Antologia Documental

TRATADOS HISTÓRICOS, POLÍTICOS, ÉTICOS E RELIGIOSOS DA MONARQUIA DA CHINA*

Fr. Domingo Fernández Navarrete

O dominicand Domingo Fernández Navarrete (1618-1686)partiu de Espanha rumo às Filipinas, em 1646, atingindo aquele longínquo arquipélago extremo-oriental cerca de dois anos mais tarde. Depois de um largo período de intensa actividade missionária, largou de Manila em 1657, com destino à Europa. Mas imprevistos acidentes de percurso conduziram-no a Macáçar, nas Celebes, onde existia então uma próspera comunidade mercantil portuguesa, que herdara parte dos negócios de Malaca depois da conquista desta praça pelos holandeses em 1641. Navarrete embarcou então num navio português que se dirigia a Macau, com um importante contingente de jesuítas a bordo. Uma vez chegado à costa chinesa, o religioso espanhol decidiu juntar-se a uma pequena missão dominicana que existia então em Fuan, na província de Fuquiém, aí se mantendo até 1664, altura em que as autoridades imperiais desencadearam uma das cíclicas perseguições contra o cristianismo. Navarrete foi então integrado num grupo de dominicanos e de jesuítas que durante vários anos estiveram detidos em Cantão, conseguindo finalmente regressar a Macau em 1670. Daqui retomou viagem em embarcações portu-guesas, desta vez rumando à Índia, e acabaria eventualmente por chegar a Lisboa em Março de 1672.

Após uma visita a Roma, para dar conta ao Sumo Pontífice da situação missionária na China, Navarrete fixou--se em Madrid, dedicando-se à redacção de um largo conjunto de textos sobre a China e sobre as actividades missionárias naquele vasto império. Em 1676 publicava na capital espanhola os Tratados Historicos, Politicos, Ethicos y Religiosos de la Monarchia de China, volumoso compêndio baseado nas suas experiências asiáticas, e também em notas que redigira e em diversos materiais a que tivera acesso, incluindo nomeadamente traduções de documentos chineses.

Os Tratados de Navarrete vieram trazer à luz do dia a polémica surda que a Companhia de Jesus travava com outras ordens religiosas a respeito dos métodos de missionação utilizados na China, desencadeando a célebre Questão dos Ritos. O dominicano espanhol, baseando-se num amplo conhecimento do terreno, questionava veementemente a legitimidade das adaptações rituais, e mesmo doutrinais, feitas pelos jesuítas em serviço nas missões chinesas. Paralelamente, a obra tomou-se um popular compêndio de informações sobre a China, a Índia e as Celebes, regiões que o autor tivera oportunidade de visitar. As notícias da China constituíam o núcleo fundamental da obra, não só pelo seu enorme volume e extraordinário rigor, mas também pelo facto de Navarrete apresentar uma imagem muito positiva do império chinês, que em muitos aspectos era considerado superior às potências católicas da Europa de então. Curiosamente, a obra de Navarrete nunca foi traduzida para português, apesar de se encontrarem na obra do religioso espanhol valiosos informes sobre a presença portuguesa em Macau e no Extremo Oriente em geral.

Fonte utilizada: FERNÁNDEZ DE NAVARRETE, Domingo, Frei, Tratados Historicos, Politicos, Ethicos y Religiosos de la Monarchia de China, Madrid, Imprenta Real, 1676, "Tratado VI", pp. 362-368. O texto foi traduzido do castelhano. Introduzem-se entre parênteses rectos palavras que visam facilitar a leitura.

CAPITULO 17

DA CIDADE E SÍTIO DE MACAU,

DAS SUAS FORÇAS E OUTRAS COISAS

QUE EM SI TEM

[...]

Desde a antiguidade proibiram os chineses a en-trada e comércio de estrangeiros no seu reino, ape-sar de manterem desde há anos, levados pela cobi-ça, navegação para o Japão, Manila, Sião e outras partes, entre os estreitos de Singapura e de Gover-nador,1 no mar Malaio,2 como é sabido. Mas sem-pre houve excepções à sua antiga lei, [sendo o trato com estrangeiros] permitido apenas pelos mandarins marítimos, pelo interesse particular que daí lhes advinha. Por isso, quando os portugueses começa-ram a navegar por aqueles mares e a comerciar com os chineses, não tinham porto seguro, nem meio de o obter. Escalaram durante anos a ilha de Xan Choang,3 onde morreu São Francisco Xavier. Du-rante anos foram à província de Foquiem.4 Nou-tros tempos [demandaram] a cidade de Ningpo, na província de Chekiang, de onde foram por duas vezes expulsos, sendo na segunda maltratados.5 Estabeleceram-se finalmente onde hoje está Macau, mas como as coisas não correram a seu gosto, in-sistiram. E mandando os mandarins de Cantão avi-so ao imperador, este ordenou que [os portugueses] se estabelecessem naquele sítio em paz, e que pa-gassem tributo e direitos das mercadorias. Assim, conseguiram ali fixar-se e permanecer até ao meu tempo, por um espaço de 130 anos.6 Muitos [dos habitantes] de Macau dizem que aquele sítio lhes foi inicialmente doado por terem de lá expulso uns ladrões que faziam grandes danos aos chineses vi-zinhos, isto afirmando e garantindo, de onde dedu-zem ser deles aquele sítio e lugar.7 Os chineses não vêm ao caso, e muito menos os tártaros, que hoje são senhores.8 E se tal mercê foi feita com a ideia de serem tributários e de pagarem direitos das mer-cadorias, como sempre fizeram, também não vem ao caso; de qualquer forma, serão sempre como os chineses, que nenhum é senhor absoluto de um pal-mo de terra.

Aquele sítio [de Macau] é uma pequena lingueta de terra que sai daquela ilha,9 que, para cá do muro que ali têm os chineses, não terá ao todo mais de uma légua de circuito, incluindo nesta extensão al-tos, baixos, montes e vales, nada mais ali havendo senão penhas e areia. Aqui começaram os merca-dores a fazer casas. O primeiro templo e convento que se edificou foi o nosso, que foi consagrado a Nossa Senhora do Rosário, que foi apropriado pe-los portugueses.10 Foram depois [para lá] padres da Companhia [de Jesus], de Santo Agostinho e de São Francisco.11 Passados anos foi fundado o Con-vento de Santa Clara, por religiosas de Santa Clara que foram levadas de Manila. Este [convento] foi fundado sem licença de Sua Majestade, que, quan-do disso recebeu notícia, tomou-o a mal, e com muita razão, porque terra de infiéis, e tão diminuta, não é para freiras. Durante estes anos aquele con-vento foi para a cidade um grandíssimo embaraço. Antes de passar adiante, escrevo aqui o que o licen-ciado Cadenas, sacerdote grave da dita cidade, me referiu. Quando os tártaros tomaram a China, sen-tindo aquelas religiosas temor de que passassem a Macau e lhes pudesse suceder algum mal, fizeram uma petição à cidade, para que as enviassem para outra parte. Analisado e considerado o negócio, res-ponderam-lhes [então os cidadãos] que não tives-sem as madres pena, pois, se sucedesse alguma coi-sa, acudiriam então ao convento com dois barris de pólvora e as fariam voar a todas, assim as livrando de qualquer má intenção que tivessem os tártaros. Belo meio e um excelente remédio para consola-rem as aflitas [freiras].

Há na cidade cinco conventos, três paróquias, uma igreja, a Casa da Misericórdia, o Hospital de São Lázaro e o seminário da Companhia [de Jesus]. Há uma fortaleza grande e sete pequenas. O plano [da cidade] é muito mau, por se ter ido fazendo aos pedaços. Fez-se depois sé episcopal. O primeiro bispo foi da minha Ordem,12 e até ao meu tempo nenhum outro proprietário ali tinha sido consagra-do. Em outro lado se discutirá se o espiritual de toda a China pertence ou não àquele senhor bispo, como também [se discutirá] se lunquin13 e a Cochinchina estão sob a sua jurisdição. Hoje é cer-to que não, pois Sua Santidade dividiu a China em três bispados, aos quais retirou Iunquin, a Cochinchina, e a ilha Formosa. E embora o repre-sentante de Portugal em Roma tenha reclamado, de nada lhe valeu.

Com o comércio do Japão e de Manila cresceu tanto aquela cidade, que veio a ser muito opulenta; mas nunca chegou a competir com Manila,14 nem é possível fazer qualquer comparação entre as duas cidades, pois em tudo diferem muito uma da outra, tal como Madrid difere de Vallecas, e mais ainda, pois os de Manila vivem como senhores e os de Macau como cativos.15

Suponho ser verdade o que disse na minha pre-sença, e na de outros, Manuel Leal de Fonseca, da Ordem de Cristo, uma quinta-feira santa, pela noi-te, estando no nosso Convento de Macau. Que o governador de Manila tinha mais praças para pro-ver do que o vice-rei de Goa, mesmo quando [este último] governava tudo aquilo que os holandeses tomaram.16 Também consta que as terras e vassalos que Sua Majestade tem nas Filipinas excedem em três quintos as que tinha na Índia Oriental há ses-senta e tal anos atrás. Destes dois pontos não se pode duvidar. Acabado o comércio do Japão, co-meçou a decair Macau; e acabado o de Manila, caiu quase até ao chão.17 Assim mo diziam naquela ci-dade, e assim se via pelas misérias que [os seus habitantes] padeciam. Os conventos que anos antes sustentavam vinte e quatro religiosos, no meu tem-po, com miséria e trabalho sustentavam três. Aca-bados os ditos comércios [do Japão e de Manila], continuaram [os mercadores de Macau a traficar] com sândalo de Timor, areca18 de Sião, roçamalha,19 rota20 e outras coisas assim, que compravam os chineses, de quem tomavam sedas, tecidos e outras mercadorias, que vendiam em Sião e Macáçar21 aos espanhóis em terceira mão.

Sempre pagou Macau uma renda das casas e igre-jas aos chineses, assim como da ancoragem dos navios. Quando chegam navios ou patachos22 ao porto [de Macau], para lá vai da metrópole [de Can-tão] um mandarim, que os mede, cobrando pela medida o que bem lhe parece, de acordo com o cál-culo que faz das [respectivas] cargas. À saída dos navios volta a medi-los e a cobrar [os respectivos direitos]. Todos os anos estabelecem uma medida nova. Será que isto se compadece com [o facto de os portugueses argumentarem] ser senhores daque-la terra? Perderam as [terras] que tinham, querendo apropriar-se da que não é deles.23

Queixam-se muito, dizendo -- como o fez o em-baixador Manuel de Saldanha24 na minha cara --que el-rei nosso senhor investe todo o seu poder nas Índias Ocidentais, deixando enfraquecer as [Ín-dias] Orientais, por estas caberem a Portugal. Mas convenci-o com a minha resposta, dizendo-lhe que se o rei de Espanha o era também de ambas as Índi-as, e a sua maior grandeza era estender-se o seu senhorio desde oriente a poente, porque razão ha-veria de querer, ou permitir, que diminuíssem as suas possessões enquanto dono e senhor. Isso seria pretender diminuir a sua grandeza e senhorio, que tanto estimava.

Governando Dom Juan de Silva nas Filipinas, mandou Sua Majestade que em Malaca se juntas-sem as forças de Manila e de Goa, e que se embar-casse o próprio governador em pessoa, assim como o vice-rei, para que atacassem Jacarta e expulsas-sem os holandeses de toda a Índia.25 O governador [espanhol] chegou [a Malaca] com cinco podero-sos navios (já se sabe que um [navio] de Manila é suficiente para lutar com cinco e seis dos da Euro-pa), com a melhor gente das ilhas, mantimentos, munições e tudo o mais que era necessário a tal empresa. Chegou a Malaca, onde esperou pelo vice-rei durante dois anos. Até hoje não chegou ainda. O bom Dom Juan de Silva, triste e melancólico, diri-giu-se então ao Sião, ali lutando até não mais po-der, com navios daquela terra e japoneses. Depois, com a tristeza de ver perdida aquela ocasião [de enfrentar os holandeses], morreu, morrendo tam-bém muitos dos que o acompanhavam. Os sobrevi-ventes voltaram a Manila, tendo feito excessivos gastos. Aqueles que trataram deste assunto, dizem que se se tivessem executado as ordens de Sua Majestade, os holandeses teriam, sem sombra de dúvida, ficado completamente arruinados e fora da Índia.

Pelos anos de 1640, chegou a Macau um fidalgo de Goa, fulano de Meneses, o qual passava ao Ja-pão como embaixador. Desistiu porém da viagem, pelo mau sucesso que no ano anterior tinha tido outra embaixada.26 Falando este [embaixador] com o padre frei António de Santa Maria, franciscano, sobre o poder dos holandeses na Índia, disse-lhe na véspera de Santo Agostinho que o nosso rei27 tinha escrito para a Índia, afirmando que se [os portu-gueses] quisessem lhes enviaria uma grande arma-da, e com ela Dom Fradrique de Toledo, para que fosse vice-rei de Goa, Malaca e Manila, com o que se limparia o mar e poderiam navegá-lo todo com segurança, pelo oriente e pelo poente. "Não quise-mos, Padre", disse o Meneses, "quanto nos teria calhado bem, e por isso estamos assim neste pre-sente estado". O embaixador deu-me estas infor-mações, das quais eu não tinha conhecimento.

Mais tarde, no dia de São João, em que fui seu convidado, com o padre Gouveia28 e outros dois da Companhia, afirmou provocadoramente o pa-dre Gouveia que o nosso rei não tinha podido re-cuperar o Brasil, como o tinha feito o seu novo [monarca].29 Respondeu o embaixador: "Eu fui como soldado naquela grandiosa, embora malo-grada, armada que despachou E1-Rei Filipe Quar-to.30 Para este efeito, o general por Portugal foi o conde da Torre, fulano Mascarenhas,31 o qual teve grandes culpas no malogro. Levava esta armada para as coisas do mar o general de Castela e para as coisas de terra o conde da Torre, com treze mil homens escolhidos. O general de Espanha dava-lhe da sua gente três mil mosqueteiros. Ro-gou-lhe uma e muitas vezes que saísse a terra, que ele se encarregaria do mar; jamais se atre-veu." Concluiu o embaixador: "O conde teve a culpa de não se ter recuperado então o Brasil." Eu fiquei muito contente ao ouvir isto. De que se queixam então? Ouvi dizer várias vezes a respei-to de Malaca que se tinha perdido no tempo do nosso rei, no ano de 1639. O secretário do em-baixador, Bento Pereira de Faria, disse diante de todos os portugueses de Cantão que estavam en-ganados. "Não é verdade, Padres, porque o le-vantamento de Portugal deu-se em Dezembro de 1640 e Malaca perdeu-se no ano seguinte." Fi-quei alegre e consolado com a resposta.32

[...]

Falou-se também em Cantão, quando nos juntá-mos com uns fidalgos da comitiva do embaixa-dor, da perda de Cochim.33 Os padres portugueses da Companhia [de Jesus] lamentavam esta desgra-ça, afirmando que os naturais [da terra] teriam fa-vorecido os holandeses. Tomou a palavra um se-cular, que havia estado presente, e declarou: "Ai Padres, que nós, os portugueses, somos a gente mais bárbara do mundo, sem razão, sem governo e sem cabeça." Insistiu muito nisto e concluiu:"Venceram-nos e mataram-nos como a gente bai-xa e vil, tirando-nos aquela terra." Deitavam mui-tas culpas à Companhia [de Jesus], pois todas as ordens religiosas gastaram tudo o que tinham para o sustento dos soldados e habitantes [de Cochim], enquanto a Companhia nem um grão de arroz dera. Entraram os holandeses e saquearam tudo o que na cidade havia.

Falou-se também do miserável estado em que durante estes anos tem estado Macau. [...] Disse ao padre Gouveia o secretário do embaixador: "Padre, a verdade é que os culpados de Macau estar perdi-da são o irmão Reis e o seu amigo chinês Li Pe Ming." Não tive resposta para lhe dar. Estas coisas são referidas para evidenciar que se queixam injus-tamente de terem perdido a Índia por causa do nos-so rei.34

A miséria, desdita e infortúnio com que os lusita-nos vivem, e têm vivido, naquelas terras durante estes anos bastavam, se não estivessem tão cegos de paixão, para abrir-lhes os olhos e fazer-lhes ver que apenas por suas culpas, e não pelas alheias, ti-nham suportado tantos trabalhos. Em Macáçar vi-veram durante anos com notável submissão aos mouros da terra, não tendo o estado eclesiástico nem o secular mão em coisa alguma;35isso mesmo me dizia o governador do bispado de Malaca que lá dava assistência e que se chamava Paulo da Cos-ta.36 Uma quinta-feira santa, estando eu na igreja [em Macáçar], entrou uma quadrilha de mouros, que se dirigiu ao altar, para revistar o que estava na cus-tódia, sem que pessoa alguma o tivesse impedido. Para procurar qualquer delinquente, o Sumbanco37 [de Macáçar] enviava quatro e cinco mil mouros, que revistavam todos os quartos que existiam, sem perdoar coisa alguma. À noite sempre velavam [os portugueses], para evitarem que os mouros lhes roubassem tudo o que tinham. Disseram-me que mais de quatro mil cristãos se tinham feito mouros naquela terra. Deitados de lá para fora pelo holan-dês,38 uns passaram ao Camboja, submetendo-se a outro tal rei; outros ao Sião, onde vivem mal afa-mados e menosprezados pelos naturais e pelos chi-neses que lá existem. Alguns quiseram, e querem, sair daquela terra, mas o rei não lhes dá licença para tal, pois diz que são seus cativos. E de facto houve alguns portugueses que, para mercadejarem, pedi-ram prata emprestada ao rei, empenhando por ela o próprio corpo; o rei emprestou-a com facilidade, e tem assente que quantos assim recebem prata sua são seus escravos, sem que lhes reste parte alguma de liberdade para abandonarem aquele estado.

Da Cochinchina e Iunquin mandaram embora aqueles que viviam naqueles reinos. No ano de 1667 passou-se o seguinte na Cochinchina. Como as mulheres lá são demasiado livres e descompostas, chegando um navio de fora, logo vão a ele para desafiar [os homens]; e mesmo quando se casam com os seus, têm por assente que à chegada de na-vios [estrangeiros] ficam libertas e com faculdade para fazerem o que quiserem. E assim o ouvi con-tar, e mo afirmou o padre Macret, que foi lá missi-onário. Chegou pois àquele reino um barco de Ma-cau e, durante o tempo que esteve lá, deve ter esta-do tão clara a comunicação entre os portugueses e aquelas mulherzinhas infiéis, que sucedeu que ao partir o barco queixaram-se as rameiras ao rei de que aqueles homens não lhes pagavam aquilo que pelos seus corpos lhes deviam. Mandou o rei que se apresasse o barco e que não saísse até que pagas-se aquela dívida. Bom exemplo de cristãos e bom meio para ajudar à conversão daqueles gentios! Noutra ocasião, sucedeu, que andaram tão desmandados naquele reino, que um dos que assis-tiam ao rei lhe disse: "Senhor, não podemos dar conta desta gente: os holandeses contentam-se com uma mulher, mas os de Macau nem com muitas."[...]

No tempo em que governava os chineses,39 con-fessavam-se os de Macau seus vassalos; agora que os tártaros são senhores, nomeiam-se vassalos dos tártaros. Quando a cidade tem algum negócio [a tra-tar], vai em forma e corpo de cidade, com varas na mão, ao mandarim, que reside a uma curta légua dela, falando-lhe por memorial e de joelhos. No despacho faz escrever o mandarim: "Esta gente bárbara e brutal pede isto; conceda-se ou negue-se." E voltam muito graves à sua cidade, e nestas demandas têm andado fidalgos, e com hábitos de Cristo ao peito, e vive lá hoje um, que bem conhe-ço, que foi levado a Cantão com duas cadeias ao pescoço; meteram-no na prisão, da qual se viu livre com seis mil ducados de prata. Se o seu rei soubes-se estas coisas, dificilmente as permitiria.

Desde que os tártaros retiraram a sua gente para longe das costas marítimas, para se livrarem dos ataques que fazia o chim do cabelo, como se escre-veu no primeiro Tratado, 40 começaram a ser mais rigorosos com Macau. A um quarto de légua de dis-tância daquela cidade, que é a reduzida largura da-quela lingueta de terra, fizeram os chineses há mui-tos anos um muro vai de mar a mar, abrindo no meio dele uma porta com uma torre por cima, na qual há sempre guarnição de soldados, para que a gente de Macau não passe para lá, nem os chineses para Macau.41 Em tempos, houve liberdade para os chineses [virem a Macau], mas nunca para os por-tugueses entrarem pela terra dentro. Durante anos a porta foi fechada. Ao princípio, abriam-na de cin-co em cinco dias, comprando então os portugueses o que necessitavam para comer. Depois, apertou-se mais, abrindo-se apenas duas vezes por mês. Neste tempo, os ricos, que eram muito poucos, podiam comprar tudo o que necessitavam para os quinze dias seguintes; mas os pobres pereciam, muitos morrendo de miséria e de fome. Voltou depois a ordem para que se abrisse [a porta] de cinco em cinco dias, como dantes. Vendem-lhes os chineses o sustento como quer.42

Sempre viveram os chineses em Macau, dedican-do-se aos ofícios mecânicos e vendendo mercado-rias aos [habitantes] daquela cidade. Nisto lhes têm feito grandes burlas, ficando-lhes com tudo. Por várias vezes têm [as autoridades chinesas] obriga-do os chineses a saírem de Macau, o que tem sido motivo de grande ruína para a cidade. Porque mui-tos habitantes, e alguns conventos, não têm mais do que algumas casinhas que ocupavam os chineses; indo-se estes embora, perdem as respectivas rendas.

[...]

Os tumultos, desordens, pleitos e desatinos, que em Macau tem havido, são tantos que seria neces-sário gastar muito tempo e papel apenas para os resumir. Entre os memoriais que os nossos inimi-gos [chineses] deram ao imperador contra o padre Adam [Schall], dizia um que o dito padre tinha em Macau trinta mil homens escondidos para se apo-derar da China.43 Isto foi grande desatino, não res-ta dúvida. Acrescentava [este memorial] que em anos anteriores tinham sido levantadas muralhas naquela cidade, que haviam sido demolidas por or-dem do imperador. Nisto tinha razão. Noutro [memorial] que foi apresentado quando estávamos na corte, acusava-nos de terem ido os europeus ao Japão para tentaram sublevar aquele reino, facto que motivara o castigo de muitos dos nossos e o dester-ro dos restantes, e que também nos tínhamos le-vantado com as Filipinas. Mas nunca se falou de qualquer rei da Europa, nem se fez distinção algu-ma de religião, nem de religiosos. Sempre usaram [os chineses] do nome comum de Europa e de eu-ropeus.

Os Tribunais dos Ritos e da Guerra submeteram um memorial, dizendo que seria conveniente vol-tarem os de Macau à sua terra. Respondeu o gover-no, em nome do imperador, que pois tantos anos tinham vivido naquele lugar, que não havia motivo para os expulsar, que os metessem na metrópole [de Cantão], atendendo a que os próprios súbditos [chineses] se tinham retirado do mar para dentro da terra. Aqui começaram grandes histórias e confu-sões. Os mandarins lucram muito com os de Ma-cau, e não gostariam que estes mudassem de sítio. Na corte insistiram no dito, mandando que lhes pro-curassem lugar para viver. Foi indicado um sítio junto ao rio de Cantão, que não podia ser pior. No-tificou-se a cidade de Macau, onde logo se for-maram dois partidos. Os mestiços e filhos da terra queriam ir para o interior; os portugueses não. O governador supremo [de Cantão] cercou-os por mar, mandando queimar-lhes os navios: dez ficaram em brasas perante os seus olhos, sendo-lhes confiscadas as fazendas que no ano anterior tinham sido trazidas por sete destes navios.

Tanto os que estavam em Cantão como os de Ma-cau faziam grandes protestos, piorando as coisas a cada hora e a cada instante. Prometeu a cidade ao governador supremo vinte mil ducados, caso lhes fosse permitido ficarem na sua cidade como antes. A cobiça moveu-o a tentar alcançar este objectivo com todo o seu esforço e indústria. Obteve autorização para que não mudassem de sítio, mantendo-se, po-rém, a interdição de navegarem. Pediu o governador a prata prometida; responderam [os de Macau] que lha dariam se lhes alcançasse autorização para nave-garem. O governador ficou com isto tão furioso como um tigre, procurando prejudicar ao máximo [os por-tugueses]; fechou-lhes a porta do muro, permitindo que se abrisse apenas duas vezes por mês. Quis Deus, ou permitiu-o, que aquele governador, por questões que tinha com o imperador, se enforcasse a nove de Janeiro de 1667, com o que em Macau se renovaram as esperanças de melhoria da situação. Neste tempo andava embaraçado o negócio do embaixador [Ma-nuel de Saldanha], que estava aflito, sobretudo pelo facto de apenas ter trazido 2800 pesos, com os quais tinha de sustentar mais de noventa pessoas.44 Macau podia valer-lhe pouco, pois recusara sustentar a em-baixada. Uns e outros queixavam-se da Companhia [de Jesus], sob cujo conselho e arbítrio se tinha orga-nizado aquela embaixada. É verdade que, ouvindo estas queixas dos que estavam em Cantão na minha presença, lhes respondeu o padre Giovanni Domenico Gaiati,45 piemontês: "Senhores, nem toda a Compa-nhia interveio nesta embaixada, mas apenas alguns sujeitos. Por isso, não hão-de Vossas Mercês de pôr as culpas na Companhia." O secretário [Bento] Pe-reira, que era muito vivo, retorquiu: "Nós não culpa-mos a Companhia que está em França, em Roma ou em Madrid, mas sim a que está na China. Vossas Paternidades solicitaram que se fizesse esta embai-xada, e que fosse à custa de Macau, a qual nos tem arruinados. E assim a queixa aqui não se atribui aos padres da Europa." Uma das coisas que mais custa-va aos portugueses era verem e ouvirem a forma como [os chineses] tratavam o seu embaixador. Cha-mavam-lhe "mandarim que ia entregar páreas e pres-tar vassalagem por parte do rei de Portugal". Quan-do subiu à corte, levava uma bandeira no seu barco com duas letras grandes que diziam, segundo o nos-so modo de falar: "Entra este a prestar vassalagem." Todos os embaixadores que forem à China terão de passar por isto, pois caso contrário não os admitirão.

Ruínas de São Paulo por volta de 1874, in As Ruínas de São Paulo: Um Monumento para o Futuro, coordenação de Fernando António Baptista Pereira, Macau, Lisboa, Instituto Cultural, Missão de Macau, 1994, p. 48.

NOTAS

* l.aedição: Madrid, 1676.

1 Estreito não identificado.

2 A expressão "mar Malaio" refere-se aqui à parte mais meri-dional do Mar do Sul da China.

3 Sanchoão, ilha regularmente demandada pelos portugueses entre cerca de 1548 e 1554.

4 O Chincheu, como os portugueses chamavam ao litoral do Fuquiém, foi por eles frequentado entre cerca de 1530 e 1549.

5 Os portugueses foram expulsos de Liampó em 1548-1549, por ocasião de uma vasta operação da marinha chinesa que visava acabar com a pirataria naquelas paragens.

6 Navarrete visitou Macau em 1658 e em 1670.

7 Cf. supra, pp. 66 - 74.

8 A dinastia Qing, de origem manchu, subiu ao poder em 1644. As regiões meridionais da China, contudo, apenas seriam pacificadas alguns anos mais tarde.

9 Macau situa-se de facto numa península, muito embora os textos da época façam frequentemente referência à "ilha de Macau".

10 Navarrete era dominicano. Três dominicanos espanhóis che-garam a Macau em 1587, aí construindo um pequeno con-vento. Em 1590, contudo, foram obrigados a abandonar a cidade e a entregar a casa aos dominicanos portugueses.

11 Os padres jesuítas encontravam-se em Macau quase desde a fundação daquele estabelecimento.

12 O primeiro bispo que exerceu funções em Macau foi D. Melchior Carneiro, jesuíta, entre 1568 e 1582, seguindo-se-lhe D. Leonardo de Sá, que era frade de Cister e que faleceu em 1597, e Fr. João da Piedade, dominicano, que resignou em 1623. Navarrete referir-se-ia certamente a este último.

13 Navarrete refere-se decerto ao reino de Tonquim, situado em territórios do actual Vietname.

14 Nem todos os mercadores de Macau subscreveriam este juízo do religioso espanhol.

15 Alusão à dependência de Macau em relação às autoridades de Cantão, que em tudo contrastava com a independência de Manila face às grandes potências da Ásia oriental.

16 Esta apreciação sobre a extensão dos domínios espanhóis no Oriente não era totalmente rigorosa, uma vez que o Estado da Índia se estendia ainda desde a costa oriental de África até Macau.

17 O comércio de Macau com o Japão foi definitivamente en-cerrado em 1639. No ano seguinte dava-se em Portugal a Restauração, que a breve trecho iria fazer diminuir o movi-mento mercantil entre Macau e Manila.

18 Areca: noz da "Areca catechu", que era utilizada na compo-sição do bétele, um masticatório muito apreciado no Oriente, com propriedades estimulantes e adstringentes.

19 Roçamalha: estoraque líquido, espécie de unguento medici-nal obtido a partir do aquecimento e da compressão da casca da Liquidambar orientalis, árvore vulgar em determinadas regiões da Ásia.

20 Rota: planta da família das pálmeas, com a qual se fabrica-vam cabos, esteiras, velas e inúmeros outros artefactos.

21 Macáçar: importante porto da costa meridional das Celebes, onde até meados da segunda metade do século xvII prospe-rou uma importante comunidade portuguesa.

22 Patacho: navio de dois ou três mastros, com armação seme-lhante à da nau.

23 As declarações de Navarrete devem ser entendidas como uma crítica às exageradas alegações que ouvira dos macaenses sobre a soberania portuguesa de Macau.

24 Manuel de Saldanha comandou uma das embaixadas portu-guesas que visitaram Pequim (1667-1670), tentando consoli-dar a nossa presença em Macau.

25 D. Juan de Silva governou as Filipinas entre 1609 e 1616. A expedição luso-espanhola contra os holandeses, que haviam estabelecido a sua base oriental em Jacarta, na ilha de Java, foi organizada em 1615, numa altura em que os reinos ibéri-cos eram governados por Filipe II de Portugal e III de Espanha. O vice-rei português do Estado da Índia era então D. Jerónimo de Azevedo.

26 Os portugueses foram definitivamente proibidos de comer-ciar no Japão em 1639. No ano seguinte, contudo, a cidade de Macau decidiu enviar ao arquipélago nipónico uma em-baixada, para tentar restabelecer o lucrativo tráfico. Tanto os embaixadores como parte do respectivo séquito foram suma-riamente executados em Nagasáqui pelas autoridades japo-nesas.

27 Em 1640, o monarca ibérico era Filipe III de Portugal e IV de Espanha.

28 Trata-se do padre António de Gouveia (1592-1677), jesuíta da missão da China.

29 Referência a D. João IV, durante cujo reinado os portugue-ses voltaram a hegemonizar ambas as margens do Atlântico Sul, em detrimento dos holandeses, que foram obrigados a recuar no Brasil e em Angola.

30 Referência à armada de socorro enviada pelo governo por-tuguês ao Brasil em 1639, sob o comando do conde da Torre, que foi derrotada pelos holandeses.

31 D. Fernando de Mascarenhas.

32 Malaca foi conquistada pelos holandeses em 1641. É evi-dente o ambiente de antagonismo luso-espanhol que então se vivia em Malaca.

33 A cidade de Cochim foi conquistada pelos holandeses em 1664.

34 Durante a União Ibérica (1580-1640), holandeses e ingle-ses, então em guerra com Espanha, desenvolveram intensas actividades contra os estabelecimentos portugueses orientais e contra a navegação portuguesa nos mares asiáticos.

35 Depois da conquista de Malaca pelos holandeses em 1641, muitos mercadores portugueses, e alguns religiosos, estabe-leceram-se em Macáçar, onde mantinham amistosas relações com os poderes muçulmanos locais. As divergências de or-dem religiosa eram colocadas em segundo plano sempre que tal convinha ao desenvolvimento dos negócios.

36 O padre Paulo da Costa foi governador episcopal de Malaca entre 1641 e 1660, período durante o qual residiu em Macáçar. Nesta última data, partiria para Macau, seguindo depois para o Camboja e para a Índia. Navarrete passou por Macáçar em 1657-1658, onde terá encontrado o referido padre.

37 Referência ao "Karaeng Sumanna", um dos príncipes de Macáçar.

38 Os holandeses conquistaram Macáçar em 1660.

39 Isto é, "durante a dinastia Ming".

40 Navarrete refere-se ao édito imperial de 1662, que obrigava as populações ribeirinhas de todo o sul da China a abandona-rem casas e bens, para se refugiarem no interior, como forma de resistir aos ataques depredadores dos piratas chineses.

41 Referência às Portas do Cerco.

42 As autoridades chinesas pretendiam obrigar os portugueses a cumprirem o édito imperial que impunha a desertificação do litoral. Mas acabaram por permitir, com grandes reservas, a permanência dos portugueses em Macau.

43 O alemão Johann Adam Schall (1592-1666) foi um dos mais eminentes jesuítas da missão chinesa, tornando-se a determi-nada altura íntimo dos imperadores chineses e exercendo o prestigioso cargo de presidente do Tribunal da Astronomia em Pequim.

44 A embaixada de Manuel de Saldanha, como frequentemente acontecia com as missões estrangeiras, foi obrigada a perma-necer longos meses em Cantão.

45 Jesuíta italiano, nascido em 1593, sobre o qual pouco se consegue apurar.

desde a p. 197
até a p.