Linguística

QUADRO DOS TRIBUTÁRIOS DO IMPERADOR QIANLONG(QUINZE POEMAS SOBRE GRAVURAS, PESSOAS, IMPOSTOS, CHINESES E KUAI-LOUS)

Manuel Afonso Costa*

I. Introdução

    A água é insondável
    quando a dureza do céu abraça todo
    o astro maleável; 
    
    a terra procura o repouso, 
    na mais alta das montanhas; 
    energia que se sobrepõe à doçura
    dos lagos e dos rios. 
    
    Pensamos a serenidade assim
    fluida e feminina; 
    
    e a tempestade, que desperta, 
    cobre-se de vento e de um ardor que penetra
    a fundura antiga dos vulcões. 
    
    Nada é inacessível ao homem sem fadiga, 
    o céu, a terra, a criação e os modos de tudo isso ser: 
    jogo, cálculo ou destino. 

II

    o selo vermelho quer dizer, que o meu amor por ti
    é muito antigo e prestimoso. 
    Dediquei-me tanto ao mistério deste sentimento
    que esqueci a miséria da minha condição; 
    
    como Hi K'ang
    abandonei, todos os amigos
    para me dedicar a ti, 
    
    deixei de escrever, deixei de pintar, 
    julgo até que deixei de pensar, 
    pelo menos em tudo o que não fosses tu. 
    
    Esqueci tudo
    o que um dia aprendi nos quatro compêndios, 
    foi difícil esquecer algumas partes de Ji. 
    
    Todos os poemas que acontece ler, 
    é através dos teus lábios que, sem que saibas, o faço; 
    ainda que não entenda o que murmuras. 
    
    Tu és o meu imperador
    e o meu silêncio é o meu tributo, 
    não constarei dos tributários à corte da dinastia Qing, 
    
    nem uma das 602 figuras humanas eu serei. 
    O meu único espelho és tu. 
    Se acaso tu não és humana, eu não o serei mais. 

III

    sombras e impérios, 
    os peixes são mais reais, quando pintados, 
    ao lado dos caracteres que os nomeiam
    e mares descansam na abundância de sombra
    que o imperador lhes promete. 
    
    Prefiro os pássaros
    porque são o oriente do oriente, 
    quando voame também quando adornam, 
    e não há caracteres que os imobilizem. 
    
    a felicidade e a moral
    devem procurar-se nos poetas. 
    São eles que decidem o que é importante: 
    a seda, a tela, as palavras ou proezas heróicas

IV

    abrupto é o pensamento dos que suspeitam; 
    o que preocupa os inimigos e aflige os deuses. 
    Durante o segundo século da dinastia Qing
    viveu o imperador Qianlong, que apreciava a paz
    e escrevia poemas em manchu e chinês. 
    Olhava para dentro das coisas e percebia
    que o exterior não tinha um princípio
    e que, uma vez olhando-o de perto, se reduzia a pó. 
    
    O imperador não sabia nada de geografia, 
    mas tinha um olhar tenaz, a que faltava, 
    o poder divinatório do fundador dos Han. 
    Sobre os homens e mulheres do Atlântico
    ele mandou que se escrevesse: 
    que eram católicos e bons comerciantes, 
    além de que cultivavam a monogamia, entre si, 
    quando se gostavam

V

    A gratidão era uma qualidade para o imperador
    e uma forma de proceder, que não premiava evasivas; 
    assim se constroem casas quando o frio acossa
    e se fazem sacrifícios aos deuses se ocorre a seca. 
    O rei Tang assim o fez, diz-se, 
    por vocação e ser humilde. 
    
    Melhor isso que morrer
    em terras distantes
    por pura vaidade, 
    
    porque desafiar os deuses
    nunca foi de boa norma, 
    que o digam os generais de Long-si. 
    
    Certos povos criam bois para o talho, 
    um destino como qualqer outro, 
    e não vale a pena discorrer sobre isso; 
    em por mim preferiria caçar tigres; 
    mas nas montanhas da minha terra natal
    vivem cervos, coelhos e javalis. 
    
    Como o presente é a colheita do passado
    importa semear, para no futuro colher o futuro, 
    mas o bem só o presente o dá: 
    
    não faças um capote tão pesado
    que o não suportes
    ou uma lança maior que o teu tamanho

VI

    Existe para o imperador uma relação
    entre cavalos, geometria e cinemática, 
    isso não oferece dúvidas, 
    
    e ainda a propensão, 
    (natural num Qing), 
    à hipérbole e ao anacoluto; 
    
    (mas sem imagens como seria a narrativa do mundo?)
    
    Cultiva a similitude para mostrar as diferenças, 
    as descrições abstractas exigem rigor
    em tudo o que é concreto, 
    
    só assim ele pode ser levado a sério. 
    O estilo nunca é inesgotável
    mas nada se ganha por dizê-lo. 
    
    (Se uma paliçada esconde outra paliçada, que por sua vez
    esconde outra e assim por diante até ao infinito, percebe-se
    que não há nada para esconder, mas disso nunca teremos a certeza.)

VII

    O género descritivo é-lhe familiar: 
    os países aparecem como Dao, 
    a partir de um vazio imenso; 
    
    o vazio é o pano de fundo
    onde tudo é nomeado
    assim o mel, a madeira, o âmbar e as mulheres. 
    
    (Se multiplicarmos as comparações tornamos, aos
    estranhos, o mundo menos estranho)
    
    Combinar climas e cortes de cabelo, 
    vestuários e animais domésticos, competência e arrumo, 
    dá ao imperador a ilusão do conhecimento, 
    que é o que, do conhecimento se torna útil. 
    
    Como ele não pode religar o céu à terra, 
    (todos sabem que o que Zhuanxu engendrou
    nenhum humano pode inverter), 
    ele é prolixo nas enumerações; 
    
    descrever o mundo
    deveria sossegá-lo, e portanto, os seus súbditos, 
    assim o imaginamos
    satisfeito com as suas obras. 
    
    Aquele que é pensado
    pode não se reconhecer no quadro, 
    mas isso não deve afectá-lo muito, 
    Ao imperador dava imenso jeito

VIII

    Homens e mulheres, 
    usam sapatos de couro preto
    para facilitar o andar, 
    
    As cores são um contraste com a pele; 
    que ele imaginou
    como os corvos ou a laca; 
    
    tudo não é mais que uma ligeira brisa na mente imperial, 
    o coração, sendo o lugar em que se naufraga, 
    é um adereço de que ele se despe. 
    
    Um pouco de história, que legitima contornos mais obscenos: 
    os Tang e os Ming são ruínas de uma melancolia
    que, sendo antiga, é menos suspeita. 
    
    (enumerar aquilo de que se morre, seja fogo ou solidão, 
    deixa o sentimento exposto
    à profusão de acusações e dúvidas)
    
    Iluminura e texto, coabitam e resistem
    a todas as tentações piedosas; 
    porque as cores são quentes e o porte altivo
    não retira nada à miséria de que são vítimas. 
    
    A disposição vertical de figuras e palavras, 
    avessos à tradução e à fuga, 
    torna as figuras mais nítidas e o texto mais frio. 
    Só o vestuário é humano. 
    
    Quando se é escravo, olha-se a direito
    para longínquas ilhas, 
    onde o inconcluído se encontra esperando, 
    assim o pensam os homens
    
    as mulheres, essas, ligam-se mais ao mundo, 
    por isso se deixam decotar
    e usam vestidos curtos
    e tanto nas mãos como nos pés pulseiras. 

IX

    Agora o ar soturno e angélico, 
    o vestuário de preferência escuro, 
    e o desejo de perceber, o que o exterior
    não pode nem deve poder. 
    
    Não se detém perante seja o que for, 
    classificar é uma paixão, 
    que toca ao de leve
    o que se move e exclui. 
    
    Rituais, prerrogativas, oferendas, fisionomias, 
    em tudo julga ver sinais; 
    acumula, selecciona, dispõe por uma ordem. 
    Do insondável fica o que se vê que é quase nada. 
    
    Penso por instantes no atelier do imperador Quianlong: 
    as tintas, as telas, as palavras, 
    informações chegadas de longe, 
    (fragmentos desajustados ao todo que é seu desejo)
    
    as insónias, 
    e o tapete de frases recolhendo
    pormenores obscuros; 
    os riscos calculados e os inúteis
    
    e ainda os que surpreendem
    aquele, que na desordem, 
    ergue uma muralha que proteja
    em repouso a alma

X

    Em particular os lenços pretos
    não aparecem na gravura, 
    desacordo entre o real e a sua representação, 
    que ao imperador deve ter desagradado. 
    
    Em tudo o resto, os de Goa são redimidos
    pela substância do olhar, que neles depositou uma prisão, 
    onde a escrita e a pose mutuamente se anulam
    e submetem a um destino aparente. 
    
    Enclausurados, ambos, no esboço imperial, olham
    através do cerco dos nomes, nenhuma inquietação os move. 
    Eu próprio me resigno a um sorriso vago
    quando registo a distância em lis; 
    
    e percorro as volutas dos bordados
    que o imperador viu, ou julgou ver, 
    mas que o pintor obliterou
    escondendo as mãos
    
    É no plano das nãos que os raios de luz se cruzam, 
    nas margens desse encontro abre-se um espaço, 
    ondeo texto, pode cair, 
    a prumo

XI

    Pode estruturar-se, agora, a realidade a partir
    de desejos e apetites, 
    quando a tela era ainda um ermo
    na mente do imperador. A fadiga enumerativa
    
    exige que os passos, sejam substituídos
    pelos lugares a que os passos conduzem; 
    a mesma fadiga exclui acasos e adianta pretextos, 
    para o que, sem pretextos, seria acidental e inócuo. 
    
    O discurso chama a si a orientação dos fins, 
    e a menor digressão torna banal
    os adereços de que se rodeia, 
    porque a evocação satura e a contemplação comove. 
    
    Estirado no canapé, ele olha
    o fundo do seu pensamento, detém-se por momentos
    na linha de penumbra, que separa o acidental, 
    do que sendo estável, lhe é por enquanto inacessível. 
    
    Está cego, porque olha de dentro do cone de sombra, 
    para o lugar de onde vem a luz, ele quer ver
    dos sinais a fulgurância, entrar
    nesse ígneo caudal da sabedoria; 
    
    mas os sinais antes transparentes, 
    (ele assim o cria)
    tornaram-se com a fadiga opacos, 
    ao entrar no sono estremece, lembra-se de tudo
    o que esqueceu e mesmo o que não viu. 
    
    Quando acorda, sabe, 
    que o registo de hábitos, objectos, fisionomias e paisagens, 
    pode dizer-se de mil modos, 
    que no essencial se equivalem. 

XII

    O estilo torna-se vagaroso e cheio de minúcias, 
    Qianlong respira fundo, 
    sabe que a exaustão premeia mal o esforço, 
    mas não tem outro remédio. 
    
    Os efeitos do sincretismo são inesperados: 
    erudição, história, juízos apressados, 
    cavalgam na noite a confusa ciência
    e a insónia: 
    
    os estrangeiros cumprimentam-se tirando o chapéu, 
    diz, cedendo aos caprichos de um rigor ardente
    e contempla os céus do oriente, auscultando
    presságios, que por ele façam o que não pode a memória, 
    
    alguma coisa que possa acudir à sua vontade de ser
    sagaz e sentencioso. 
    Já não vê diferenças, a semelhança alastra, 
    como o outono se apodera de um pátio. 
    
    Quando do coração se expulsou o mundo, 
    juntam-se factos como brinquedos, 
    qualquer criança fica atordoada no meio deles, 
    quando são muitos, 
    
    assim se entregou à caricatura
    e à prolixidade. 
    A tristeza é a confissão de um condenado
    ao desperdício
    à incerteza de um perdão

XIII

    vou esquecer os helvéticos por agora
    tal como os outros, foram um pretexto, 
    para que o império pudesse sair, 
    para fora das malhas do império; 
    essas malhas que o império tece: 
    
    elas sentam-se às mesas do "cofee Shop" do Lisboa
    submetendo-se a comentários desonrosos, 
    passeiam, acetinados, os corpos, 
    pelos corredores anexos ao casino, 
    
    para que algum quai-lou
    nelas ceve, barrigas obesas. 
    Foi, mais ou menos, assim, que ele me confidenciou: 
    vendendo as filhas aos antigos inimigos, 
    é como terminam todos os impérios

XIV

    cabelos vermelhos stop
    invadiram Pong Hu e a Formosa stop
    usam chapéus pretos de feltro, 
    que tiram quando se cumprimentam stop
    usam espada e chicote e as mulheres decotam-se
    mais do que se decotava Pan Chien-yü stop
    o país estende-se até aos mares do sul e a capital
    chama-se Rui que significa sorte stop. 
    
    Eu imperador Qianlong, 
    descendete de Kangxi e Yongzheng, isto faço saber, 
    para que conste e melhor se conheça stop
    retirar-me-ei para os meus aposentos; 
    tenho agora mais tempo para o guquin, 
    o xadrez e a caligrafia stop. 
    Deixar-vos-ei com a seguinte mensagem: 
    o diferente confina com o idêntico, 
    o uno é que nos é íntimo. 

XV. Post-Scripton

    a paciência é um costume e o enigma uma vocação
    povos e gravuras por uma ordem
    na aparência estranha
    ouro pérolas e pedras preciosas onde se vejam
    
    o Papa e Portugal são além de eleitos, nomes, 
    a cor da pele, dos olhos e dos cabelos, 
    calças apertadas como meias, impostos e foros, 
    reinados e outros eventos, 
    quiçá relevantes ou não, todos eles
    confinam o coração
    ao que na obra não excede proporção e medida
    
    Evita! que aridez e secura destruam as manhãs, 
    que a alma se transforme numa prisão, 
    para que de novo a montanha reverdeça
    e os pássaros atravessem a luz e a chuva, 
    chilreando hinos e recados; 
    
    (...) se o nariz é alto o cabelo é curto. 
    É assim que os vejo
    e além do mais pagam impostos, como é nossa vontade
    e a gramática do céu determina 

* Publicou O Roubo da Fala, em colaboração com António José Paisana e José Alberto Oliveira, e o livro Os Limites da Obscuridade, na Caminho de Poesia. Poesia dispersa: "Anuários de Poesia", "Diário de Lisboa", "Diário", "Jornal de Letras", "Revista Nós de Cultura Galaico-Portuguesa", entre outros.

desde a p. 137
até a p.