Pensamento

VENCESLAU DE MORAIS NO JAPÃO DA OBRA À VIVÊNCIA

Maria João Janeiro*

Venceslau de Morais aos 49 anos de idade (1903).

O JAPÃO DE VENCESLAU DE MORAIS

"Os livros de Ven-ceslau são a confidência das suas impressões, da sua vida no Japão. Mas apesar do tom de confissão constante, sentimos que foge a certos assuntos, não nos admite à total intimidade dos seus sentimentos."

Armando Martins Janeira, in "O Jardim do Encanto Perdido"

A obra de Vences-lau de Morais trata quaseque exclusivamente de um assunto: o Japão; e apesar dos seus escritos sobre o Sião, a China ou Macau, foi sem dúvida o Japão o seu tema preferido: "Dai-Nippon, o Grande Japão!... Eis-me, mais uma vez, rapazes da minha terra, tendo entre mãos o meu assunto favorito".

"O Japão foi o seu assunto; mas ele sentia profundamente que a sua força de escritor lhe vinha de Portugal — do seu temperamento de esteta latino, dos seus olhos curiosos, críticos e amantes, de estrangeiro enlevado na contemplação do mais deleitoso dos espectáculos, que a sua pena podia retratar nas cores e brilhos musicais da fala materna"1. Há em Venceslau uma ligação profunda ao seupaís, mas há, sobretudo, uma paixão, um amor profundo pelo Japão que revela uma vivência apaixonada e um "conhecimento profundo (...) adquirido do carácter, dos costumes, da vida e da sabedoria do povo japonês. Alguns detalhes demonstram um convívio profundo e uma percepção e sensibilidade finíssima"2.

A diversidade dos temas é constante em toda a obra: "haverá notado quem pachorrentamente me vai lendo, que (...) tenho-me ido entretendo em ligei-ros esboçozinhos sentimentais, impressionistas, derivados da paisagem japonesa, da arte japonesa, da mulher japonesa; e eu apostaria que a muitos haverá parecido incoerente esta associação de ideias (...)". Debruçando-se sobre os mais variados aspectos da cultura, da vida e da terra, Venceslau de Morais mostra o gosto e o conhecimento das tradições, dos hábitos, dos costumes, de toda a cultura de um povo que amou profundamente; "(...) é interessante notar em Venceslau de Morais, à medida que nos vamos internando na sua obra, como esta se vai mostrando diversa e aprofundando o conhecimento dos japoneses (...) a exposição séria e sistemática não são do seu feitio de escritor: 'nem eu entendo de livros que não sejam assim formados por notas soltas, por apontamentos ao acaso, diários, cadernos de impressões, etc'..3

Notas soltas, apontamentos, impressões. Literatura ou crónicas de viagens, de passagens, de percursos, a obra de Venceslau de Morais é toda ela um relato, como que um diário ou livro de memórias, que narra acontecimentos, tece considerações sobre os mais diversos assuntos, conta histórias e lendas. Escrita ao acaso, fruto do prazer de escrever, de conversar, de palestrar — "palestra em que sou o primeiro a reconhecer a volubilidade dos assuntos tratados ao capricho de uma pena boémia, com a sem-cerimónia de quem não teme ser importuno ou enfadonho" — a obra de Venceslau de Morais é o• »encontro entre o Ocidente e o Oriente, numa relação de confronto entre dois mundos onde a união é possível e sobre a qual o próprio Venceslau reconhece, por diversas vezes, essa impossibilidade de integração total, "pelo antagonismo de raça, pela feição e pelo sentimento, com quem um pacto é impossível, e a simples aproximação se afigura suspeitosa". Mas, como observa Celina Silva no prefácio ao "Dai-Nippon", "a intimidade do conhecimento de Venceslau de Morais acerca do povo japonês ilustra a possibilidade de uma síntese harmoniosa de valores ocidentais e orientais. O impossível realizou-se. A barreira desvaneceu-se. A vasta, rica, harmoniosa e original obra deste latino fascinado pelo Dai-Nippon, e só ela, conseguiu aquilo que a sua longa e expectante vivência-errância no Japão lhe negou: a sua integração plena no Dai-Nippon! Hoje. Sempre!"4

Diz-nos Martins Janeira, no "Jardim do Encanto Perdido", ser possível compreender, nos livros de Venceslau, a sua biografia espiritual; mas o mesmo já não é possível se procurarmos captar a sua biografia real, a sua vivência quotidiana, o seu dia-a-dia. Venceslau não nos deixou a sua biografia; não sendo a obra de Venceslau uma obra de carácter essencialmente biográfico, ela apresenta contudo descrições de carácter biográfico, impressões intímas, pequenos devaneios, apontamentos escritos ao acaso. Toda a obra de Venceslau de Morais mais do que um discurso literário é a descrição da vivência quotidiana do autor, as suas impressões, as suas memórias, a sua história de vida, narrada através de pequenas crónicas ou cartas mas onde, apesar do tom de confidência, se escapa à revelação dos seus sentimentos mais íntimos; Venceslau fala de si, falando do Japão; descreve--nos a sua vivência no Japão, descrevendo-nos o Japão e a sua gente.

O que importa observar não é a vida como uma totalidade concreta, mas o significado que lhe é dado pelo narrador. Escrever uma "história de vida"5 não é apresentar cronologicamente os acontecimentos vívidos, mas dar um sentido ao "vivido"; e o que se torna interessante observar é a forma como o sujeito-narrador se esforça por contar a "sua história" como um desenrolar unitário, contínuo, de uma série de acontecimentos, como um itinerário desejado e escolhido. Através dos "olhos" do narrador não é para ele que vamos olhar, mas para o mundo que ele descreve, ou mais precisamente, para o "seu mundo". A experiência e a interacção entre o "eu" e o "mundo" mostra-nos um "eu particular" e "um mundo individualizado", ou seja um dado universo sob a forma de individualização específica, que se revela através da formação de um sujeito particular6. Ao analisar a obra de Venceslau de Morais segundo a perspectiva do método biográfico, pretende-se observar o percurso da sua vivência no Japão e sobretudo a visão que o autor nos transmite. Não se trata de uma tentativa de reconstrução da vivência do autor no Japão, de retratar cronologicamente uma experiência individual; o que se pretende observar é a sua vivência-errância-percurso e a sua visão do mundo japonês, isto é, através do discurso narrativo, pro-cura-se alcançar o "vivido", o mundo que ele nos descreve, o "seu" mundo.

Trata-se de uma breve leitura da vivência de Venceslau de Morais no Japão tendo por base a sua obra escrita, e apenas a referente ao Japão, de acordo com "momentos" ou mais precisamente, com "espaços-temporais" que correspondem a um "tempo" e um "espaço" determinados em função do contexto de produção da obra. Embora Venceslau de Morais recorra frequentemente aos mesmos temas, aos mesmos assuntos, a sua obra apresenta contudo uma evolução, fruto de novas "leituras", de novos "olhares", e do aprofundamento apenas possível através de uma convivência de longos anos; e é essa evolução no tempo e no espaço que nos propomos observar ao seleccionar três "momentos" que podem ser considerados significativos porque representam de certo modo uma ruptura com "momentos" anteriores, momèntos que estão relacionados com um determinado "tempo" e um determinado "espaço", durante e no qual a obra foi produzida:

— um primeiro momento, ou "tempo de viagem", correspondente ao "espaço-temporal" da vivência do autor em Macau (1889-1899), quando o conhecimento de Morais sobre o Japão é fruto de diversas e ocasionais viagens;

— um segundo momento que corresponde ao "espaço-temporal" da vida de Morais no Japão, durante o qual exerce o cargo oficial de cônsul de Portugal em Hiogo e, posteriormente, em Osaka e Kobe(1899-1913);

— um terceiro momento ou "espaço-temporal" da vivência em Tokushima (1913-1929) quando decide retirar-se da vida oficial e viver definitivamente na vida japonesa.

PRIMEIRO MOMENTO: TEMPO DE VIAGEM "SAUDADES DO JAPÃO"7

"Quanto a mim, confesso, nesses longínquos cantos do mundo, onde o destino me tem conduzido, especializando ainda o Japão, tão atraente pela sua própria originalidade, é a paisagem primitiva, é a feição íntima, que me enlevam; e quanto mais me sinto povo, quanto mais me sinto japonês, mais me enfeitiça essa indefinível impressão do estranho, que é afinal de contas todo o bem que tenho encontrado nas viagens".

Tempo de viagem: Venceslau de Morais é aqui o viajante fascinado que vai descrevendo, ao acaso, impressões das suas viagens e onde se nota já o encantamento que o Japão lhe provoca:

Busto de Venceslau de Morais num jardim da cidade de Kobe.

"Existe um prazer indiscutível, seja ele embora amargo, em inventariar no espírito, em recordar tudo o que nos enfeitiçou outrora. Estas páginas não têm outra explicação; correspondem a uma satisfação, a uma necessidade quase pessoais; e não irão certamente influenciar, com o mesmo interesse, quem quer que as leia, como a mim, sugestionado, não por estas pálidas aguarelas, não por estas notas ao acaso, mas pelas recordações que elas vêm suscitar na minha reminiscência". ("Traços do Extremo Oriente", capítulo "Saudades do Japão", 1894). Inclui-se ainda, na obra produzida neste período, o seu "Dai-Nippon". Escrito, tal como os "Traços", após as suas viagens ao Japão, é na crónica de viagens que podemos situar a sua produção literária deste período. Viajante que ele tão bem soube ser, mas soube-o sobretudo no Japão. É no Japão que efectivamente se vem a revelar como escritor, pois é aqui, pelo fascínio que a terra e a gente japonesa lhe inspi-ram, que escreve as suas mais belas páginas, e que o levam a procurar transmitir, a comunicar, os seus sentimentos, o seu entusiasmo, a sua paixão.

O "Dai-Nippon" publicado em 1897, pela Sociedade de Geografia de Lisboa, é também fruto de uma viagem ao Japão; a propósito do "Dai-Nippon" e dos "Relances", diz-nos Martins Janeira que "tudo nestes livros está hoje morto, com excepção de algumas passagens de interesse local e pitoresco (...) se algum valor científico possuíam, perderam-se inteiramente em resultado dos últimos estudos sobre a cultura e a etnografia japonesas"8; critica-os pelo primitivismo da exposição, pela escolha da matéria, pelo tosco do método, pela deficiência e confusão do julgamento; "o tom híbrido, de livros de divulgação de conhecimentos e de subjectiva narração, põe-nos desde logo, de reserva quanto ao crédito objectivo que lhes devemos dar"9. Contudo, e apesar do carácter de divulgação e da subjectividade — sobretudo esta última, não só nestes livros mas em toda a sua obra10 —, Venceslau de Morais revela uma sensibilidade e uma percepção finíssimas ao descrever a vida e o povo japonês mas, sobretudo, revela-nos o "seu mundo", a "sua visão" do mundo japonês. Por outro lado, e tal como observa Jorge Dias11, "é contudo em o Dai-Nippon que surge um dos grandes prosadores da língua portuguesa, no maior livro de viagens publicado em Portugal desde a época dos Descobrimentos".

Altar dedicado a Morais no Templo Tokai (Tokushima); vê-se a pequena estátua do escritor e a foto de O-Yoné.
Altar dedicado a Venceslau de Morais, no Templo de Tokai (Tokushima).

Primeiro momento, tempo de viagem: durante a sua estadia em Macau Venceslau de Morais12 visita, por diversas vezes, a China e o Japão. Começa a escrever pequenas crónicas, impressões da vida de Macau ou das suas viagens à China, vai conhecendo o povo e a sociedade chinesa, mas nunca sentiu o verdadeiro fascínio pela China e o seu desencanto leva-o a descrever de forma por vezes dura e pouco lisongeira a terra e a gente chinesa. Compara o Japão com a China e o desencanto é maior: "o con- traste era na verdade surpreendente, para quem habitara por longos anos a China, habituando-se à monotonia das suas decorações, à aridez das suas costas, à imundice dos seus povoados, onde chafurda um cardume de gente feia por excelência, hostil ao europeu por excelência, que constitui o que Loti chamou... o inferno amarelo".

É o Japão que o fascina, desde a sua primeira visita — "Cheguei ao Japão. — Amei-o em transportes de delírio, bebio-o como se bebe um néctar..." —; é o encanto que lhe desperta a vida e a sociedade japonesas, as suas tradições e cultos antigos, o povo, a mulher, a paisagem japonesa; entre a China e o Japão há um abismo, é como "sair de uma caverna e entrar num jardim".

Tempo de viagem: "(...) levou-me o destino à terra do Japão". O Japão, "que eu visitei há alguns meses, pela segunda vez na minha vida. Perpassam--me ainda pela mente mil recordações nipónicas; invade-me a saudade que se liga a tudo o que se perde, que passou para não mais volver; saudade neste caso mais sentida, porque se prende aos encantos de um país atraente entre todos, pela paisagem ameníssima, pelo puro azul do seu céu privilegiado, pelo seu povo, interessante pela tradição lendária, pela índole, pela sua feição de hoje; e a cujo viver íntimo, na soledade das aldeias ou no borborinho das grandes cidades, eu por longos dias associei a minha existência de boémio".

Museu de Venceslau de Morais em Tokushima. Réplica do quarto de Morais com objectos familiares e pessoais.

Existência de boémio: nas suas descrições pormenorizadas — das chayas, das gueishas, do saké servido por "gentis musumés", de ouvir o som do shamisen tocado por uma gueisha — é possível seguir-se este seu tempo de viagem em descoberta do Japão, onde o fascínio pela terra, pelo povo, pela mulher japonesa — "não há mulheres mais mimosas do que estas musumés" — se manifesta desde o primeiro momento em que pisa o solo japonês. Dá-nos uma descrição pormenorizada de uma das suas visi-tas a uma chaya, onde na companhia da "Senhora Baguinho de Arroz", O-ko-Yoné, a sua gueisha, passava longas horas "atraído pela doçura do seu convívio(...)desejoso de entretecer na rede de oiro das minhas impressões um nome de mulher":

"(...) frus-frus de seda, estalidos de madeira, um manso ruído de passinhos arrastados; e O-ko-Yoné San, a Senhora Baguinho-de-Arroz, abandonando as sandálias à entrada do aposento, vinha para mim, lábios sorrindo, como uma pequenina fada doméstica. Gentil aparição! (...) Gentil, gentil apenas. Morenita, miúdinha, uma boca em cereja sempre fresca, sobrancelhas e cabelos de azeviche, olhos castanhos, de uma meiguice esquiva de gazela. Vinha empunhando a sua enchada de trabalho (o seu ganha-pão, se ela comesse pão), o samicen, a guitarra indígena. Ajoelhava. Uma a uma ia afinando as cordas, ferindo notas soltas. Dos lábios soltava um murmúrio. Os dedos palpitavam--lhe, em mil misteres miúdos. Fitava-me, sorria-me. Pequeninas interrupções, para fumar o seu cachimbo de prata, para levar aos lábios o fino lenço de crepe (...) Rompia, enfim, numa toada murmurante, os seus cantares; e as cordas do samicen fremiam, sob os golpes da espátula de marfim, vibrada pela sua mão nervosa (...) Serviam-me o jantar; maravilhas de exotismo (...) O-ko-yoné San não comia, conforme a praxe; apenas se servia de saké, o vinho de arroz indígena; e fraternalmente, de quando em quando, trocávamos as taças, o que é neste país uma maneira de ser amável (...)".

As suas deambulações de boémio não se limitavam às chayas e à companhia das gueishas. Em Tokyo, visita Yoshiwara, acompanhado de Edmond de Goncourt, cujo livro, "Outamaro", lia então:

"Pela noite uma visita a Yoshiwara, o famoso lupanar, de que me ia aproximando, acreditai, invadido de um vago respeito, de uma indefinível comoção.

"Não vos pareça isto estranho. Havia folheado uns dias antes um livro de Goncourt, Outamaro, um estudo sobre o pintor Outamaro, as páginas mais palpitantes de vida nipónica, que conheço; (...) e era para Yoshiwara que eu me dirigia, e onde chegava num jin--rick-shá de acaso, tendo por guia o pobre culi, que de um gesto me apontou, para o grande luzeiro destacando da escuridão da noite, como uma estupenda apoteose de mágica..."

O fascínio que a mulher japonesa provoca em Venceslau é tão forte que a ela, à musumé, dedica longas páginas, em toda a sua obra; não é propriamente a beleza da mulher japonesa que o fascina; é sobretudo a sua delicadeza, os seus gestos, a sua docilidade, a sua aparência meiga e também submissa:

"O encanto da musumé está no seu convívio; (...)mas o encanto da musumé está nisto, como está em tudo; está no exotismo de toda a sua individualidade, de toda a sua maneira de ser e de sentir; o seu menor gesto é já para nós uma surpresa, uma revelação". Ou ainda "(...) os encantos estão particularmente nos seus gestos; por exemplo, nas inflexões da mão quando leva aos lábios a taçazinha de chá ou os faichys, quando agita a ventarola, quando dedilha na guitarra, quando borda; na perna que se dobra sobre a almofada de seda; no pé que se arqueia, ou que brinca nu e pendente, ou que se aconchega à sandália com dons particulares de tacto nos seus dedinhos miúdos destacados uns dos outros".

É ainda o vestuário da musumé — o seu kimono, com o obi, essa larga faixa da cintura, com os seus coloridos e as formas que tomam no corpo da mulher — que o encantam e sobre o qual oferece--nos algumas belas e sensuais descrições:

"(...) são esteskimonos e estes obis, de colorações inimagináveis, que lhe abraçam amorosamente as formas. Kimonos, em bandas sobrepostas à frente, deixando nu um delicioso ângulo agudo (nunca a geometria foi mais poetizada!) do colo e seio; deixando nus os braços, da melhor escultura, saindo das curvas onduladas das longas mangas pagodes; caindo depois em dobras doces, estes kimonos, em corola de campanulácea, até baixo a beijar os calcanhares, deixando ver a nudez dos pés brancos, abraçados por presilhas de veludo carmezim aos socos de charão negro. Obis, de um colorido diferente, a acordarem a beleza dos contrates, e em cujas dobras sobrepostas a japonesa guarda a bolsinha do seu dinheiro, os seus amuletos, o cachimbo no estojo de marfim, mil pequenos nadas do seu uso; mas o obi tem de certo uma razão estética particular, que nos escapa, a não a interpretarmos como dando à musumé a vaga semelhança de uma grande flor exótica, de uma orquídea do jardim dos sonhos, destacando-se do cálice pétalas caracolantes, palpitando à brisa, que são as enormes laçadas que pendem da cintura".

Do homem japonês pouco fala, considerando--o esteticamente muito inferior à mulher; e observa, humoristicamente: "relanceando o olhar por estes últimos sujeitos, chegamos a uma conclusão curiosa, que o Japão seria bem mais gentil se não tivesse japoneses; e apenas lhes perdoamos a presença, pelo mérito que possuem, de que ninguém dúvida, de terem filhas, de serem os obreiros inconscientes, mas perpetuadores das musumés".

Venceslau não se apaixona apenas pelo encanto da musumé; também a paisagem — "caprichos de cenário como ninguém os imagina" —, o povo — "(...) esta grande tribo de delicados, que se chamam a família nipónica"—, a arre — "(...) afeição originalíssima da pintura japonesa, que ao europeu que não sabe ver, ou que não quer ver, se afigura disparatada" —, lhe inspiram belas descrições. Percorre os campos e as cidades; vai a Nikko — "Nikko, o prodigioso Nikko!" — a Kamakura, a Enoshima, entre outros lugares, cujos cenários e templos o fascinam; visita lugares de culto, templos xintoístas e templos budistas; mistura--se com o povo, curioso dos "estranhos costumes do país nipónico": "o novo, o imprevisto, embora nas in-timidades mais simples da vida nipónica, atraía-me, enfeitiçava-me; e assim compreendereis as minhas longas caminhadas fatigosas, ruas fora, nem eu sei por onde, misturando-me à onda do povo, seguindo-o até aos centros mais recônditos, mais disparatados".

Viaja de comboio de Yokohama a Osaka: "uma longa viagem em comboio, via-ferrea fora, como a que várias vezes empreendi entre Yokohama e Osaka, é coisa que interessa vivamente, pelo exame, embora rápido da paisagem exterior, pela intimidade forçada com os bons filhos do sol"; preocupando-se em observar os seus companheiros de viagem, "comprava o meu bilhete, instalava-me no trem, escolhendo com cuidado o meu posto de observação (...) Ocorre depois relancear vistas curiosas sobre os vizinhos da carruagem (...)", relatando as suas impressões dos japoneses, dos seus hábitos, dos seus costumes; relanceia igualmente a paisagem, descreve os campos de arroz, as aldeias, as gentes, as casinhas de madeira e papel.

Chega a Osaka; percorre-a de dia e de noite, juntando-se à multidão, observando a vida urbana, o seu comércio com as suas "lojinhas pimponas", os ofícios, as festas, a chusma de gente nas ruas, nas vielas e nos canais da cidade:

"(...) creio que nunca pus tanto as pernas ao serviço da minha curiosidade, como então; plano topográfico na algibeira, frequentemente consulta-do, familiarizando-me com todo o labirinto de vielas (...); visitei templos e chayas, vagabundeei pelos campos, cheguei mesmo a julgar, confesso-vos, que não teria fim a boémia despreocupada da minha existência, vivendo unicamente pelos olhos, num contínuo enlevo das coisas".

De Osaka vai até Kyoto: "templos, templos, constantemente templos; e os bonzos que formigam, e os peregrinos que caminham... E quando horas passadas, vos sentis cair de fadiga, diz-vos ainda o culi (simultaneamente vosso guia, vosso cicerone, incansável em relatar-vos peripécias da lenda pátria), que ainda vos falta uns vinte ou trinta templos, e renunciar a vê-los seria o vosso descrédito de touriste".

Em Nara, a comoção invade-o ao visitar o Daibutsu: "Ei-lo abarcando todo o recinto, pelas suas formas gigantes e como que pela sua alma; sentado sobre a simbólica flor de lótus, aberta e erguida a mão direita, a esquerda em repouso sobre o joelho, nas pregas amplas do seu manto, de uma naturalidade imponente, o azebre dos séculos imprimiu a mole aparência do veludo. Da magestade do gesto, que quase abençoa, e mais ainda da expressão de sublime desprendimento, de sublime paz, que irradia de todo o vulto, emana a força que me emociona".

Por fim a despedida: "é já a despedida do Japão, o sayonara derradeiro..."

"Sayonara...

"Sabeis que é a palavra mais doce da língua nipónica, e a que o ouvido do forasteiro desde logo se habitua?

"Sayonara, adeus, au revoir; isto e bem mais do que isto. Não imaginais o encanto da musumé quando ela se roja sobre a esteira, toda palpitante de modéstias, de humildades, de saudades simuladas, e balbucia o termo consagrado... O primeiro sayonara que mereceis, enleva-vos. O último, quando vos despedis do Japão, onde bem provavelmente não voltareis, enternece-vos; invade o vosso ser o calafrio das grandes comoções. É que, realmente, custa dizer adeus ao Japão..."

Mas regressa ao Japão em curtas viagens ao serviço do governo de Macau. E regressa, finalmente para ficar, em 1899, quando é nomeado cônsul português em Hiogo e Osaka.

SEGUNDO MOMENTO: "OS SERÕES NO JAPÃO"13

"(...) amoroso deste país sugestivamente feiticeiro — vá lá a gente pôr freio ao temperamento!... —fugiu-me o espírito para o enlevo de relatar os seus encantos..."

O segundo momento corresponde ao "espaço--temporal" de vivência no Japão durante o qual Venceslau exerce o cargo oficial de cônsul de Portugal em Hiogo, e posteriomente em Osaka e Kobe (1899-1913). É em 1898, quando preterido no preenchimento da vaga de capitão no porto de Macau por um oficial de patente inferior à sua, que pede ao governo português a sua nomeação para cônsul no Japão. Em Kobe procura viver num ambiente verdadeiramente japonês, e de tal forma consegue penetrar na vida japonesa que a sua existência se transforma, mantendo apenas à vida oficial as ligações impostas pela sua condição de cônsul de Portugal. É nesta época que se liga a O-Yoné, uma gueisha de Osaka com quem se casa em 1900, segundo os preceitos xintoístas. De O-Yoné pouco ou quase nada diz; algumas referências vagas, e dela fala como a sua cozinheira ou criada — "a minha cozinheira. O--Yoné San (a Senhora Bago de Arroz), sabe que eu gosto de castanhas, e sabe também que eu gosto de ouvir histórias: dois inocentes passatempos. Pois ontem ao jantar, quando me servia um prato de castanhas, contou-me a história que se segue (...)" —;só mais tarde, quando se retira da vida oficial e vai viver para Tokushima, é que Venceslau refere com frequência a O-Yoné, nomeadamente no seu livro "O-Yoné e Ko-Haru"; relata-nos uma visita ao túmulo de Atsumori na companhia de O-Yoné, pouco antes da sua morte:

"(...) a penúltima visita que fiz àquele sítio deixou-me, sobre todas, impressões que não se apagam. Foi o último passeio que dei com a pobre O--Yoné. Era o dia vinte de junho do ano de 1912, um belo dia, resplendente. Eu convencera-a a acompanhar-me e a ir ver pelos seus olhos o túmulo de Atsumori, cuja história, é claro, era bem dela conhecida, como de toda a gente japonesa. Lá fomos. Ela, de ordinário recolhida em sua casa, sentindo--se mais ou menos indisposta, mas sem saber de quê, animava-se, jubilava em contacto com as brisas tépidas, enternecia-se em presenca dos aspectos viçosos da paisagem; o seu rosto, havia já longos meses macerado por não sei que sinais de morbidez, sorria docemente. Eu servia de guia (...) Contemplámos com respeito, dizia eu, o túmulo de Atsumori. Era esse íntimo respeito, espontâneo, que inspiram todos os sepulcros, independentemente de crenças, de religiões (...) Antes de nos despedirmos do lugar, visitámos uma pequena venda próxima, onde uma amável criatura oferece aos peregrinos certas refeições especiais, em honra de Atsumori, de mistura com outras curiosidades do local. O-Yoné provou os acepipes e comprou uns pêssegos deliciosos, comendo logo um, oferecendo-me outro e levando o resto para casa; rindo feliz do seu passeio...

"Exactamente dois meses depois, isto é, no dia vinte de agosto, a pobre O-Yoné morria...".

Não é fácil seguir a sua vivência durante este período; devido à sua posição oficial de cônsul português, os seus escritos são mais impessoais, não fala de si, da sua vida — apenas algumas ocasionais e breves descrições, da sua casa, de passeios, ou de visitas a alguma chaya —; mas ao falar do Japão, fala-nos de si, dos seus sentimentos, da sua sensibilidade em relação a tudo o que o rodeia, da beleza da paisagem, dos lugares sagrados, dos ritos, das festas, do povo e da sua cultura.

Já não temos aqui o viajante ocasional que nos descreve as impressões das suas viagens; mas conti-nuamos a ter o estrangeiro enlevado pela gente e pela terra; e os seus escritos mantêm ainda as características de crónicas de viagens, das pequenas viagens e passeios a diversos locais — sempre no Japão — e de pequenas narrativas sobre aspectos da vida e da cultura do povo japonês; mostra-nos já uma outra leitura, um outro olhar sobre o Japão e o seu povo; revela-nos a preocupação em precisar detalhes, em aprofundar os temas, apesar de manter o mesmo estilo de crónicas, as quais têm por principais destinatários os leitores do seu país; e essa necessidade de aprofundar os temas, nascida de curiosidade e do amor que nutre pelo objecto escolhido, transmite-nos o próprio Ven-ceslau nos seus "Serões":

"Quem haja permanecido por alguns anos no Japão e relanceado, com espanto, com interesse, com amor, a gentilís-sima cena exótica, experimenta naturalmente o desejo de respigar detalhes, de fixar minúcias. Dado à tarefa, é certo que, quanto mais busca aprofundar o motivo que escolheu, tanto mais se convence da impossibilidade de compre-en-dê-lo, de compreender o Japão e o seu povo, de penetrar enfim no denso mistério que o rodeia. No entretanto, de quando em quando, uma percepção fugidia das coisas lhe relampejará no espírito, bastante intensa, todavia, para o deliciar em surpresas. O investigador apaixona-se assim pelo seu tema, entusiasma-se pelas ligeiras descobertas que realiza. Julga então, por um doce impulso de altruísmo, poder transmitir a sua paixão, o seu entusiasmo a estranhos, a compatriotas distantes... o que, raramente, porém sucederá. E assim nasce a ideia de escrever, de comunicar pela imprensa a comoção sentida; vindo em breve a monografia, dada à luz em artigo de jornal ou em livro, a qual, na maioria dos casos, fará adormecer de tédio o leitor desprevenido".

A produção literária neste momento já de vivência no Japão pode definir-se, resumidamente, pelo carácter narrativo dos seus escritos, compreendendo sobretudo relatos, impressões, sentimentos, descrições de costumes, de factos, de acontecimentos. As cartas escritas para o jornal "O Comércio do Porto" — "Cartas do Japão" e "A Vida Japonesa" (de 1902 a 1913) — e os "Serões no Japão", pequenas crónicas escritas, entre 1906 e 1909, para a revista "Os Serões" (Lisboa) e que foram posteriormente (em 1926) reunidas em livro, são deste período; como o próprio Venceslau afirma, tratam-se de "simples notas avulsas, reunidas ao acaso, com o único intuito de irem despertar algum interesse, sem demasiado enfado — por serem breves —, a leito res da minha terra". Ainda neste período incluem-se as "Paisagens da China e do Japão" (publicadas em 1906 e escritas por volta de 1900), pequenos escritos sobre a vida japonesa, os costumes e lendas japonesas, e "O Culto do Chá" (publicado em 1905, em Kobe) onde descreve a importância do chá na vida japonesa. Sobre "O Culto do Chá", relata, alguns anos depois, uma viagem a Uji, a terra do chá: "(...) a pequena cidade provinciana onde há alguns anos colhi inspirações para um livrinho sobre o chá (...) Ao livrinho, quero muito, por íntimos motivos. Quanto a Uji, não mais ali voltara depois depublicado o livro. A gratidão, quando não outros impulsos, ia-me aconselhando a lá tornar. Empreendi pois recentemente este passeio, em época propícia — em Maio, — quando em plena colheita das preciosas folhas; e estão os senhores imaginando o alvoroço, o amor com que eu ia relanceando paisagens e rostos conhecidos, aspectos de labuta aos quais prestara já olhos atentos, todo o conjunto enfim a que devera a realização, tão feliz quanto possível, do meu capricho literário".

Capa do livro Cartas do Japão. Lisboa. Sociedade Editora Arthur Brandão & Caª., s. d..

Apesar da sua posição oficial, Venceslau não se priva dos seus passeios, das suas pequenas viagens, e sobretudo de se misturar com o povo, de ir com a "chusma" às festas, aos templos, "aos lugares mais pitorescos", em peregrinação ver os campos de cultura do kiku (crisântemo), observar a florescência das ameixoeiras, das sakuras (cerejeiras), das azáleas: "é então um prazer sair a gente da cidade e estender o passeio até aos campos de cultura do kiku, onde por milhares, as plantas florejam em galas multicolores (...)"; são as visitas às cascatas de Nunobiki, perto de Kobe, onde em "pequeninos poisos", as chayas, "descansa por momentos, toma uma chávena de chá, contempla tranquilamente o quadro", e onde "autênticas musumés, de carne e osso, garridas, sorridentes, vos acolhem com mesu-ras e com doces frasezinhas poliglotas — 'good-morning, bonjour...' — trazendo-vos a chávena ou o copo com cerveja, os bolos, os frutos e, ainda por cima, o estendal das fotografias, dos bilhetes postais ilustrados, tentando os vossos olhos, tentando a vossa bolsa". São as festas, e o desfilar da multidão, e o colorido das roupas das musumés, e a alegria do povo com o qual deseja misturar-se, que vai descrevendo encantado por "relancear a gente, à noite, o deslumbramento do espectáculo, iluminado por milhares de lanternas, animado pela multidão compacta, que se assenta sobre as bancas, rindo, cantando, tocando, bebendo, petiscando".

Das suas visitas frequentes a templos, budistas e xintoístas, dá-nos, em "Os Serões no Japão", uma das mais interessantes descrições sobre os lugares de culto ao comparar os templos japoneses com os templos ocidentais: "no perfil do templo do Ocidente, predomina a linha vertical, partindo da terra e elevando-se para o céu — o símbolo gráfico dos ímpetos do crente; — no templo japonês, nota-se a preferência para a linha horizontal, que acusa o amor à terra, à criação, à consciência satisfeita com os destinos (...) o deus reclama um jardim; o cuidado do arquitecto mira antes de tudo e sobretudo a escolha da gentileza do local, a formosura carinhosa do próximo arvoredo, da ribeira vizinha, do panorama em torno (...)". Mas não são apenas os lugares de culto, a sua arquitectura, o objecto do seu olhar; este acompanha, com frequência, os crentes, os peregrinos: "e, confesso, vale a pena acompanhar a chusma dos fiéis"; misturando-se com o povo, entra nos templos, assiste às cerimónias religiosas onde "rezam todos em coro, ladaínhas, numa cadência hipnotizadora, que impressiona, que comove (...) lembrando o som da voz, o som das vagas, no seu marulho eterno ao virem quebrar-se nas areias, ao longo das praias loiras..."; acompanhando "a turba, entrei em um e outro templo e lancei olhos piedosos (vá mais este pecado à conta de tantos que me pesam (...)para onde se veneram as divindades xintoístas...".

Venceslau de Morais, tal como Lafcadio Hearn, critica a ocidentalização do Japão, apoiando as ideias nacionalistas japonesas e insurgindo-se contra os efeitos da abertura do Japão ao mundo ocidental: "(...) entrou e está entrando, por este Japão dentro uma tremenda multidão de arremedos de usos e de costumes, que é mesmo coisa de espan tar!... As tendências para a transformação já se iam manifestando de longa data; mas agora é positivamente a febre, é o frenesi, é o delírio". Receia a "introdução a jorros da civilização ocidental no seio do Império, com o seu cortejo de vícios, de descren-ças" pois "é, fora de dúvida, um terrível factor desintegrante"; mas confia no povo japonês que, embora na "sua exterioridade caricatural se mostre susceptível de todos os arrojos, a alma nipónica, dotada de tão nobres dotes, de tão grandes predicados, permanecerá inalterável, inatingível", e sobretudo confia nas instituições sociais e religiosas: "enquanto no Japão houver templos shintoístas e crentes que os frequentem, está-me parecendo que este país será uma nação privilegiada, unida por fortes coesões de sentimentalidade e a coberto de todos os grandes perigos sociais que alastram pela Europa e pela América...". Acentua com frequência os sucessos, os atributos, as qualidades da sociedade japonesa — ou o que considera como tais —, mas omite os seus problemas, as suas tensões sociais. É um conservador e um observador pouco imparcial. O Japão fascina-o, pelas suas tradições, pelos seus costumes ancestrais, e não apenas pela beleza da paisagem ou da mulher. Olha-o com enlevo, descreve o que vê, o que sente, mas omite ou procura minimizar os problemas sociais da sociedade japonesa. O efeito do progresso, da abertura do Japão, que lentamente se extinguia à medida que se ocidentalizava, apresenta-se-lhe como o grande perigo que possa vir a pôr em causa os valores da sociedade japonesa, confiando contudo "que este extraordinário povo, que tem dado ao mundo exemplos notabilíssimos da sua perspicácia, que soube em pouco mais de trinta anos surgir do seu isolamento misterioso para uma civilização moderna (...) compreenda claramente a sua situação e o justo caminho que deve seguir no intuito do seu progressivo engrandecimento".

O fascínio pela "filha do Nippon", pela musumé, descreve-o, ora exaltando-lhe a beleza física — "as mãos— mãos deliciosas, — e os pés — pés deliciosos", ora o seu encanto — "se há encanto nela, tal encanto não poderá derivar de características sexuais; será quanto muito, um encanto colorido, de linhas, de ondulações murmurantes de sedas e de cetins; ou ainda um encanto de flor, um encan- to de insecto, um encanto de ave de policroma plumagem". E já não é apenas o encanto da musumé que descreve; agora o seu olhar vai mais longe e procura apreender a condição da mulher, na família e na sociedade nipónica. Para Venceslau de Morais — conservador, para quem as novas ideias sociais do Ocidente representam uma triste degenerescência da sociedade ocidental —, o papel da mulher, "o seu verdadeiro reino, onde ela ostenta primores deliciosíssimos, é no seio da família", pois "o seu lugar, no campo social, é ínfimo"; o homem "é o chefe da família, ele é o dirigente, ele é o rei; a mulher obedece-lhe (...)".

"Musumés, o supremo feitiço do Nipão!... Quanto a mim, confesso, eu fui aqui trazido por uma branca mãozita de musumé, que pelo pulso me conduz e nunca me abandona (...) É ela que me guia pelos trilhos deste país de seduções, apontando-me para as cerejeiras floridas, para os bosques de verdes pinheiros, para os templos em festa, para os sítios da lenda, para as casinhas de papel, para o povo feliz. Aonde me levará ela ainda?... Não sei; acaso, para remate da excursão, que vai já longa, a algum cemitériozinho de aldeia, todo serenidades esquisitas, todo lousas musgosas com inscrições meio apagadas, todo azáleas vermelhas, todo borboletas em voo e todo descantes de cigarras; convidando-me então a repousar ali, sobre o travesseiro da terra fofa, ao que me julgo com direito (...)".

TERCEIRO MOMENTO: DE KETÔ-JIN A MORAIS-SAN "O CULTO DA SAUDADE"14

"O Japão foi o país onde eu mais vivi pelo espírito, onde a minha individualidade pensante mais viu alargarem-se os horizontes do raciocínio e da compreensão, onde as minhas forças emotivas mais pulsaram em presença dos encantos da natureza e da arte. Seja pois o Japão o altar deste meu novo culto — a religião da saudade, — o último por certo a que terei de prestar amor e reverência".

Terceiro momento ou "espaço-temporal" da vivência em Tokushima (de 1913 a 1929): em 1913 Venceslau pede a exoneração do cargo de cônsul de Portugal em Kobe e vai viver para Tokushima15. É a incompatibilidade da sua posição oficial com a sua vida privada que o preocupa; são os laços que o ligam a Portugal que se vão quebrando; são as desilusões, as injustiças do governo português, e a morte de O-Yoné, em 1912, que o levam a tomar a sua decisão. Resolve abandonar a vida oficial e ir viver definitivamente na vida japonesa. "Feliz do homem que, no declinar da vida e já quase no termo da viagem, havendo prestado o seu concurso de actividade, como melhor soube ou como melhor pode, ao seu país, encontra em si possibilidade, pretextos e coragem para renunciar aos seus deveres e aos seus direitos, recolhendo-se ao isolamento, pobre, esquecido, amortalhado na justa indiferença dos seus compatriotas. Eu encontrei esta possibilidade e estes pretextos e tive esta coragem; por isto, pouco mimoso de carinhos de fortuna durante toda a minha vida, sinto-me hoje satisfeito do destino, contente do suicídio moral que cometi". A ideia de regressar a Portugal e aí gozar a sua reforma é abandonada após a morte de O-Yoné. Segue a tradição japonesa e retira-se para Tokushima, a terra natal de O-Yoné:

"Quanto à razão porque dei preferência a Tokushima para meu poiso de retiro, esta é também de explicação fácil.

"Há pouco tempo — menos de dois anos, — em certa tarde de agosto, alguém, tomando as minhas mãos entre as suas, fez-me um pedido instante; pobre ser, que tinha família numerosa — mãe, irmãos, irmãs — todos ausentes porém e, francamente, pouco interessados no seu bem; e que sabia perfeitamente ser eu a única pessoa capaz de tentar, do coração, satisfazer os seus desejos, por mais complicados que parecessem. Pediu-me que lhe conservasse a vida...

"E eu não lhe satisfiz o seu pedido; não estava em meu poder satisfazer-lho. Balbuciou uma frase de resignação, apertou-me as mãos num esforço derradeiro (sinto ainda este aperto?...) e deixou-se morrer...

"No dia seguinte ao seu passamento, o corpo foi cremado no crematório de Kobe (...) as cinzas foram transportadas para Tokushima, terra natal do pobre ser desaparecido, e aqui depositadas sob a lousa de uma singela sepultura, num dos vários cemitérios da cidade.

"Ora, corridos meses, achei-me um dia em Kobe completamente independente, completamente só, sem encargos, nem direitos, impondo-se por este simples facto o dever de tomar uma resolução imediata.

"Murmurei então a mim mesmo: — Conta os cobres que tens na tua bolsa e mede em seguida os limites que podes dar aos teus caprichos, és livre, segue avante (...) Foge dos vivos; vai para Tokushima, para perto desse túmulo que te evoca um nome caro, que te dá vulto a uma saudade.

"O homem, no tocante à vida sentimental — única que pode rasgar-te ainda horizontes; — só vive por dois modos, pela esperança e pela saudade; quando quase a termo da viagem da existência, todas as esperanças se dissipam, é lógico que busquemos consolo na saudade.

"— E vim para Tokushima".

No entanto, e apesar da morte de O-Yoné ter pesado bastante na sua decisão, nomeadamente na escolha do local, "é um erro pensar-se, como entre nós se tem pensado e escrito, que Venceslau passou a existir apenas para a mórbida recordação da defunta. No Japão como na China, os mortos vivem; apenas o transitório invólucro corporal perece, mas a sua alma, a força da personalidade, que dá e recebe os afectos, continua a existir em casa, misturando-se à lida dos livros, intervindo, vigiando, protegendo (...) É frequente no Japão o viúvo ou a viúva vender tudo para ir viver junto das cinzas do esposo. Venceslau não fez mais do que seguir o velho hábito japonês".16

A sua decisão de se retirar da vida oficial pode considerar-se como uma libertação: "(...) porque —penso eu agora me ungia de mudas sugestões de independência, de liberdade, de paz, em face dos espectáculos simples dos campos, longe dos agrores da vida requintada, de falsas aparências, como a vida é nos grandes centros civilizados, para a qual a minha alma combalida se vinha manifestando, desde muito, decididamente incompatível". Agora "está livre de dedicar todo o seu tempo às ocupações de escritor (...) livre de se lançar nessa fonte genuína da vida japonesa, de se embeber nas águas lustrais e virgens. Agora pode falar de si sem reservas (...)"17: — "(...) de improviso, no último quartel da vida, neste isolamento de Tokushima, rasga-se diante do meu espírito inteira liberdade de acção. Posso fazer o que quizer, posso pensar no que quizer". É este o "momento" da vida de Venceslau cujos escritos são mais pessoais — exceptuando os "Relances", o "Relance da História do Japão" (1924) e o "Relance da alma japonesa" (1925) —, a sua obra deste período é como que um diário íntimo, onde fala de si, da sua vida, do seu dia-a-dia em Tokushima. Escreve o "Bon Odori em Tokushima" (1914-15) — "caderno de impressões íntimas" é o seu subtítulo. Trata-se de um género literário característico no Japão, nikki ou caderno de impressões íntimas, que Venceslau adopta para descrever impressões da gente e da vida de Tokushima, e igualmente de si, da sua casa, do seu quotidiano. E como ele próprio o afirma, ao começar a datar as suas "impressões", resolve dar-lhe a forma de diário, "que convém ao género literário de impressões, de notas várias, as quais evidentemente se subordinam à época até às estações do ano, em que foram escritas". Depois escreve "Ko-Haru" (1916), publicado primeiro em folhetim e mais tarde em separata, em "O Comércio do Porto". "Ko-Haru" seria posteriormente incluído no seu livro "O-Yoné e Ko-Haru" (publicado em 1923); trata-se do seu livro mais pessoal, já não é o observador que "vê de fora", mas agora descreve as suas impressões mais profundas, os seus sentimentos, as suas recordações, o seu dia-a-dia na cidade de Tokushima. Agora é ele a personagem principal.

Ao retirar-se para Tokushima, "uma grande cidade com costumes de aldeia", na ilha de Shikoku, renuncia a tudo. Tudo, não. "Trocando a minha residência (casa e escritório) de Kobe por este simples poiso de retiro em Tokushima, votei prudentemente ao desbarato o montão kaleidoscópio de coisas que fora acumulando durante quase sessenta anos de existência. Mas ficou-me ainda um resto ínfimo, ínfimo em quantidade, mas da maior valia estimativa, do qual, a todo o preço, eu não quizera, eu não pudera despedir-me; e é este resto ínfimo que eu agora relanceio e que enche, contra as regras do bom gosto japonês, o meu cubículo de exílio (...) Mas serei eu acaso um japonês? Não, por certo. Não se engeita uma raça, não se engeita uma pátria. E não vai nisto nada que cheire a sentimentalismo. Não se engeitam, não se podem engeitar heranças ancestrais, de tendências, de preferências, legadas durante inúmeros séculos, por uma infinidade de ascendentes, muito embora os caprichos do destino nos arremessem aos antípodas. Aqui, pois, isolado por completo da civilização dos brancos, não cessarei de ser um deles, não cessarei de ser um branco, de ser um português, na cor e no sentimento, denunciando-se a minha individualidade até às particularidades mais miúdas". Faz a escolha escrupulosa dos seus livros (entre os quais inclui Camões, Fernão Mendes Pinto e Lafcadio Hearn), das suas recordações: "ninharias, futilidades, reduzindo-se tudo a recordações (...) A minha mortificada mentalidade pode comparar-se a um grande polvo, provido de enormes tentáculos, que se estendem em todas as direcções, na ânsia de apreender, de abarcar tudo que lhe fale do passado distante". E é aí, nessa cidade provinciana, que passa os restantes anos da sua vida. "Ora, é nesta terra de deuses e budas, em Tokushima, onde eu vim estabelecer o meu albergue, onde vim em procura da paz, da tranquilidade, para o corpo e para o espírito. Ousadia! Incrível ousadia, para um loiro, para um homem dos países da raça branca e, ainda por cima, português!..." Aí vive com Ko-Haru e aí se converte ao budismo. Martins Janeira é da opinião de que a conversão ao budismo se trata de uma adopção dos preceitos do budismo como forma de penetrar mais fundo na alma japonesa e disso "são prova os seus últimos livros, que mais profundos se tornam quanto mais ele se interna nas ideias budistas, quer expressas na literatura clássica, quer nos actos em que se manifestam na vida da família nipónica"18. Por outro lado, a sua conversão ao budismo não terá sido também uma tentativa de, por essa forma, mais facilmente ser aceite na família japonesa?

Sobre Ko-Haru escreve: "Eu conheci muito uma Ko-Haru, com quem ainda há poucos dias palestrava (...) Ko-Haru era uma moça espigada, trigueira, alegre, viva, parecendo vender saúde. Não se lhe poderia chamar uma beleza, estava muito longe disso. Havia encantos, todavia, no seu perfil esguio, na desenvoltura dos seus gestos de criança da rua — pois fora principalmente na rua que medrara, — na franca doçura do olhar, no sorriso em que a boca a cada momento se arqueava, a deixar ver duas fileiras de alvíssimos dentinhos, e nas formas modelares das suas mãos e dos seus pés. Ainda por cima: — inteligente, mais do que a grande maioria das mulheres do seu humilde nível social; dotada de um fino temperamento artístico, curioso, investigador, facilmente impressionável, perante as belas coisas naturais; e com um tique de poesia sonhadora, a fermentar lá dentro, no âmago do cérebrosinho esgazeado...". Ko-Haru morre de tuberculose aos 23 anos de idade. Venceslau acompanha a doente, desde o dia em que entra num hospital em Tokushima, até à sua morte:

Monge Yue Washino, do Templo de Tokai em Tokushima, que conheceu Morais e se tomou oficiante do seu culto.

"Pela tarde do 1º dia do bon-odori (dança da festa dos mortos) em Tokushima, isto é, em 12 de Agosto de 1916, Ko-Haru era levada numa maca, por seu especial desejo, de casa para um hospital de Tokushima; (...) Ko-Haru encontrava-se geralmente sozinha, tendo por companhia o sofrimento apenas. Vinha eu, diariamente, por algumas horas. Parentes, conhecidos, raros. O próprio pai, a própria mãe, as irmãs, com pouca assiduidade se mostravam (...) [facto] que me revoltou intensamente a mi-nha sensibilidade passional de homem da Europa, pareceu-me contudo, depois de nele haver pensado, natural e em harmonia com as leis universais da criação. Julgava eu, a princípio, que os pais sacrificariam tudo e todos — interesses próprios e atenções aos filhos sãos, — para acudirem em socorro do filho enfermo, caído em sofrimento. Puro engano; (...) Ko-Haru tornara-se o pinto gosmento, que era forçoso abandonar, em benefício da prole sadia e esperançosa. — Ficava eu só, para cuidar dela...".

Depois da morte de Ko-Haru (a 2 de Outubro de 1916) fica completamente só, vivendo de recordações e saudades — "é sempre a saudade, sempre a saudade a vir morder-nos!..." —, vivendo de lembranças do passado, vivendo da lembrança das duas mulheres que amou:

"Era, como disse, por uma destas últimas noites de Junho, cerca das nove horas; noite escura húmida, embebida em cacimba, irritantemente morna e opressiva

(...)

"Eu saíra de casa, visitara dois túmulos amigos num mesmo cemitério, fizera algumas mercas nas lojinhas; e agora recolhia a casa, fatigado, enervado, mal disposto, para o que concorria seguramente a inclemência do tempo(...)

"Depois de percorrer as ruas animadas de Tokushima, eis-me entrado no bairro quieto, quase aldeia, que avizinhava o meu casebre. Pouco após, é a minha própria rua, esta absolutamente solitária, mergulhada em trevas e silêncio(...) Agora chego à minha porta. Busco nas algibeiras a chave do cadeado protector, que me garante das possíveis visitas dos ladrões. Encontro a chave; mas, cego pelas trevas, mal disposto pelo desconsolo em que me sinto, pelos embrulhos que me pesam, pela fadiga que me enerva, pela chuvinha que me molha, multiplico-me em tentativas, prodigalizo-me em manejos, sem conseguir dar com o buraco do cadeado e abrir a porta (...) Então, de dentro da rama espessa da árvore única, um carvalho, que se ergue robusto e vicejante mesmo à entrada do casebre, a luzinha azulada de um pirilampo surdiu e começou a volutear cerca de mim; tão próximo das minhas mãos e do cadeado, que me permitiu sem custo servir-me da chave eficazmente, podendo penetrar em minha casa.

"Abençoado insecto, que veio assim, na ampla curva do voo casual, tão gentilmente beneficiar-me!... Casual? E porque não premeditado?... Ponho-me agora a divagar em estranhas conjecturas. Nesta grande cidade de Tokushima, que conta cerca de setenta mil habitantes, duas únicas criaturas, ninguém mais, duas mulheres indígenas, filhas do povo, da mesma família, tia e sobrinha, O-Yoné e Ko-Haru, seriam capazes, se ainda existissem, de se dar à incómoda tarefa de virem de longe, arrastando as sandálias pela lama, lanterna de papel transparente suspensa dos deditos, para alumiarem o meu caminho e facilitarem-me a operação de abrir a minha porta. Mas estas duas criaturas já não podem vir aqui, jamais aqui virão; já não existem; morreram (...) Não, já não podem vir aqui, jamais virão aqui (...) no entretanto aquele insecto... Não são os japoneses que creem que os seus mortos podem volver à terra, incarnados noutros corpos, uma ave por exemplo, um insecto por exemplo, embora conservando reminiscências afectivas das suas existências anteriores?...

Após esta última interrogação, que o meu espírito a si próprio se fizera, senti não sei que angústia pesar tão duramente, que me estacou de súbito as pulsações do coração. Foi um momento apenas. Em seguida, mais sereno, não pude conter estas palavras: — Será O-Yoné?... Será Ko-Haru?...".

E numa outra passagem descreve a sua lida diária e o seu jantar num dia de festa, sozinho, ou antes, na companhia do seu gato e da recordação dos seus entes mais queridos, da sua irmã, de O-Yoné e de Ko-Haru:

"Era o dia lº de janeiro do ano corrente de 1919 (...)Dia de festa. Eu encontro-me só em casa, o que me acontece várias vezes; só, com o meu gato, com as minhas galinhas e com outros animalejos de somenos importância (...) Bem, dia de festa. Já varri a casa, já dei de comer aos bichos e já me entreguei a outros humílimos misteres. Agora, toca a partir o carvão, a acender o lume e a preparar o meu jantar — jantar de festa, por sinal. — Ora pois, mãos à obra (...)

"Quando saboreei o meu jantar, de joelhos sobre a esteira, sozinho com o meu gato, observei que o gato dava mostras de grande predilecção pelas sardinhas, mas desprezou o caldo verde; questão de educação. Sozinho, disse eu; para ser mais verdadeiro, devo antes registar que então me acompanhavam, como sempre me acompanham, mas naquele dia festivo mais intensas, as recordações da minha irmã ausente e as recordações das minhas mortas. A certa altura surpreendi-me mesmo a sorrir, correspondendo por este modo a certos sorrisos que imaginei virem de longe e serem-me dirigidos: — sorrisos, ligeiramente motejadores, de minha irmã, quando eu comia as sardinhitas; sorrisos ligeiramente motejadores, das minhas mortas, O-Yoné e Ko-Haru, quando eu sorvia o caldo verde...".

No dia 20 de cada mês, aniversário da morte de O-Yoné, recebe em sua casa a visita de uma bonza budista — uma ama-san — que defronte do altar dos mortos, "vem fazer as suas rezas, junto do butsudan, o altar dos mortos," rezas em intenção de uns pobres entezinhos, cujos espíritos se supõe povoarem de certo modo o casebre onde habito (...); rezas de um culto religioso que não é a minha religião, a minha é outra, — e que viria a minha religião fazer aqui? — mas que era a religião deles, dos pobres entezinhos desaparecidos, a religião que os embalou em crenças durante a vida inteira".

Vive solitário — "Ah, solidão! vasto campo ressequido, povoado de espectros..." — numa terra que não o compreende e que lhe chama "Ketô-jin" (selvagem barbudo): "(...) aqui, em Tokushima, nos meus passeios solitários, muitas vezes a gaiatada e o povo rude soltam à minha passagem o impropério —tôjin! — ou — ketô jin —. Já me aconteceu o mesmo em outros pontos do Japão, mas com menos frequência. Mas aquela criancita com seis anos de idade, que me sorria, é que não queria nem saberia seguramente injuriar-me (...)".

Apesar da sua solidão, das suas desilusões, e da incompreensão da gente da terra, não se encontra, em toda a sua obra, uma palavra de ofensa ou hostilidade contra o povo japonês e o seu amor pelo Japão mantém-se. Mas ao falar de Lafcadio Hearn não estará também a falar de si próprio quando refere que "(...) no prolongado contacto com o exotismo, o homem da Europa reconhece, geralmente tarde e com desgosto, que uma grande barreira moral o separa do povo com quem quis conviver, que quis amar e do qual quis ser amado (...)"? Tal como Heam, Venceslau era um apaixonado, de tempera mento sensitivo e delicado. Mas se Lafcadio Hearn chega por fim a denunciar um certo azedume contra o país e o povo que o cativara, Venceslau não demonstra qualquer sentimento de hostilidade ou diminuição de estima e de amor pelo povo japonês, apesar de transparecer o desgosto e o receio de não ser, nem nunca vir a ser, aceite pelo Japão: "(...) e tão insinuante era a impressão, que me envolvia num ambiente de benevolência e de benções, levando-me a sorrir à gente que ia encontrando na rua, de quem colhia em troco também um sorriso, que eu interpre-tava, agradecido, por saudações carinhosas (...) Só mais tarde reconheci que me iludira e que os sorrisos deste bom povo de Tokushima, arisco, conservativo, detestando cordealmente o europeu, traduziam simplesmente o escárneo e a aversão pelo homem branco...".

Um ano após se ter instalado em Tokushima afirma não se sentir arrependido do passo que tomara: "(...) durante o primeiro ano de exílio e de reconhecimento, nenhum incidente grave veio abalar o edifício da minha insípidez. Praticamente passou-se-me o tempo num silencioso trabalho de adaptação, necessário ao meio e às condições especiais do meu novo viver(...) mas sofrendo, sofrendo sempre, encontrando apenas algum aprazimento sentir-me mais próximo dos espectáculos naturais e em, talvez, melhor compreendê-los. Não me arrependo porém do meu suicídio moral; antes mais e mais me chego a convencer que me encontro no único meio de certo modo compatível com o estado de alma e com as condições de existência desolada a que fatalmente resvalei".

Em "O-Yoné e Ko-Haru", mais precisamente no capítulo intitulado "o barril do lixo do cemitério de Chiyo on-Ji", Venceslau de Morais, tendo por objectivo "oferecer a alguns amigos uns rápidos traços da minha insignificante personalidade", dá--nos um retrato de si próprio, na sua solidão, dos seus desejos e dos seus receios, sobretudo desse seu receio de não ser aceite, nem mesmo após a sua morte, na família japonesa:

"(...) o indivíduo que eu tinha em frente dos meus olhos, com ares de abandono de si mesmo, dos outros e de tudo, oferecia todos os indícios inequívocos de um desses pobres diabos, de um desses párias, que o Ocidente atira de quando em quando para os países exóticos e distantes, por não os querer e por eles o não quererem; um João Ninguém qualquer, náufrago da vida, havendo provavelmente passado mil trabalhos e mil revezes numa existência aventurosa; pedindo agora ao destino apenas um pouco de paz e uma restea de sol acariciador, no solo estranho em que se encontra.

"O sujeito vestia um modesto fato de flanela azul, mal justo ao corpo, amarrotado e poeirento, com fartura de pelos de gato colados à felpa da fazenda, fazendo ver que jamais mãos cuidadosas de mulher o sacudiam e compunham. Na cabeça um boné cinzento. A mão rugosa apoiada a uma grossa bengala. Os cabelos, compridos e anelados, caiam-lhe pelas costas. Uma longa barba inculta emoldurava-lhe o rosto, ondulando por vezes ao vento. Os cabelos ainda eram loiros; a barba quase toda branca, mas desse branco tirante a cor de palha, que nunca atinge a completa alvura em certas barbas, que foram loiras noutro tempo (...)

"Passando junto dos gaiatos, que àquela hora abundam, uns berravam-lhe — "ketô-jin!" (selvagem barbudo!) — outros, por troça, faziam-lhe a continência militar, deitando a língua de fora ao mesmo tempo. Até as rapariguitas ensaiavam idênticos gestos de motejo; mas... tão gentil é o mimo do seu sexo no Japão, que o mesmo motejo se transforma em graça e tinha ares de uma carícia. O velho sorria ligeiramente a tudo aquilo, não sei com que intenção, se agradecido, se irritado; mas, de uma vez, vi eu que a mão se estendeu sobre a cabeça de uma pequenita que passava ao seu alcance, afagando-lhe de leve o cabelo de azeviche (...)

"O velho, familiarizado sem dúvida com o sítio, deixou à sua esquerda o templo de Tenjin e enfiou resolutamente por uma escura azinhaga (...) Poucos passos adiante, achavamo-nos num vasto cemitério. Já a este tempo o sujeito havia percebido que eu lhe ia na esteira. Parou, esperou que eu me aproximasse e dirigiu-se-me pouco mais ou menos por estaforma, em linguagem portuguesa:

"— Noto que a curiosidade o traz a seguír--me e a cogitar o que venho aqui fazer. Vou satisfazê-lo de pronto. Antes de tudo: — sabe como se chama este cemitério, que tem um pequeno templo adjunto? É o cemitério de Chiyo on-ji(...) Sigamos um pouco mais em frente. Quero mostrar-lhe dois túmulos de duas mulheres, que eu muito conheci. Ei-los. À direita é o túmulo de O-Yoné, morta há sete anos; aqui cerca, é o túmulo de Ko-Haru, sua sobrinha, morta há perto de três anos; ambos estes túmulos mandei eu construir; devia à memória das duas esta comemoração piedosa. São estas duas desventuradas amigas, que eu venho aqui frequentemente visitar. Note que, quando a gente não tem amigos vivos, encontra nos amigos mortos suaves consolações ao sofrimento (...) Saiba agora, que é neste mesmo cemitério de Chiyo on-ji onde eu desejo se dê um dia sepultura às minhas cinzas, após a cremação, como é de uso aqui; não isoladas, acompanhadas de outras cinzas; curioso é confessar-lhe— ria-se da puerilidade... — que, embora habituado à solidão durante muitos anos, a solidão tumular causa-me horror. Quando vim para Tokushima, dos dois túmulos que lhe apontei, só se erguia o túmulo de O-Yoné. Ocorreu-me então a ideía, de que, junto das cinzas dela, debaixo da mesma lousa, as minhas encontrariam bom abrigo; mas foi-me antecipadamente negado tal favor pelos parentes próximos, — mãe e irmão, — que irromperam em vociferações de fúria religiosa, como se se tratasse de um sacrilégio, de uma ignóbil poluição... caso que constitue o exemplo mais frisante da intolerância racial, que o Japão, em longos anos de experiência, tem oferecido ao meu exame. Tempos depois, morre Ko-Haru, erguendo-se então para ela a sepultura que está vendo. E, vai daí, pergunto eu à mãe: — "E você também nega às minhas cinzas o túmulo de Ko-Haru?..." — Não, não o nega, promete-me. Bem, ficou este negócio de reserva, para ser regulado em tempo próprio; mas confesso que semelhante promessa mui pouca confiança me mereceu. Pouco depois morre o pai de Ko-Haru. Pouco depois, morre o filho de Ko-Haru (a morte mostra predilecção por aquela pobre gente). E zaz! e zaz! por duas vezes o túmulo de Ko-Haru se abre e recebe aqueles dois acréscimos de cinzas mortuárias; não que a mãe mo dissesse, como fora talvez de boa cortezia, mas eu próprio dei fé destes manejos, por haver surpreendido sobre o túmulo sinais frescos dos ritos prestados aos dois últimos mortos. E ponho-me eu a pensar: — Ora, esta mãe de Ko-Haru, levada pela miséria em que vive, pela indolência e apatia que professa em todos os incidentes da exis-tência, é talvez uma espécie de livre pensadora, desabusada de preconceitos, de superstições, de tudo. Para ela o túmulo da filha é como um barril de lixo do cemitério de Chiyo on-ji, onde se julga com direito de vazar todos os detritos que lhe sobram, isto é, as cinzas de todos os seus mortos... Um punhado de cinzas a mais — as minhas — não será coisa que destoe enormemente, nas circunstâncias eferidas; especialmente se o favor for gentilmente retribuido com algumas moedas de prata do meu espólio. Começo pois a acreditar na sinceridade da promessa recebida e a convencer-me de que, talvez, mais uma vez o túmulo de Ko-Haru se abrirá um dia, para então receber os meus despojos...

"O velho fez-me um gesto de quem nada mais tinha que dizer-me. Compreendi-o. Estendi-lhe a mão em sinal de despedida, dei-lhe o meu nome e perguntei-lhe o seu. Sem hesitação respondeu-me: — Venceslau de Morais."

Morre a1 de Julho de 1929, na sua casa de Tokushima. No seu testamento, datado de 12 de Agosto de 1919, pede que seja cremado e enterrado segundo os ritos budistas, manifestando a preocupação e o receio de não ser admitido — ele, um ketô—jin — num cemitério japonês, lugar sagrado reservado aos filhos do Nippon; não lhe foi recusada esta última vontade: é cremado e as suas cinzas depositadas no cemitério de Chyion-ji junto das cinzas de Ko-Haru.

Hoje, em Tokushima, o povo celebra-o, e chama-lhe respeitosamente Morais-San.

UM ÚLTIMO RELANCE

"Pressentimos que, apesar de tudo, as nossas viagens, as nossas leituras e os encontros com os nossos semelhantes, constituem meios de enriquecimento que não podemos rejeitar".

Marguerite Yourcenar, in "Uma volta pela prisão"

De sujeito-viajante a sujeito-errante, de ketô-jin a Morais-San ou Porutugaru-San: Venceslau de Morais que do "Dai-Nippon" fez o objecto desejado, interiorizado, da sua obra, é um narrador apaixonado e apaixonante, cuja obra constitui o prazer de falar, de narrar, de comunicar, a sua visão, as suas impres sões, os seus sentimentos. Recusando um discurso metódico, realista, científico (ou antes, pseudo-cien-tífico), prefere a narrativa íntima, "relanceando" impressões, "palestrando" ao acaso: "escrevo impressões íntimas, numa peregrinação vagabunda do pensamento, peregrinação que me é particularmente grata, mas quase estéril, sem dúvida, para aqueles que tiverem a pachorra de acompanhar-me". À exposição metódica contrapõe a percepção subjectiva, pelo prazer de escrever ao agrado da inspiração, constituindo a sua vasta obra quase que um texto único, como ele próprio o desejara e para a qual já havia imaginado um título: "Album de Exotismos Japoneses"; uma obra onde retoma constantemente os mesmos temas, pois o objecto desejado — o Japão — permanece sempre o mesmo, mas evolutiva, dinâmica: "a vitalidade da obra moraesiana vem-lhe do penetrar cada vez mais fundo na alma japonesa e de apreender e definir a cosmorama das suas múltiplas facetas"19

A vivência de Venceslau de Morais no Japão constitui um itinerário contínuo e evolutivo, e a sua obra reflecte esse contínuo, num tempo e num espaço, e as rupturas que nele se vão dando: nos primeiros anos de contacto com o Japão, Venceslau dá-nos uma visão do Japão exótico, numa descrição de viajante fascinado, apaixonado, com o exótico, com o pitoresco, com as maravilhas da terra e da gente; é sem dúvida uma visão superficial, mas rica e fascinante. A sua visão do mundo nipónico vai-se aprofundando à medida que a convivência com o povo é maior; e torna-se por fim mais profunda, mais rica e sobretudo mais pessoal nos últimos anos da sua vida, em resultado de uma longa e desejada convivência com o povo japonês.

Tal como dizíamos no início deste texto não pretendemos retratar cronologicamente a vida de Morais no Japão mas observar, através dos seus escritos, a sua vivência e a sua visão do mundo japonês. Aqui apenas procuramos apresentar uma proposta de leitura da vivência de Venceslau no Dai-Nippon, apoiando-nos na sua obra; uma análise mais detalhada da sua visão do Japão será objecto de um outro trabalho — "A visão do mundo japonês em Venceslau de Morais" — ao qual fomos recolher elementos para a elaboração desta primeira e breve abordagem.

NOTA DO AUTOR

O presente texto constitui parte de um trabalho mais vasto — "A visão do mundo japonês em Venceslau de Morais" — no qual propomos observar, através dos seus escritos, a visão que o sujeito-narrador transmite do mundo japonês; neste texto apenas procuramos apresentar uma proposta de leitura sobre a vivência de Venceslau de Morais no Japão, leitura que tem por base os seus escritos publicados em livros, estabelecendo uma relação entre a obra e a vivência do autor no Japão.

NOTAS

1 Armando Martins Janeira, na introdução a "Os Serões no Japão", 2ª edição, Parceria A. M. Pereira, Ldª, 1973.

2 Armando Martins Janeira, na introdução a "Os Serões no Japão".

3 Armando Martins Janeira, em "Os Serões..."

4 Celina Silva, na introdução ao "Dai-Nippon", Livraria Civilização Editora, Porto, 1983, pág. 23.

5 Sobre o conceito de "história de vida" convém precisar a terminologia; a língua inglesa dispõe de dois termos precisos — "story" e "history" —; por "life story" pretende designar-se a "história de uma vida" tal como o narrador a viveu e a descreveu; a língua francesa adoptou o termo "récit de vie" no mesmo sentido em que é utilizado o "life story". Por "life history" entende-se uma história de vida pessoal, baseada não apenas no que o sujeito narrador deixou, mas que compreende o recurso a um conjunto de documentos e de fontes exteriores ao sujeito narrador. Utiliza-se aqui o termo "história de vida" no mesmo sentido do "life story" ou "récit de vie", ou seja, a "história de vida" tal como ela nos é relatada pelo sujeito narrador.

6 Sobre o método biográfico consulte-se: Daniel Bertaux, "L'approche biographique. Sa validité méthodologique, ses potentialités", Cahiers Intemationaux de Sociologie, numéro spécial: Histoires de Vie et Vie Sociale, volume LXIX — 1980 e Franco Ferraroti, "Histoire et Histoires de Vie. La méthode biographique dans les sciences sociales", Paris, Librairie des Méridiens, 1983.

7 Os enunciados ou escritos de Venceslau de Morais referentes ao "primeiro momento" foram seleccionados do livro "Traços do Extremo Oriente", capítulo "Saudades do Japão", Livraria Barateira, Lisboa, 2ª edição, 1946.

8 Armando Martins Janeira, "O Jardim do Encanto Perdido", pág.192.

9 Armando Martins Janeira, obra citada, pág. 192.

10 Toda a obra de carácter biográfico (biografias, memórias, histórias de vida) é sempre subjectiva; a narração biográfica é um acto humano, na qual a experiência e a interacção entre o "eu" e o "mundo" revela-nos um "eu particular" e um "mundo individualizado", pelo que essa prática humana que constitui a biografia, os relatos de vida, ou as memórias, é uma actividade sintéctica, uma totalização activa do contexto social; ou, como refere Ferraroti, "loin d'être 1'élémentle plus simple du social — son atome irréductible — l 'individu est également une synthèsecomplexe des élément sociaux", e esse acto humano que constitui a narração biográfica surge do indivíduo enquanto ser social, enquanto "síntese complexa de elementos sociais", num determinado contexto social. E é para esse contexto social —que Venceslau de Morais escolheu para viver e que procurou transmitir atravésdos seus escritos—,quedevemosolhar, embora, eobviamente, esse universo se nos revele através da formação de um sujeito particular, sobre a forma de um "mundo individualizado".

11 Jorge Dias, "A perspectiva Portuguesa do Japão", Boletim do Centro de Estudos Marítimos de Macau, 2, Centro de Estudos Marítimos de Macau, pág. 107.

12 Venceslau de Morais nasce em Lisboa a 30 de Maio de 1854. Escolhe a carreira das armas, mas decide abandonar o Exército e entrar na Marinha; conclui o curso de oficial da Marinha na escola naval em 1875; na qualidade de oficial da Marinha vai para Macau em 1888, sendo nomeado imediato da Capitania do porto de Macau em 1891, e aí permanece até 1899. É na qualidade de oficial da Marinha que realiza diversas viagens ao Japão, país onde se fixa em 1899 quando é nomeado cônsul de Portugal em Hiogo e Osaka. — Sobre a vida e a obra de Venceslau de Morais consulte-se a obra de Armando Martins Janeira, "O Jardim do Encanto Perdido ou a aventura maravilhosa de Venceslau de Morais no Japão", uma das mais completas e interessantes biografias de Morais.

13 Os escritos referentes ao "segundo momento" foram seleccionados dos seguintes livros: "Os Serões no Japão", Parceria A. M. Pereira, Ld, 2 edição, 1973; — "A Vida Japonesa" (l 905-1906), Livraria Chardron de Lello& Irmão, Porto, 1985; — "Cartas do Japão", 2a série (1907-1908), Lisboa, Portugal—Brasil, Soc. Editora; — "Cartas do Japão", 1a série (1902--1904), Lisboa, Parceria, 1977.

14 Os escritos referentes ao "terceiro momento" foram seleccionados das seguintes obras: — "O Bon Odori em Tokushima", Porto, Companhia Portuguesa Editora, 2a edição; — "O-Yone e Ko-Haru", Porto, Edição de A Renascença Portuguesa, 1923.

15 O requerimento a pedir a demissão imediata de funcionário consular e de oficial da Armada Portuguesa data de l O de Junho de 1913; nele Venceslau de Morais invoca "causas muito poderosas de conveniência particular" e declara que deseja "permanecer no Japão, onde conta empregar-se numa situação incompatível com qualquer posição oficial de funcionário português, incluindo a de reforma, e mesmo talvez incompatível com a sua nacionalidade de português". Estaria Venceslau de Morais numa eventual possibilidade de vir a nacionalizar-se japonês, à semelhança do que fizera Lafcádio Hearn?

16 Armando Martins Janeira," O Jardim do encanto Perdido", Porto, Livraria Simão Lopes, Pág. 87.

17 Armando Martins Janeira," O Jardim do encanto Perdido", Pág.185-186.

18 Armando Martins Janeira," O Jardim do encanto Perdido", Pág.151.

19 Armando Martins Janeira," O Jardim do encanto Perdido", Pág.103.

*Licenciada em Sociologia pelo I. S. C. T. E.; investigadora da obra e da vida de Venceslau de Morais. É actualmente investigadora no Programa de Artes e Ofícios Tradicionais (Programa Interministerial, Lisboa).

desde a p. 197
até a p.