Pensamento

VENCESLAU DE MORAIS UMA BUSCA DA SAUDADE TOTAL

Helmut Feldmann*

Venceslau ajoelhado sobre as esteiras de palha de arroz (tatami), ao lado do braseiro (hibachi), como um japonês. Em frente, a caixa de fumar (tabako-bon), onde se põe o tabaco, e o delgado cachimbo japonês (kiseru). É bem o retrato do "homem dos bosques" no seu "cubículo de exílio", em Tokushima.

Morais e o seu pedido de demissão dos cargos de cônsul de Portugal no Japão e de capitão da Marinha, em 10 de Junho de 1913.

Podemos observar na vida de Morais um processo de gradual afastamento de Portugal e do Ocidente em favor de um isolamento voluntário no seio de um universo exótico e adverso. Em 1891, quando se encontra desde há três anos em Macau, na qualidade de imediato do porto, recorre pela última vez ao direito a passar de três em três anos férias na pátria. Em 1898 consegue a sua transferência para Kobe, na qualidade de primeiro cônsul de Portugal no Japão, para nunca mais voltar a ver Macau. E, num telegrama datado de 10 de Junho de 1913, pede ao Presidente da República Portuguesa a dispensa imediata de todos os cargos oficiais, abdicando simultaneamente do seu direito àreforma. Eis o texto do telegrama: «Ilm.º e Exm.º Senhor Presidente da República Portuguesa: Wenceslau José de Sousa Morais, capitão de fragata da Armada exercendo as funções de cônsul de Portugal em Hiogo e Osaka, Japão, e actualmente procedendo à entrega do Consulado por lhe ter sido concedida licença pelo Ministério de Negócios Estrangeiros para regressar à Metrópole por motivo de doença, deseja, por causas muito poderosas de conveniência particular, desistir de tal licença e permanecer no Japão, onde conta empregar-se numa situação incompatível com qualquer posição oficial de funcionário português, incluindo a de reformado, e mesmo talvez incompatível com a sua nacionalidade de português; por todos estes motivos, vem muito respeitosamente pedir a V. Ex.º se digne imediatamente conceder-lhe a sua demissão de funcionário consular e de oficial da Armada Portuguesa. »1 A exoneração ocorre a 8 de Julho. Mas, já alguns dias antes, a 4 de Julho, Morais partira para Tokushima, cidadezinha de 60000 habitantes, na costa oriental da ilha de Shikoku, com o intuito de aí passar o resto da vida.

A escolha de Tokushima implicava uma vida de exílio, longe do contacto com a cultura e a civilização ocidentais; por outro lado excluía igualmente a possibilidade de integração na sociedade xenófobadesta pequena cidade de província. Pior ainda: Morais era alvo indefeso das piores humilhações. O episódio do orangotango de O Bon-Odori em Tokushima ilustra bem a sua situação extremamente penosa em Tokushima. A casa habitada por ele em Tokushima compreendia um quarto de oito metros quadrados e dependências de proporções ínfimas, no rés-do-chão, bem como um compartimento de catorze metros quadrados no andar superior: «Casinhas para bonecos [...], não para mim, que, de pé, bato quase no tecto com a cabeça e tenho de usar a cautela para não reduzir, de um gesto brusco, tudo isto a estilhaços». Na descrição deste «cubículo de exílio», Morais intercala avisita a um jardim zoológico ambulante, cuja atracção principal é um orangotango de Bornéu «na sua estreitíssima prisão, entre grades». A descrição do símio é um auto-retrato de Morais.

Estamos num dia frio de Fevereiro. O guarda acaba de pôr um recipiente de lata cheio de carvões em brasa diante da jaula. O orangotango mostra um ar extenuado, envelhecido, «a expressão de uma enormíssima canseira, de uma enormíssima desesperança, amenizadas por uma resignação quase cristã!... ». A apatia e estreiteza do cárcere, obrigam-no a passar o dia sentado ou deitado. Segura nas mãos um martelo que o guarda lhe deixou como brinquedo, e que pode ser compreendido como o equivalente à pena do escritor Morais. O orangotango observa o martelo durante algum tempo, acabando por abandoná-lo, contrariado. Quando resolve tirar e mas-tigar algumas palhas do saco onde está deitado, o guarda zanga-se e grita-lhe, ameaçando-o com uma vara de ferro que acabara de tirar do carvão em brasa. O pobre animal, que já várias vezes sentira na pele o ferro ardente, reage com «um gesto e um olhar terríveis, gestos e olhar de medo (...), gestos e olhar de ódio, de impotência, de alucinação». Mas, alguns momentos depois, recai na sua «compostura habitual, de mártir resignado», enquanto os espectadores riem, divertidos. — Moraes traduz a designação malaia de orangotango por «homem dos bosques». Para os habitantes de Tokushima, Morais era uma espécie de «homem dos bosques» devido ao seu aspecto: ombros largos, cabelos loiros e compridos caídos sobre os ombros, longa barba hirsuta, escondendo metade do rosto.

Perante o «ho-mem-macaco», a sensibilidade dos japoneses esmorece. «Eu sou, para Chiyo-Ko [irmã de Ko-Haru, sua segunda mulher japonsa], o macaco [...], com o qual, perdido o medo que se deve a todo o bicho exótico, a sua fantasia se permitia liberdades de conduta, que ela nunca teve, nem ousaria ter, com os seus iguais os japoneses» (O-Yoné e Ko-Haru, pág. 146 segs.).

Retrato de O-Yoné, a primeira mulher japonesa de Morais. Casou aos 25 anos, quando Morais tinha 46 anos de idade.

O que terá levado Morais a dar um passo tão grave como o foi o retiro para Tokushima? Esta per-gunta constitui um enigma já para os seus contemporâneos. Em Outubro de 1913, o Governo de Macau perguntou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Tóquio, se Morais ainda estaria são de espírito. Tóquio encarregou um comissário de polícia de passar um atestado de saúde mental a Morais. Após conversa pessoal com este, o comissário acabou por considerá-lo normal.2

Também para as autoridades japonesas, este português vivendo de livre vontade, e em condições extremamente difíceis, em Tokushima, representavaum enigma. Quando o Japão declarou a guerra à Alemanha, em 23 de Agosto de 1914, chegou mesmo a suspeitar-se que Morais fosse um espião. Foi, portanto, submetido a um interrogatório pela polícia militar e os seus movimentos controlados durante algum tempo.

Como Morais, nos seus escritos, mesmo na correspondência íntima, nunca expôs abertamente as razões do seu comportamento, a investigação biográfica portuguesa e japonesa esforçou-se por decifrar o enigma, chegando à conclusão unânime de que foi o amor por O-Yoné, sua primeira esposa japonesa, que o impeliu para a demissão dos seus cargos oficiais e o retiro para Tokushima.

O-Yoné Fukamotoera natural de Tokushima. Os seus pais tinham-na vendido a uma casa de gueishas em Kobe, para poderem fazer face à pobreza. Sabia cantar, dançar e tocar shamisen. Segundo o biógrafo japonês Matsumoto, Morais tê-la-ia conhecido em Setembro de 1898, num bairro de diversões de Kobe, de nível inferior, onde não existiam fronteiras bem demarcadas entre a arte gueisha e a prostituição. Em Abril de 1899 Morais libertou O-Yoné, pagando um resgate ao proprietárioda casa. Desposou-a em Novembro de 1900, segundo o rito xintoísta, quando ela tinha 25 anos. O-Yoné faleceu de um ataque de coração em Agosto de 1912. As suas cinzas foram transferidas para Tokushima tomando Morais as despesas do túmulo a seu cargo.

Grupo em que se vêem Venceslau de Morais e a japonesa Ko-Haru. No primeiro plano está a mãe, Saito Yuki, sentada, e as duas irmãs de pé.

A lenda romântica do grande amante que renuncia às honrarias e comodidades da vida burguesa para viver perto dos despojos mortais de sua esposa nasceu com o capítulo «Wenceslau de Morais» em Visões da China, da autoria de Jaime do Inso (1933), e foi desenvolvido por Ângelo Pereira e Oldemiro César que publicaram em 1937 o ensaio Os amores de Wenceslau de Morais, onde se lê: «O golpe profundo [da morte de O-Yoné] que acabava de despedaçar-lhe o coração, leva-o a abandonar Kobe para se instalar em Tokushima, onde repousam as cinzas da mulher amada. Abandona também o cargo consular; demite--se de oficial de marinha; vende à pressa e ao desbarato numerosíssimos livros da sua escolhida biblioteca, todos os seus haveres, à excepção de alguns mais queridos». Armando Martins Janeira aprofunda esta interpretação compreendendo a retirada para Tokushima como uma etapa significativa de um processo longo de assimilação da cultura japonesa: «Wenceslau vai para Tokushima para víver coma morta. [...] E frequente no Japão o viúvo ou viúva vender tudo para ir viver junto das cinzas do esposo. Wenceslau não fez mais do que seguir o velho hábito japonês. O retrato dela é posto no altar familiar, o butsudan. É para a alma dela a primeira chávena de chá da manhã e a primeira colher de arroz que se tira da panela. Nunca se abre um presente [...] sem que se vá pôr no butsudan, primeiro, a parte que pertence à alma querida, murmurando-lhe: 'Yoroshiku o-agari kudasai', digna-te comer com gosto. Morais, com os seus muitos anos no Japão e a sua sensibilidade tão receptiva a tudo o que é japonês, havia já assimilado esta poética crença. Só isto explica a sua partida para Tokushima, e a sua vida pobre, piedosa e serena, na pequena cidade provinciana, onde não passa um só dia que não vá visitar Yoné ao seu pequeno túmulo de Chionji» (O Jardim do Encanto Perdido, pág. 146).

Embora a leitura de O Bon-Odori em Tokushima baseada nesta suposta interdependência entre morte de O-Yoné — causa — e a demissão e o exílio voluntários — efeito — seja fascinante, parece--nos possível fazer outra leitura. Certamente, o túmulo de O-Yoné influiu na escolha do lugar do retiro, mas não faltam indícios na obra de Morais, nem dados biográficos que exijam outra explicação para o pedido de demissão e a subsequente retirada do mundo ocidental. Em nenhuma parte da sua obra literária e da correspondência Morais sugere, mesmo vagamente, que a morte de O-Yoné tenha sido de alguma importância para o pedido de demissão. E mais: em O Bon-Odori em Tokushima conta--nos que consultou durante muito tempo um duplo imaginário sobre a escolha do lugar de residência no Japão: «Cismamos no caso longamente, perpassaram-nos pelo espírito vários planos, vários poisos, discutimos prós e con-tras, até que um de nós bradou ao outro mais ou menos nestes termos: — Foge dos vivos; vai para Tokushima, para perto desse túmulo que te evoca um nomecaro, que te dá vulto a uma saudade». Se o desejo de passar o resto da vida perto do túmulo de O-Yoné tivesse sido o motivo da demissão, não faria sentido esta reflexão morosa acerca do futuro local de residência.

A investigação biográfica japonesa revela uma série de factos que, embora nem sempre verificáveis, põem em causa este mito do sacrifício por amor. Sempre que O-Yoné precisava de cuidados, Morais pedia a ajuda da irmã, Yuki Saito, que vivia em Tokushima. Esta vinha, geralmente, acompanhada da filha, Ko-Haru, de 19 anos de idade. Tudo indica que Morais, ainda antes do falecimento de O-Yoné, se sentiu muito atraído por esta jovem (Tsukuda, pág. 117). A família Saito era pobre e numerosa. O pai de Ko-Haru trabalhava como cozinheiro num barco que fazia a ligação entre as ilhas de Honshu e Shikoku. Segundo os biógrafos japoneses, a paixão de Morais por Ko-Haru não teria passado despercebida a Yuki que, por ocasião da morte de O-Yoné, teria chegado mesmo a pensar no casamento da filha com o cônsul de Portugal em Kobe.

Uma terceira mulher veio, porém, complicar a situação: Den-Nagahara, que parece ter desempenhado um papel importante na vida de Morais por alturado seu pedido de demissão. Após a morte de O-Yoné, Morais passou a viver com essa atractiva mulher de vinte e cinco anos, originária de Imaichi, perto de Matsué (Shima-ne-ken, Izumo). Nos meses em que viveram juntos, Yuki Saito esforçou-se em vão por levá-lo a visitar o túmulo de O-Yoné. Em Abril de 1913, Morais teria enviado Den-Nagahara a Matsué, com o encargo de procurar aí uma casa destinada à vida em comum (Hanano, Matsumoto).

Tokushima — túmulo de O-Yoné, primeira mulher de Morais.

Matsué apresentava um interesse especial, por ter sido temporariamente o local de residência do defundo mestre do exotismo nipónico, Lafcadio Heam (1850-1904), cuja vida e obra apresentam muitos aspectos comuns com a vida de Morais. Falando de Heam, Morais parece estar a relatar a sua própria vida: «Hearn fora, desde a sua tenra infância, uma vítima dos homens seus irmãos, da raça branca: e devemos também imaginar que a sua sentimentalidade delicada sofria da chateza do espí-rito da época, tal como se manifesta nas sociedades ocidentais. Chegado casualmente ao Japão, aqui se estabeleceu, neste solo que o encantou, casando-se com uma japonesa, naturalizando-se japonês, identificando-se quanto possível com a alma japonesa» (Cartas do Japão, vol. III). O último ano da vida de Hearn parece mesmo antecipar o exílio de Morais em Tokushima: «De débil constituição física, abalada ainda certamente pela dura existência da sua juventude, Koizumi [nome japonês de Hearn] achava-se há algum tempo doente, recolhido na sua vivenda japonesa de Tóquio, rodeada de um delicioso jardim; de um temperamento nervoso e excêntrico, farto do convívio dos homens, recusara-se absolutamente, nestes últimos tempos, a quaisquer relações com a numerosa colónia estrangeira da grande capital» (Cartas do Japão, vol. II, pág. 221).

Morais confessou dever muito da sua formação literária a Hearn: «Tenho-me referido por várias vezes (...) a Lafcadio Hearn, o mais genial talentoimpressionista, que haja escrito sobre o Japão em linguagem europeia. Mais do que simples referências em certos casos, pois nos seus livros tenho feito descobertas preciosas referentes à lenda japonesa, a algumas das quais já aqui fui dando publicidade, na minha descurada prosa. E devo acrescentar que o plagiato se me afigura desculpável, até mesmo aconselhado, dada a tarefa que me impus de ir apresentando aos leitores o que de mais gracioso e interessante ressalta do estudo deste país e deste povo e tendo em vista as considerações seguintes: raro conhecimento das obras de Hearn no nosso meio literário; excepcio-nal profusão, em tais obras, de trechos da lenda indígena, graças às circunstâncias especialíssimas em que se encontrou o autor; seu notável conhecimento da língua e dos livros clássicos nipónicos; e delicadíssimos dotes de investigador» (Cartas do Japão, vol. III). Se Morais tivesse escolhido Matsué como local de residência, ter-se-ia tornado aos olhos de todos o sucessor literário de Hearn.

A escolha entre Matsué/Den-Nagahara e Tokushima/Ko-Haru parece ter sido difícil. Segundo Matsumoto, as negociações efectuadas com a família Saito, em Tokushima, a 4 de Julho, permitiram-lhe tomar uma decisão e quando, poucos dias mais tarde, regressou a Kobe, vinha já com o firme intuito de dissolver o lar. Ao chegar, teria encontrado uma carta, na qual Den-Nagahara lhe comunicava que tudo estava preparado para a futura vida em Matsué; ela própria tencionava abrir uma tabacaria, a fim de melhorar a situação financeira do novo lar. Na sua resposta, Morais ter-lhe-ia pedido desculpa por ter mudado de opinião (Matsumoto). Tudo indica que não mais voltou a vê-la.

Com a proposta seguinte de leitura não pretendemos «explicar» o caso extremamente complexo da retirada de Morais a Tokushima, mas abrir um novo caminho de aproximação. Partimos da premissa de quetemos que distinguir entre a vida real, factualmente vivida, de Morais no Japão, e sua vida ideal, narrada nos textos literários. Da vida real sabemos bem pouco. Quem folheia as cartas íntimas endereçadas a parentes e amigos, fica surpreendido tanto pelo corpus reduzido — três ou quatro magros volumes de cartas e de cartões — da correspondência deste aventureiro escritor, como pelo seu conteúdo pouco elucidativo em relação à sua vida no Japão. Durante os anos das Cartas do Japão (1902--1913) vive com O-Yoné, mas não há nenhuma referência a ela na correspondência privada nem na obra literária deste período. O mais espantoso é que nem a sua querida irmã Francisca, com a qual se correspondia frequentemente, sabia da existência de O-Yoné. Por ocasião do falecimento dela limita-se a noticiar-lhe, num postal, a morte de uma «empregada doméstica», que o teria impressionado muito2. É esta a única alusão a O--Yoné que encontramos na correspondência do período de 14 anos de convivência.

Túmulo de Ko-Haru, segunda mulher de Morais (Tokushima).

Como Morais era o único português residente no Japão, foi-lhe fácil esconder aos leitores, amigos ou parentes tudo aquilo que ele não queria que chegasse ao conhecimento deles. Porque será que ele evitou siste-maticamente falar, na sua correspondência «íntima», e por isso até à sua morte, dos seus dois casamentos no Japão? Ou da sua vida amorosa de um modo geral?

Também na sua obra literária Morais prescindiu de falar do amor sexual na sua vida. O único passo alusivo a uma aventura amorosa encontra-se em «Saudades do Japão», de 1894 (Traços do Extremo Oriente, pág. 164s). Dai Nippon (1895) é, sim, um hino de louvor ao encanto da mulher japonesa, admirada como «obra de arte viva», mas Morais não alude a nenhuma paixão concreta sua. O que interessava a este «intimista» romântico e decaden-tista era dar expressão literária à sua vida ideal, isto é, à «ideia» directriz, à força motriz da sua vida. Nas partes autobiográficas das suas narrativas apresenta-se sempre como solteiro solitário vivendo no «exílio», à margem da sociedade japonesa. Obviamente, na hierarquia de valores de Morais e celibato ocupa um lugar de destaque. Como ele queria que os seus leitores o vissem levando uma vida frugal, monástica, orientando-se exclusivamente por valores morais e espirituais, evitou falar no que considerava as imperfeições e as «bai-xezas» da sua vida real. E fez tudo para que não houvesse contradição entre as cartas e o seu auto-retrato literário.

Tokushima: pormenores do monumento a Venceslau de Morais.

Parece que Morais queria impressionar os seus leitores não só com a extrema singularidade da sua vida, mas também com a sua elevação moral. Se narra pormenorizadamente o seu papel de orangotango na sociedade de Tokushima, não o faz tanto para sintetizar a situação do europeu numa cidade retrógrada e xenófoba do interior do Japão, mas pela função-chave que assume o papel de vítima e mártir na sua vida «ideal». Para a ética de Morais, profundamente impregnada de valores cristãos, é só a dor, profundamente sentida e heroicamente aceite, que enobrece o indivíduo, rodeando-o de uma auréola de divindade (v. O Yoné e Ko-Haru, pág. 42). A intensidade de sofrimento, tristeza e pânico patentes no olhar do orangotango, transformam-no em protagonista de uma epopeia heróica: «Que olhar!... Naquele olhar, que abismo de profundíssima tristeza!... Que epopeia inteira de angústias!... Só vendo-o, só vendo-o como eu o vi, é que se pode compreender tamanha dor!... ». E a afinidade de Morais com o orangotango não termina com a cena do ferro em brasa. Quanto mais observa o «prisioneiro», tanto mais familiar se lhe torna a sua fisionomia: «Ah, não havia dúvida, era ele!... Eu via--me em presença daquele tipo, já hoje, legendário, do bem conhecido Zé Povinho, que Rafael Bordalo, o grande artista, tantas vezes traçara com o seu lápis, há vinte ou trinta anos, nos papéis. Tive então a ilusão nítida de contemplar naquele cárcere um mísero homem do povo, um carpinteiro português, a quem por escárnio houvessem consentido que trouxesse consigo a ferramenta do ofício; condenado, sem culpa formada, a cativeiro perpétuo, até que a tísica... o indultasse!... ». O símio, tal como o carpinteiro Zé Povinho, é uma alegoria do povo português, explorado e sem direitos, ou seja, da classe trabalhadora. E o facto de o protagonista de O Bon-Odori em Toku-shima, isto é o Morais — «João Ninguém» (O-Yoné e Ko-Haru), se identificar com o símio, permite-nos concluir que passou a considerar o seu destino como síntese do destino do povo português.

De um ponto de vista biográfico, Morais radicou-se em Tokushima voluntariamente, e sem coacção exterior. A nível literário, contudo, a morte lenta na «prisão» da sua casinha de Tokushima, é consequência directa das condições de vida em Portugal, onde lhe faltara, tal como a muitos outros, «o pão do espírito; emigram pois, logicamente, como o lavrador pobre dos campos, a quem falta o pão doalmoço, emigra para longe, em busca de sustento» (O-Yoné e Ko-Haru). Na correspondência privada, Morais concretiza esta ideia, responsabilizando as forças detentoras do poder, bem como as relações de produção em Portugal, pelo seu «exílio»: «A nossa civilização achata-se cada vez mais na vulgaridade, no egoísmo, na sensaboria. Percebo que os argentários, os industriais e ainda os politiqueiros a amem, para interesse da bolsa própria. Mas quem não é nada disso e tem de viver pelo sentimento, há--de forçosamente aperfeiçoar-se às civilizações primitivas, ainda com um fundo de ingenuidade, de bondade e de pitorescos, que a nossa já não tem».

As três personagens da sua obra literária são ele mesmo, porém idealizado, mitificado; o Japão, igualmente mitificado — o título da sua obra-mestra dos anos macaenses é «Dai Nippon» — e, paradoxalmente, Portugal, aparentemente o grande ausente na obra de um autor que parece ter substituído a pátria real — Portugal — por uma pátria de eleição — Japão. O paradoxo dissolve-se se levarmos em consideração, que o que efectivamente Morais rejeita, é a pátria do ultimatum inglês de 1890 e das décadas seguintes, mas venera Portugal do tempo dos Descobrimentos e a elevada «ideia» subjacente de pátria. Encontrando em si a energia e a ousadia do Portugal heróico, dirige-se com a sua obra a possíveis correligionários portugueses que entendam o simbolismo da ausência temática de Portugal e que sejam capazes de captar a mensagem da saudade do exilado de Tokushima. Assim, adquire significado o facto de Morais, uma vez escolhida Tokushima como palco, ou altar, onde celebrava a saudade da grandeza passada de Portugal, nunca mais ter deixado esta cidadezi-nha durante os longos anos entre 1913 e 1929, nem para viagens pelo Japão. É igualmente significativo o facto de Morais, que eu saiba, nunca ter revelado algum desejo de se ver traduzido para o inglês ou para qualquer outro idioma, inclusive o japonês.

Pedro Vicente de Couto, o melhor amigo de Morais no Japão, recorda uma conversa esclare-cedora, reproduzida detalhadamente por Matsumoto. Couto era macaense e estava empregado no Banco de Hong Kong e Shangai, em Kobe. A afeição que Morais lhe tinha, ressalta nestas linhas escritas a Dias Branco em 7 de Abril de 1913: «O Couto é o melhor de todos os macaistas de cá, sério, honesto e trabalhador. V. tem feito por ele muito mais do que as outras pessoas a quem eu o tenho recomendado. Obrigadíssimo pela parte que me toca. » (Osoroshi, pág. 46). Couto esteve presente em todos os acontecimentos de relevo na vida de Morais — por exemplo, o casamento com O-Yoné e a morte desta. Além disso, visitava-o frequentemente em Tokushima. Pode, portanto, ser considerado uma fonte fidedigna de informação.

Na conversa que parece ter tido lugar pouco antes do final de 1912, Morais menciona que irá completar cinquenta e nove anos em 1913. Referindo-se ao calendário chinês, que vê a idade dos cinquenta e nove anos como a conclusão do primeiro ciclo da vida humana (em japonês: Kanreki), e os sessenta como o início do segundo ciclo, Morais confessa considerar a passagem do primeiro para o segundo ciclo (30 de Maio de 1913) um novo começo. Pretende, por isso, demitir-se de todas as funções oficiais, a fim de poder dedicar-se inteiramente a outra tarefa, enquanto a saúde lho permitir. Couto compreende que Morais está inabalavelmente resolvido a consagrar-se exclusivamente à criação literária, no que é confirmado pelo amigo: este deseja sacrificar a sua vivência social à plena realização como escritor.

A diferença entre o dia de nascimento (30 de Maio) e o dia do pedido de demissão (10 de Junho) explica-se pelo facto de o 10 de Junho ser o dia do falecimento de Camões. Escolhendo essa data para o telegrama de demissão, Morais indica a natureza dos altos objectivos que orientarão o segundo ciclo da sua vida: aspira a realizar obras literárias do mais alto significado nacional. O sexagésimo aniversário e o telegrama de demissão estão, assim, simbolicamente interrelacionados.

Para Morais, a fonte de inspiração poética da literatura nacional contemporânea era a saudade. É bem possível que tenha tido conhecimento de Teixeira de Pascoais e do movimento do Saudosismo. De todas as formas, com o «suicídio moral» praticado no seu sexagésimo aniversário, Morais acredita ter atingido uma plataforma superior, uma distância espacial e temporal em relação à sua própria vida. Estão, finalmente, reunidas as condições necessárias ao usufruto da saudade total. Após dois anos de isolamento em Tokushima, Morais pode constatar: «Eu estou vivendo há anos, no Mundo da Saudade, não noutro. É [...] um justo intermédio entre o mundo terrestre, ao qual já não pertenço, e o mundo da morte, do qual rapidamente me aproximo» (O Bon, pág. 283). Relaciona também a «situação de exílio», única no seu radicalismo, com a esperança de criar obras poéticas da saudade, as quais igualem ou mesmo ultrapassem em «magnitude» (cit. de Jaime do Inso) as obras-primas da literatura portuguesa. O «assunto grandioso» (Inso) de O Bon-Odori em Tokushima é a sua vida nesta cidade, após o seu «suicídio moral»: «Ousadia! Incrível ousadia, para um loiro, para um homem dos países da raça branca e, ainda por cima, portuguez!... » (O Bon, pág. 105).

Morais queria viver a saudade total. Podia ter escolhido qualquer cidadezinha japonesa de interior, mas escolheu Tokushima, porque o túmulo de O--Yoné servia como palco onde celebrava os rituais do culto da saudade. É só após a morte que O-Yoné e Ko-Haru podiam entrar na obra literária, não como esposas ou amantes, mas como materializações simbólicas da saudade que apontam para a totalidade da vida passada de Morais: «A minha mortificada mentalidade pode comparar-se a um polvo, provido de enormes tentáculos, que se estendem em todas as direcções, na ânsia de apreender, de abraçar tudo que lhe fale do passado distante (...) Tenho aprendido a amá-los, os mortos, sem distinção de raças, sem distinção de méritos; enternecido unicamente em face do sepulcro, (...) tenho saudades dos seres que amei, saudade dos seres que detestei, saudade do que vi, saudade do que ouvi, saudade de todos e de tudo!... » (O Bon-Odori em Tokushima, pág. 124/250s).

Afirma Eduardo Lourenço que uma das características da cultura portuguesa do século XIX é o desejo «de repor Portugal na sua grandeza ideal tão negada pelas circunstâncias concretas da sua medíocre realidade política, económica, social e cultural. Quer dizer, em termos de literatura, a obsessão de criar um movimento ou uma obra em que essa regeneração simbólica se cumprisse»3. A vida e a obra de Morais constituem uma destas tentativas «de recriar uma alma — à século XVI —». Em Março de 1878, por ocasião da comemoração do 400º aniversário da descoberta do caminho marítimo para a Índia, Morais lançou de Kobe um «apelo sagrado» ao povo português: «Acorda, Portugal; acorda que são horas!... Acorda Pai!... Ora, para que lhe havia de dar, — o dorminhoco! — para se pôr a dormir, não sei quantos mil dias a seguir!... Acorda, Pai, que o sol já brilha há muito, e é hoje dia de festa em família!... Acorda, põe-te a pé, toma coragem e ama o teu passado, os teus heróis, o teu Camões!... ». Desta forma, Morais integra-se, para mais uma vez servir-me de palavras de Eduardo Lourenço, na «longa e ainda não acabada linhagem de Ulisses intelectuais em busca de uma pátria que todos temos sem poder ajustar nela o sonho plausível que nos pede a realidade amarga que nos decepciona»3.

BIBLIOGRAFIA

Wenceslau de Morais, Dai Nippon — o Grande Japão, Lisboa, 3ª edição, 1972.

O Bon-odori em Tokushima, 2ª dição, Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1929.

Cartas do Japão, vol. II: Um ano de Guerra (1904-1905), Porto, Livraria Magalhães e Moniz Editora, 1905.

Cartas do Japão, vol. III: A vida japonesa (1905-1906), Livraria Chardron, de Lello & Irmão, Porto, 1907.

Osoroshi, Lisboa, V. Abrantes, 1933.

Armando Martins Janeira, O Jardim do Encanto Perdido. Aventura maravilhosa de Wenceslau de Morais no Japão, Porto, Manuel Barreira, s. d.

Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1978.

Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, colecção «Biblioteca Breve», vol. 72,1983.

Helmut Feldmann, Wenceslau de Morais (1854-1929) und Japan, Münster, Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, 1987 (Colecção «Portugiesische Forschungen der Görres-gesellschaft", segunda série, vol. 6).

Poster R. c

O naban gyoretsu, cortejo dos Bárbaros do Sul,

tema mais característico dos biombos nanban.

NOTAS

1 Citado por Armando Martins Janeira, O Jardim do Encanto Perdido.

2 Citado por Armando Martins Janeira, O Jardim do EncantoPerdido, pág.273.

3 O Labirinto da Saudade, pág. 93.

*Doutor em Filologia Românica. Professor da Universidade de Colónia.

desde a p. 215
até a p.