linha de penumbra, que separa o acidental,
do que sendo estável, lhe é por enquanto inacessível.
Está cego, porque olha de dentro do cone de sombra,
para o lugar de onde vem a luz, ele quer ver
dos sinais a fulgurância, entrar
nesse ígneo caudal da sabedoria;
mas os sinais antes transparentes,
(ele assim o cria)
tornaram-se com a fadiga opacos,
ao entrar no sono estremece, lembra-se de tudo
o que esqueceu e mesmo o que não viu.
Quando acorda, sabe,
que o registo de hábitos, objectos, fisionomias e paisagens,
pode dizer-se de mil modos,
que no essencial se equivalem.
XII
O estilo torna-se vagaroso e cheio de minúcias,
Qianlong respira fundo,
sabe que a exaustão premeia mal o esforço,
mas não tem outro remédio.
Os efeitos do sincretismo são inesperados:
erudição, história, juízos apressados,
cavalgam na noite a confusa ciência
e a insónia:
os estrangeiros cumprimentam-se tirando o chapéu,
diz, cedendo aos caprichos de um rigor ardente
e contempla os céus do oriente, auscultando
presságios, que por ele façam o que não pode a memória,
alguma coisa que possa acudir à sua vontade de ser
sagaz e sentencioso.
Já não vê diferenças, a semelhança alastra,
como o outono se apodera de um pátio.
Quando do coração se expulsou o mundo,
juntam-se factos como brinquedos,
qualquer criança fica atordoada no meio deles,
quando são muitos,
assim se entregou à caricatura
e à prolixidade.
A tristeza é a confissão de um condenado
ao desperdício
à incerteza de um perdão
XIII
vou esquecer os helvéticos por agora
tal como os outros, foram um pretexto,
para que o império pudesse sair,
para fora das malhas do império;
essas malhas que o império tece:
elas sentam-se às mesas do "cofee Shop" do Lisboa
submetendo-se a comentários desonrosos,
passeiam, acetinados, os corpos,
pelos corredores anexos ao casino,
para que algum quai-lou
nelas ceve, barrigas obesas.
Foi, mais ou menos, assim, que ele me confidenciou:
vendendo as filhas aos antigos inimigos,
é como terminam todos os impérios

XIV
cabelos vermelhos stop
invadiram Pong Hu e a Formosa stop
usam chapéus pretos de feltro,
que tiram quando se cumprimentam stop
usam espada e chicote e as mulheres decotam-se
mais do que se decotava Pan Chien-yü stop
o país estende-se até aos mares do sul e a capital
chama-se Rui que significa sorte stop.
Eu imperador Qianlong,
descendete de Kangxi e Yongzheng, isto faço saber,
para que conste e melhor se conheça stop
retirar-me-ei para os meus aposentos;
tenho agora mais tempo para o guquin,
o xadrez e a caligrafia stop.
Deixar-vos-ei com a seguinte mensagem:
o diferente confina com o idêntico,
o uno é que nos é íntimo.

XV. Post-Scripton
a paciência é um costume e o enigma uma vocação
povos e gravuras por uma ordem
na aparência estranha
ouro pérolas e pedras preciosas onde se vejam
o Papa e Portugal são além de eleitos, nomes,
a cor da pele, dos olhos e dos cabelos,
calças apertadas como meias, impostos e foros,
reinados e outros eventos,
quiçá relevantes ou não, todos eles
confinam o coração
ao que na obra não excede proporção e medida
Evita! que aridez e secura destruam as manhãs,
que a alma se transforme numa prisão,
para que de novo a montanha reverdeça
e os pássaros atravessem a luz e a chuva,
chilreando hinos e recados;
(...) se o nariz é alto o cabelo é curto.
É assim que os vejo
e além do mais pagam impostos, como é nossa vontade
e a gramática do céu determina

* Publicou O Roubo da Fala, em colaboração com António José Paisana e José Alberto Oliveira, e o livro Os Limites da Obscuridade, na Caminho de Poesia. Poesia dispersa: "Anuários de Poesia", "Diário de Lisboa", "Diário", "Jornal de Letras", "Revista Nós de Cultura Galaico-Portuguesa", entre outros.
desde a p. 137
até a p.