Entalhe de Carimbos

D. FRANCISCO DE BUNGO E O PROJECTO DE FUNDAR UMA CIDADE CRISTÃ EM HYUGA (FIUNGA)

Arcadio Schwade*

D. Francisco de Bungo, conhecido na história japonesa pelo nome de Otomo Yoshishige ou Sorin (1530-1587)1, foi o senhor feudal do sudeste do Japão que desde o primeiro encontro com os Portugueses sempre procurou manter com eles relações de amizade e de cooperação. Num olhar retrospectivo que sobre a sua vida Sorin dera em 1578, relatou ele ao irmão jesuíta japonês Damião, que ao contar 16 anos de idade:

"veo ao porto que está perto de Funai hum juncosinho de Chins, e con elles seis ou sete Portugueses, dos quaes o principal era hum Jorge de Faria, homem rico. Aconselhou o piloto do junco, que era gentio, e China a meu pai, que se queria fazer huma boa presa sem trabalho, que mandasse matar aquelles Portugueses, e que elle lhe entregaria as fazendas, meu pai movido pela cobiça, estava posto em executar o ardil do China, soubeo eu, e fuime a meu pai diser-lhe, que como avia de aver no mundo puramente por cobiça, e sem culpa nem causa querer elle matar homens estrangeiros, que vinhão de tão longe fazer mercadoria à sua sombra, e em sua terra: que antes lhe fazião serviço, e amizade em lha emno-brecerem, e que eu por nenhum caso avia de consentir nisso, mas que os avia de defender, polo que se não pode effeituar o mal que contra elle ordenarão."2

Poucos anos depois da vinda dos primeiros Portugueses ao território de Bungo, Yoshishige sucedeu no governo do feudo ao pai, assassinado em 1550 por ocasião duma rebelião de vassalos. Durante toda a sua vida ele continuou a manter em favor dos Europeus a atitude defensiva demonstrada por ele no primeiro encontro com eles, não obstante os numerosos ataques, críticas e contradições que por isso teve que sofrer.3

Pagina anterior: Retrato de Otomo Yoshishige (1530-1587), dáimio de Bungo (Kyushu). Retrato póstumo, em trajes budistas, do que foi um dos mais fervorosos cristãos convertidos do início da evangelização do Japão. (Zuiho-in, Quioto).

Finalmente decidiu-se, no ano de 1578, a abraçar pessoalmente a fé cristã. Para realizar este propósito teve que superar a oposição de sua esposa4, filha dum sacerdote xintoísta, e de numerosos senhores locais do feudo de Bungo, que manifestamente combatiam a religião cristã e seus adeptos. Já desde 1576 Sorin fôra entregando pouco a pouco o governo do seu território, então abrangendo cinco províncias ("reinos") das nove da ilha de Kyushu, a seu herdeiro e filho Yoshimune (1558--1605). Sorin retirou-se definitivamente para a fortaleza de Nyujima em Usuqui, e divorciou-se por esta ocasião de sua esposa, com a qual vivera trinta anos e da qual teve três filhos e cinco filhas. Fróis aduz como motivo principal para esta separação o grande ódio que a esposa xintoísta tinha contra a religião cristã. Sorin decidiu tomar como nova mulher a mãe da esposa de seu segundo filho5 e com ela converter-se à fé dos cristãos. Juntamente com ela e a filha dela, Sorin deixou--se instruir na nova religião por um irmão jesuíta japonês.

Breves semanas mais tarde, as duas catecúmenas foram baptizadas, a nova esposa de Sorin com o nome cristão de Júlia e sua filha com o de Quinta. Por ocasião do baptismo, o padre Cabral presidiu à celebração oficial do matrimónio religioso da neófita com Sorin, depois de este haver consentido em observar fielmente as obrigações postuladas pela Igreja Católica. Este matrimónio foi o primeiro conhecido na História do cristianismo japonês no qual foi aplicado o assim chamado "privilégio paulino".6

Durante os meses seguintes, Sorin continuou todos os domingos a ouvir os ensinamentos da doutrina cristã e cortou todo o contacto que até então mantivera com um mosteiro e templo budista da seita dos Zen.7

ORIGEM DO PROJECTO DE FUNDAR UMA CIDADE CRISTÃ EM HYUGA

À medida que Sorin ia aprofundando os seus conhecimentos da religião cristã, ia compreendendo cada vez melhor as leis pelas quais eram regidos os povos da Europa. Estes conhecimentos levaram o ilustre catecúmeno a conceber a ideia e o desejo de fundar também no território dominado por sua família uma cidade a ser governada pelas leis e espírito da fé cristã. Luís Fróis, que durante aqueles anos foi superior dos Jesuítas activos na região de Bungo, escreve em sua "História de Japam" sobre Otomo Sorin o seguinte:

Sela lacada a ouro e negro com a curiosidade de ter gravado o monograma FRCO. Admite-se, por isso, ter pertencido a Otomo Yoshishige, que adoptou o nome "Francisco" depois do baptismo e passou a usar um selo exactamente com o mesmo monograma.

Enquanto Otomo Sorin se ia familiarizando com a civilização europeia, o seu maior adversário, o dáimio9 Shimazu Yoshhisa (1533-1611), senhor de dois "reinos" no sul da ilha de Kyushu, invadiu com o seu exército o território de Hyuga, que formava a fronteira sul com o de Bungo; o dáimio de Hyuga, Ito Yoshisuke (1513-1585) teve finalmente que refugiar-se com sua família no território dos Otomo transferindo para estes todos os direitos sobre o seu feudo. O novo dáimio de Bungo, Otomo Yoshimune, decidiu expulsar os inimigos de Hyuga e incorporar este território no seu domínio.

Durante os meses seguintes, um exército de Bungo, contando quarenta mil soldados, reconquistou boa parte da província invadida pelos inimigos. Um comandante cristão, obedecendo às ordens de Yoshimune e de Sorin, começou a destruir os mosteiros e templos budistas e xintoístas da região de Tsuchimotsu na parte setentrional de Hyuga.10 As notícias sobre a reconquista do norte de Hyuga e os conhecimentos adquiridos sobre a estrutura e formas de governo dos estados da Europa induziram Sorin a realizar no território subjugado um plano que haveria de surpreender muitos homens daqueles lugares.

O PROJECTO DE FUNDAR UMA CIDADE CRISTÃ

Luís Fróis descreve na sua "História de Japam" o plano de Otomo Sorin da seguinte forma:

"Contentou a el-rey muito a notícia que teve daquelle estado e terra de Çuchimochi, e determinou hir no mesmo anno a povoá-lo de novo e alli se recolher com sua mulher, para ficarem mais seguros os outros reinos que tinha renunciado no filho. E assim mandou dizer ao Padre [Cabral] que elle tinha assentado de se hir para Fiunga e levar de Bungo comsigo somente trezentos homens para estarem com elle, os quaes todos havião de ser christãos; e que a cidade que alli determinava edificar havia de ser regida com novas leys e institutos differentes dos de Japão; e que para os naturaes da Fiunga melhor se unirem com elle e com os seos, que todos se havião de fazer christãos e viver em hum amor e união fraternal, para cujo effeito havia de levar na sua embarcação hum Padre; e que antes ainda de lá começar a edificar a fortaleza, em que se hovesse de apouzentar, tinha assentado de fazer primeiro a igreja, para qual daria renda com que se podesse[m] sostentar alguns da Companhia; e que lá determinava elle tambem de receber o baptismo e, como fosse christão, desejava não discrepar da observação da ley de Deos."11

Segundo esta relação de Fróis, Otomo Sorin planeava edificar em Tsuchimochi uma cidade a ser regida por novas leis, cujos habitantes haviam de viver unidos na mesma fé cristã sob a cura pastoral dos missionários. Sorin pessoalmente receberia lá o baptismo para com o seu exemplo de vida mover outros a fazer o mesmo. O superior dos Jesuítas no Japão, o padre Francisco Cabral, respondeu a Sorin que ele mesmo o acompanharia a Tsuchimochi e ficaria lá até à inauguração da igreja a ser construída na nova cidade. 12

PREPARATIVOS PARA REALIZAR O PROJECTO

Quando, em Julho de 1578, o padre Cabral se dispunha a partir de Bungo para a província de Hizen no oeste de Kyushu, recebeu por meio do irmão japonês João de Torres o seguinte recado de Sorin:

"... pelo que, já que arrezoadamente tenho ouvido os principios da ley de Deos, e dado que enho mandado dizer ao Padre que me hei de baptizar depois que chegar a Fiunga, dir-lh'eis que, todavia, me não parece bem dilatá-lo para daqui a 3 ou 4 meses e mais, sendo eu velho e a vida incerta. E que pois o Padre estava de caminho para o Ximo13, que lhe rogo trabalhe por dar lá brevemente expedição a seos negocios de maneira que daqui a hum mez possa tornar, porque, por alguns particulares respeitos que lhe eu tenho, queria de sua mão receber o baptismo, e entretanto hirei acabando de tomar na memoria as orações que me ficão..."14

Durante a ausência do padre Cabral de Bungo, Sorin continuou a estudar diligentemente a doutrina e as principais orações cristãs. O seu desejo de receber o baptismo crescera de tal forma que já no dia imediato ao regresso do padre Cabral quis ser baptizado por ele. Correspondendo a este desejo, o superior dos Jesuítas baptizou-o no dia 28 de Agosto de 1578 na capela de Usuqui, juntamente com outras seis pessoas que o serviam. No baptismo recebeu o nome de Francisco, que Sorin pessoalmente escolhera em memória de Francisco Xavier, que fora o primeiro missionário a falar-lhe de Deus. Com este nome entrou Sorin na documentação da coeva História europeia, onde ele é geralmente mencionado como "o rei D. Francisco de Bungo". Ele mesmo autenticou durante os anos seguintes muitos documentos pessoais com o carimbo que trazia a forma abreviada de FRCO.

A notícia da conversão de Otomo Sorin à fé cristã moveu numerosos habitantes de Bungo a abraçar a mesma religião. Desde o princípio de Setembro, também o então reinante Otomo Yoshimune e sua esposa começaram a receber semanalmente instruções na fé católica e a preparar--se para o baptismo. À medida que Yoshimune fazia progressos no conhecimento da nova religião, via-se confrontado com diversas dúvidas e questões que, antes dele, seu pai e outros senhores feudais japoneses tinham procurado solucionar. A questão principal apresentada por Yoshimune aos missionários está relacionada com o projecto de Sorin de fundar uma cidade cristã. Por isto ela merece ser aqui brevemente considerada.

Yoshimune comunicara primeiro ao padre Cabral que, antes de receber o baptismo, ele procuraria pouco a pouco restringir o apoio financeiro, que até então havia conferido aos mosteiros e templos budistas, a fim de não indispor influentes vassalos não cristãos do seu feudo. Depois de receber do padre Cabral a resposta à sua primeira proposta, Yoshimune tomou a enviar ao mesmo a seguinte declaração:

"Não mandei perguntar quellas couzas ao padre por temor que tenha de perder meos reinos e estado, porque depois que entendi haver a ley de Deos, alma, salvação e penas futuras, não me dá nada perdê-los todos e sobre isso a vida se me houver de salvar: e se ao Padre parecer bem, de repente cortar logo por tudo e absolutamente destruir logo os templos e acabar de prosternar os bonzos, queimar e assolar todos os ídolos e tirar emprovizo todos os ritos e costumes gentílicos de meos reinos, fá-lo-ei, ainda que não poderá deixar de ser sem notavel escandalo e perturbações de meos vassalos e discrime de minha vida; e se tambem lhe parecer melhor proceder com madureza e assento, como disse já hir dispondo a gente para não haver alvoroços, assim o farei."15

Na sua resposta, Cabral exortou-o a proceder com prudência e a adiar a recepção do baptismo para o ano seguinte. Desta maneira procurava--se no território central e tradicional da família dos Otomo retardar por ora maiores reformas de governo, tanto no campo político como religioso e social. Mas o ex-dáimio Sorin, por sua vez, ia acelerando os preparativos para, na província vizinha, recentemente herdada da família dos Itô, fundar uma cidade completamente diferente das tradicionais cidades do Japão.

INÍCIO DA REALIZAÇÃO DO PROJECTO

No dia 4 de Outubro de 1578, festa de S. Francisco de Assis, partiu Sorin com sua esposa Júlia numa embarcação, trazendo uma bandeira quadrada de damasco branco com cruz vermelha atorcelada de ouro. Na flotilha, armada com algumas peças de artilharia, acompanhavam-no as pessoas fidalgas que estavam ao serviço de sua família. Numa embarcação viajava o padre Cabral com os irmãos João de Torres, André Douria e Luís de Almeida. Este último, tinha o Pê. Cabral mandado vir de Satsuma a expresso desejo de Sorin, devido à grande experiência que ele tinha em fundar novas comunidades cristãs.16

A flotilha que levava D. Francisco e sua comitiva aportou depois de uns três dias de navegação à terra de Tsuchimochi. A maior parte de seus vassalos veio para lá por terra. Na sua "Historia de Japam" descreve Fróis a disposição de ânimo com que Sorin começou a realizar o seu projecto nos termos seguintes:

"Alegrou-[se] el-rey muito de ter chegado àquella terra porque, sendo elle quazi sempre valitudinario, alli se achava com forças e acomodada saude e determinava fazer, como temos ditto, naquelle reino de Fiunga huma chris-tandade mui solida e que fosse nomeada athé dentro de Roma, e que nisso queria pôr todas as suas forças e mandar que, tudo o que fosse possivel e o compadecesse o costume da terra, se regessem e governassem com as leys e costumes de Europa. E assim logo em chegando, ainda que ocupado na guerra, tomou este negocio muito de propozito, para o qual escolheo o melhor sitio que havia no ditto lugar, e deo ao Padre para que se começasse logo, ainda que fosse de emprestado, huma caza e igreja onde se pudessem agazalhar o Padre e Irmãos (porque tudo aquillo estava da guerra passada assolado e destruído). E assim se começou logo a obra com grande fervor, mandando el-rey que athé os fidalgos ajudassem nella a trabalhar a acarretar os materiaes. E elle fez seo assento não muito longe da igreja, começando a fazer grandes obras como quem tam de porpozito determinava fazer alli seo assento."17

Além dos favores acima mencionados, deu ele ao padre Cabral a renda de dois mosteiros budistas para com ela poder sustentar uns vinte membros da Companhia. Sempre que outras ocupações de maior importância o permitiam, o padre Cabral e os outros irmãos ajudavam a preparar a terra e a cooperar nos trabalhos de construção. Otomo Sorin, embora ocupado com os negócios de guerra e os trabalhos de reedificação, ia quase diariamente à Santa Missa e dava a todos exemplo de fervorosa vida cristã.

Ao mesmo tempo, iam sendo destruídos naquela região os templos e mosteiros budistas que durante os combates dos meses anteriores não haviam sofrido dano. Os religiosos dos templos e mosteiros budistas foram obrigados, ou a renunciar à sua renda e antiga reputação, ou a fugir para outras terras. Sorin tinha encarregado o irmão jesuíta japonês João de Torres de levar a termo esta tarefa.18 Fróis conclui a relação sobre a actividade do Irmão dizendo:

"... e por onde o Irmao hia todos lhe obedicião como à mesma pessoa d'el-rey; trazião--lhe muitos prezentes e peças que o Irmão não tomava, e se tinha necessidade de gente para desfazer os pagodes, não lhe faltava quanta mandava pedir. E trazia comsigo hum bonzo natural da terra, que no Usuqui se tinha baptizado, que era o que lhe andava descobrindo as boas varelas e os logares dos idolos, pelo que dos outros não era nada bemquisto. Isto foi depois dos muitos templos que no verão atraz forão abrazados e destruídos, quando se começou a guerra por hum capitão, que o príncipe lá tinha mandado tomar posse de muitas fortalezas que se rendião."19

Enquanto progrediam as obras da reconstrução e da cristianização da zona de Tsuchimochi, as tropas de Bungo continuaram a ocupar sempre mais fortalezas em direcção ao sul até chegarem à de Takajo, que era o maior baluarte da província de Hyuga. As primeiras tentativas de tomá-la por assalto foram em vão. À forte resistência demonstrada por parte dos inimigos surgiram entre os capitães das tropas de Bungo crescentes dissenções sobre a estratégia a ser aplicada naquela situação. Finalmente, decidiram cercá-la completamente, para forçar os ocupantes a render-se.20

ABRUPTO FIM DO PROJECTO

Os três mil sitiados da fortaleza de Takajo eram comandados por Shimazu Iehisa, irmão do dáimio Shimazu Yoshihisa. Este, ao ouvir as notícias do cêrco de Takajo, ordenou a mobilização geral e em breve tempo pôs em marcha um exército de cinquenta mil homens para socorrer seu irmão. No dia 2 de Dezembro de 1578 travou-se entre Takajo e o rio Mimigawa a batalha decisiva entre as forças armadas dos Otomo e dos Shimazu. O exército de Bungo sofreu desastrosa derrota, com o que começou o declínio da hegemonia da família dos Otomo na ilha de Kyushu. Os guerreiros sobreviventes do exército de Bungo fugiram desordenados e em pânico em direcção à província pátria. Otomo Sorin e os Jesuítas receberam dois dias depois da batalha as primeiras notícias sobre a derrota. Levados pelo temor dum iminente ataque dos inimigos, Sorin e seus vassalos em Tsuchimochi prepararam a fuga. Logo na manhã seguinte partiram precipitadamente, deixando em Tsuchimochi grande parte de sua riqueza e boas peças de artilharia. Também o padre Cabral com os três irmãos jesuítas, depois de saberem da partida de D. Francisco, ajuntaram o mais necessário e puseram-se a caminho a pé, procurando acelerar os passos para o mais rapidamente possível alcançarem a comitiva de Sorin. Pois sem a protecção dele, eles corriam perigo de serem atacados por soldados não cristãos do exército de Bungo, que, exasperados, consideravam a sua derrota como castigo das divindades xintoístas e budistas, por Otomo Sorin ter abraçado a fé cristã por causa da influência dos padres.21

Na manhã do segundo dia da fuga, os religiosos foram testemunhas duma cena que Fróis descreve da seguinte forma:

"Chegaram a huma ribeira que estava perto da estancia da noite passada, se poz el-rey de joelho[s] diante de todos os seos e fez oração a N. Senhor dando-lhe graças pelas aflições e trabalhos prezentes. E mandou chamar o Padre Francisco Cabral e o convidou com hum pouco de arroz, porque não vinha menos falto das couzas necessarias que os nossos, tão repentina e arrebatada foi esta sahia de Çuchimochi. E tudo isto fazia el-rey para mostrar àquelle gente danada, em que já o demonio tinha entrado, que elle era christão, nem se havia mudado nada seo coração com as adversidades passadas, antes hia crescendo e provando-se mais, como ouro no fogo, o coração deste affligido e angustiado rey."22

Impressionados com esta atitude de fé inquebrantável de Sorin, o grupo dos fugitivos continuou a áspera jornada e atingiu à noite do segundo dia o território de Bungo. Enquanto os missionários regressavam às suas residências em Funai (Oita) e Usuqui, Otomo Sorin preferiu retirar-se para a povoação de Tsukumi, que ficava três léguas a leste de Usuqui, à beira do mar. Lá encontrou refúgio provisório num mosteiro budista. Ocorrendo poucas semanas mais tarde a festa de Natal, ele pediu ao padre Fróis que viesse lá celebrá-la em sua companhia. Para o jesuíta português foi uma boa ocasião para ser testemunha do grande fervor com que Sorin e sua esposa se confessaram e assistiram a três missas do Natal.23

O que se passou a seguir, encontramo-lo descrito pelo mesmo Fróis na sua "Historia de Japam":

"Acabadas as missas e humas ledainhas que dissemos, esteve por hum pedaço el-rey prostrado em terra com o rosto no chão diante do altar, e depois, ficando em joelhos com as mãos alevantadas, me disse: 'Agora, Padre, vos quero descubrir 3 votos que tenho prometidos a Deos quando estava em Fiunga, e bem os podeis comunicar com o Pe. Francisco Cabral e pedirdes a Deos N. S. me queira dar perseverança nelles.

O primeiro hé, que eu tenho prometido a Deos, dando-me elle seo favor e ajuda, que ainda que todo mundo retroceda na fé, que eu com sua graça nunca me apartarei da fé catholica, ainda que por isto me matem.

O segundo, que com todas minhas forças não somente determino guardar os mandamentos de Deos, mas todos os conselhos e amoestações que pelos Padres da Companhia me forem dadas.

O terceiro, que nunca athé morte serei tran[s]gressor do matrimonio, nem contaminarei minha alma com algum pecado sensual. E acabou com dizer: 'Nunca em toda minha vida tamanha alegria e consolação tive, como agora que recebi o Santissimo Sacramento'. E logo se poz a escrever por sua mão em hum livro que tinha das orações estas promessas que fizera a Deos N. Senhor."24

Sorin conservou o fervor religioso e a fé inabalável, demonstrada nesta ocasião durante os anos seguintes, quando vários senhores do feudo de Bungo, devido à sua inimizade contra o Cristianismo, se rebelaram contra a família dos Otomo. Quando as insurreições e desordens assumiram proporções extremamente críticas, D. Francisco, obedecendo às insistências de conselheiros de seu filho Yoshimune, regressou por uns três anos a Usuqui, para de lá, com a sua autoridade e experiência política, apaziguar o domínio de sua família. Antes de retirar-se, em 1583, novamente para Tsukumi, Yoshimune doou-lhe esta povoação como feudo. A seguir, Sorin procurou realizar em Tsukumi — ainda que em escala menor — o projecto que ele tão tragicamente tivera que abandonar em Hyuga. Depois de erradicar de Tsukumi os cultos japoneses tradicionais, ele ofereceu um templo e um mosteiro budista, que tinham ficado ilesos da destruição, como residência aos Jesuítas. Com a ajuda de um irmão e do padre Francisco Laguna, foi ali estabelecida uma sólida comunidade cristã. Sorin preserverou na sua inabalável fé e prática de fervorosa vida cristã até à sua morte, ocorrida na noite de 28 para 29 de Junho de 1587.25

Alexandre Valignano que, como Visitador dos Jesuítas no Japão, nos anos de 1580 e 1581, teve, em numerosos encontros com Sorin, ocasião de conhecê-lo mais de perto, atesta-o com a sua asserção no sétimo capítulo da sua "Apologia":

"... el Rey Francisco fue siempre tan excelente Christiano, y benemérito sobre todos demás de la Iglessia de Iappon, y murió sanctissima-mente de la manera que vivió."26

NOTAS

1 Quando Otomo Yoshishige em 1562 mudou a sua residência de Funai (Oita) para a fortaleza Niujima em Usuqui, ele assumiu o nome de Sorin, pelo qual é mais conhecido na História japonesa. Desde 1540 usou principalmente o de Yoshishige. Quer antes, quer depois desta época, teve também outros nomes segundo o uso de então.

2 Cf. carta de Luís Fróis S. J. aos irmãos de Portugal, de Bungo a 16 de Outubro de 1578, em Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de lesus esvreuerão dos reynos de Iapão & China desde 1549 até o de 1580, 2 vols. Évora, 1598, vol. 1, fl. 422 (obra indicada a partir de aqui como Cartas E. 1598, seguida de volume e fólios).

3 Cf. Fróis, ibidem, I, fl. 418.

4 Devido ao grande ódio que esta esposa de Sorin alimentava contra os cristãos, os Jesuítas a denominavam em seus escritos "Jezabel" em alusão à esposa gentia de Achab, rei apóstata de Israel descrito no primeiro livro dos Reis, cap. 16-22.

5 Trata-se aqui de Chikaie baptizado em 1575. Recebeu no baptismo o nome de Sebastião em memória do rei de Portugal Sebastião (1554-1578, reinou 1577-1578), que desde há alguns anos antes se correspondia com Sorin (Cf, carta de Francisco Cabral ao Geral, desde Kuchinotsu, a 9-9-1576, em ARSI (Archivum Historicum Societatis Iesu), Japonica-Sinica, vol. 8 I, fl. 73-73v).

6 Cf. Luís Fróis S. J., História de Japam (edição crítica de José Wicki S. J.), 5 vols., Lisboa, 1976-1984, vol. III, p. 16 (obra indicada a partir daqui como: Fróis, História, seguida do volume e número de páginas). — Segundo a declaração do Apóstolo S. Paulo na primeira carta aos cristãos de Corinto, cap. 7,12-17, a pessoa que recebe o baptismo pode divorciar-se da pessoa não cristã.

7 Cf. Fróis, História, III, p. 12-17.

8 Cf. Fróis, ibidem, III, p. 7-8.

9 Dáimio ou daimyô: assim eram denominados os grandes senhores feudais japoneses neste período. Por eles governarem os seus territórios com autoridade absoluta os europeus os denominavam nos seus documentos "reis" e a seus feudos "reinos".

10 Cf. Fróis, História, III, 17-18.

11 Cf. Fróis, ibidem, III, 18-19.

12 Cf. Cartas E. 1598, I, fl. 420-420v.

13 Ximo ou Shimo: significa aqui a parte oeste de Kyushu.

14 Cf. Fróis, História, III, 21; Cartas E. 1598, I, fl. 420v-421; vide também carta de Francisco Cabral S. J. ao padre Geral, de Usuqui, de 15-10-1578, em ARSI, Jap.-Sin. 81, fl. 206.

15 Cf. Fróis, História, III, 31-32.

16 Cf. Cartas E. 1598, I, fl. 423v.

17 Cf. Fróis, História, III, 38.

18 Cf. Fróis, ibidem, III, 39-40.

19 Cf. Fróis, ibidem, III,41.

20 Cf. Fróis, ibidem, III, 42.

21 Cf. Carta ânua do padre Francisco Carrión ao padre Geral, de Kuchinotsu, de 1-12-1579, em ARSI, Jap. Sin. vol. 46, fl. 33-34v; Cartas E. 1598, I, fl. 439-441; Fróis, História, III, 70-87.

22 Cf. Fróis, História, III, 87.

23 Cf. Fróis, ibidem, III, 90-91.

24 Fróis, ibidem, III, 91-92; Carrión, ibidem, Jap. Sin., 46, 36; Cartas E. 1598, I, fl. 442-443.

25 Cf. Josef Fr. Schütte S. J., Introductio ad Historiam Societatis Jesu in Japonia 1549-1650, Romae 1968, p. 578--580; Arcadio Schwade, Otomo Sorins Kampfum die Rettung seines Landes und des Christentums in Südjapan (1578--1587), dissertação doutoral (inédita), Pont. Universidade Gregoriana, Roma 1961, p. 80-138 e p. 298-302; Fróis, História, IV, p. 377-389.

26 Cf. Alexandre Valignano, Apologia en la qual se responde a diversas calumnias que se escrivieron contra los Padres de la Comp. ª de Jesús de Jappón y de la China, Macau - Japão, 1598, em ARSI, Jap. - Sin. vol. 41, fl. 39.

* Professor retirado da Universidade de Bochum, Alemanha.

desde a p. 41
até a p.