Antologia Documental

CARTA DE CANTÃO*

Cristóvão Vieira

Csristóvão Vieira era um dos membros da comitiva de Tomé Pires, primeiro embaixador português enviado à China. Nada se sabe sobre a sua vida antes de ter desembarcado em Cantão em 1517, mas é provável que tivesse feito carreira no funcionalismo régio dos estabelecimentos portugue-ses orientais, já que vinha empossado em funções de secretariado. A célebre missão diplomática, despachada por El-Rei D. Manuel I, pretendia assentar em bases firmes o relacionamento luso-sínico, que havia sido inaugurado poucos anos antes. A embaixada portuguesa, contudo, não alcançou os seus propósitos, por um conjunto de circunstâncias adversas, e Tomé Pires e os seus companheiros, após uma rápida visita a Pequim em finais de 1520 ou inícios do ano seguinte, foram reconduzidos a Cantão debaixo de prisão, num clima de crescente hostilidade.

A partir de 1521, Cristóvão Vieira conheceu os mais escuros meandros do sistema prisional chinês, pois durante muitos anos seria transferido de prisão em prisão, sendo submetido a regulares torturas e humilhações, e assistindo impotente à morte dos seus companheiros de cárcere. Em 1533, quando ele era já um dos poucos sobreviventes da numerosa comitiva de Tomé Pires, chegaram às prisões cantonenses rumores sobre o regresso de navios portugueses ao litoral da província de Guangdong. A notícia confirmar-se-ia, pois chegou mesmo a haver troca de correspondência entre os infortunados prisioneiros e o capitão de um navio mercante que nesse ano visitou as ilhas do estuário do rio das Pérolas (cf. infra, pp.36 - 39).

O antigo secretário da embaixada, assim como um seu companheiro de cárcere, de alguma forma conseguiram receber na prisão chinesa missivas dos seus compatriotas, às quais responderam em longas e sentidas cartas, que ainda hoje se conservam. As Cartas dos Cativos de Cantão, escritas entre 1534 e 1536, apesar de resultarem de uma limitada experiência da realidade chinesa, registavam interessantes e inéditas informações sobre o Império do Meio, que até então permanecera praticamente imune à curiosidade dos mercadores e aventureiros portugueses que circulavam pelo Mar do Sul da China. A missiva de Cristóvão Vieira, redigida em 1534, era especialmente valiosa, já que fora escrita por um homem que tinha visitado a capital imperial e que vivia há longos anos em território chinês. Às notícias registadas por Tomé Pires e por Duarte Barbosa, vinham agora juntar-se as impressões de um português com conhecimento rudimentar do terreno. A Carta de Cristóvão Vieira terá chegado a Portugal por volta de 1538-1539, pois João de Barros pôde aproveitá-la na composição das suas Décadas da Ásia, que então redigia laboriosamente. Graças aos esforços de Vieira, a imagem da China começava a ganhar contornos mais precisos e mais rigorosos, depois de um período de quase total desconhecimento. Ao mesmo tempo, começavam também a conhecer-se alguns dos mais sórdidos meandros da missão de Tomé Pires. O extracto aqui incluído apresenta pela primeira vez a organização administrativa da China e faz uma apologia das riquezas de Cantão, com claros intuitos conquistadores.

Fonte utilizada: Cartas dos Cativos de Cantão: Cristóvão Vieira e Vasco Calvo (1524?), edição de Rui Manuel Loureiro, Macau, Instituto Cultural, 1992, pp. 40-43. Transcrição parcial. O texto foi mo-dernizado, aparecendo entre parênteses rectos palavras ou expressões acrescentadas para esclarecer o sentido do texto original. Foram acrescentados subtítulos.

[CARTA DE CANTÃO]

A terra da China é dividida em quinze governanças. As que estão pegadas ao mar são: Quantom, Foquiem, Chequeam, Nanquim, Xantão, Pequim; estas, posto que toquem no mar, também se estendem pela terra firme e redonda. Quanci, Honão, Cuicheu e Cheuem; Cheanci [e] Sanci entestam com Pequim; estas [são as] gover-nanças que estão no meio: Queanci, Vinão [e] Honão.1

Destas quinze, Nanquim [e] Pequim são as cabeças de toda a terra. Sobre todas, Pequim é a principal, onde o rei por ordenança está de assento. Nanquim está em 28 graus ou 29; Pequim em 38 ou 39. [De] Cantão [a] Foquiem corre a costa nordeste-sudoeste, pouco mais ou menos. De Foquiem até Pequim corre a costa direi-ta, norte-sul, vira a costa, que dizem que é muito limpa e de muitas cidades e lugares perto do mar, por rios. Todas estas quinze governanças são debaixo de um rei. O melhor desta terra está por rios, que todos descem ao mar. Não navega ninguém no mar do norte-sul; é defeso pelo rei, por se não devassar.

Aterra por onde fomos tudo são rios.2 Têm barcas e navios lados por baixo, sem conto de muitos; eu me afirmo que veria mais de 30.000, entre grandes e pe-quenos; demandam pouca água. Certo, são rios para galés, aptos para toda [a] fustalha de remo, de guerra. Pegado ao mar não tem a terra nenhuma madeira, nem a 30 léguas do mar, digo, na costa de norte-sul; é toda a terra baixa, todo [o] carreto de mantimentos é nos rios; a madeira desce da terra firme em jangadas, [d]e cerca [de] Pequim, mais de 100 léguas à sirga. Porque a governança em que o rei está não tem madeira, nem pedra, nem tijolo, tudo corre de carreto de Nanquim, em barcas grandes; se lhe Nanquim não acorresse com mantimentos seus ou doutras governanças, não pode-ria suster[-se] Pequim, porque é gente sem conto e a terra não tem arroz, por ser fria e de poucos mantimen-tos. O rei está nesta governança que está no extremo da sua terra porque tem guerra com gentes chamadas tazas;3 e se o rei lá não estivesse, entrariam a terra, porque o mesmo Pequim foi destas tazas, e outras go-vernanças [também].

[N]esta terra da enseada de Cauchim,4 obra de quin-ze léguas de Ainão, dentro de quinze ou vinte léguas, começa uma serra; chama-se a serra Miulem ou Moulem, 5 e corre em [direcção a] leste; vai acabar em Foquiem [e] extrema Foquiem de Chequeam.

Estas serras são altíssimas, sem arvoredo; são escalvadas e muito fragosas, de maneira que estas ser-ras divide[m] três governanças para o mar: Quanci, [que] pega à terra de Cauchi, e Cantão e depois Foquiem; estas três governanças ficam sobre si. Das outras, Can-tão [e] Foquiem pegam ao mar, chegam até à serra. Quanci jaz entre Cantão e a serra, até Cauchim; não é pegada ao mar de Cauchim. Toda esta corda de serra que divide estas três governanças das doze não tem mais de dois caminhos, muito íngremes e trabalhosos. Um está desta cidade [de Cantão] ao norte; por este se serve a governança de Quanci e Cantão, e parte de Foquiem. Outro está lá sobre Foquiem, com caminhos cortados de pedreira muita partida, como quem vai a Santa Maria da Pena, e da outra banda houvera tal des-cida.6 Destas serrarias altíssimas, assim íngremes, se fazem regatos, que depois cá em baixo se fazem rios, que da serra vêm descendo para o mar; e quem vem de Cantão, para lá do meio do caminho, sempre vai à sirga com ganchos, às vezes por palmo de água. Outro tanto é da serra para outras governanças.

Esta serra da banda de Cantão tem uma cidade e da outra banda outra; a serra jaz no meio. Haverá de uma a outra até seis, sete léguas. Quanto diz [respeito] à serra, é terra íngreme e muito fragosa. É grande passa-gem, porque toda a terra das doze governanças vem passar por aqui, os que hão-de vir a Quanci e a Cantão. Em um dia se passa este caminho, em mulatos e asnos. Dos regatos que destas serras correm, assim de um cabo como de outro, ao pé destas serras, de ambas as bandas se ajunta a água; começa a fazer rios. A lugares [tem] dois palmos de água, e as barcas pelo calho vão roçan-do, isto em muitos lugares, obra de oito até dez léguas da serra para baixo; e a lugares é fundo. Desta serra para Cantão toda a mercadoria que vem e vai é por este rio, todo o mandarim que vem e vai tudo é por este rio. Por terra, há caminho em recados de pressa, e têm al-guns rios de passar que atravessam. Porém, por ele[s] andam pouco, porque têm ladrões. Por todo o caminho é por rios, como digo, os caminhos da terra não são seguros. Toda [a] passagem e caminhos na terra da China é em rios, porque toda a China é cortada dos rios, que não se podem andar duas léguas por terra sem atravessar vinte rios. Isto é por toda a terra, e não têm mais que uma governança que não tenha rios.

Toda a fustalha de Cantão, em que a gente passa a mercadoria para a serra e para outras partes destas duas governanças, a saber, Cantão e Quanci, tudo se faz na cidade de Cantão contra o mar, em lugares cercados de rios de água doce e de monte, porque de Cantão até à serra não há uma só árvore de que se possa fazer uma só barca. Em Quanci, que é longe daqui, fazem algu-mas barcas de mercadoria grandes, porém não muitas. Todo o feito é nestas faldas de Cantão e por derredor de Tancão.7 Se estas barcas de Cantão forem destruídas, não pode das outras governanças vir socorro, porque não têm caminhos por terra. Assim que quem for se-nhor do termo de Cantão, despejados os rios, tudo [lhe] jaz na mão, porque esta governança de Cantão, tudo o melhor é na falda do mar, e doze, quinze, vinte léguas pela terra dentro. Tudo isto é esquartejado de rios, por onde pode andar toda [a] coisa de remo. Esta é a casa e terra mais apta que todas as do mundo para ser subme-tida, e todo [o] feito é neste termo de Cantão. Por certo que é mor honra que a governança da Índia. Ao diante se saberá que é mais do que se pode escrever. Se tiver El-Rei nosso senhor a certa verdade e informação do que é, não passará tanto tempo [antes que decida conquistá-la].8

Esta governança de Cantão é das melhores da China, de que o rei recebe muitas rendas, porque é de arroz e mantimentos sem conto, e todas as mercadorias de toda a terra vêm aqui deferir, por razão da escala do mar e das mercadorias que dos outros reinos vêm a Cantão; e toda [a mercadoria] passa para dentro da terra da Chi-na, de que o rei recebe muitos direitos e os mandarins grandes peitas. Os mercadores vivem mais limpamente que nas outras governanças que não têm trato. Nenhu-ma governança da China tem trato com estrangeiros senão esta de Cantão; o que outras podem ter pelos extremos é coisa pouca, porque gente estranha não en-tra na terra da China, nem [sai] da China para fora. Este trato do mar enobrecia muito esta governança, e sem trato ficara nos lavradores, como as outras. Porém, a escala de toda a terra da China é Cantão. Foquiem há pouca coisa de trato, e não vão lá estrangeiros. Não se pode fazer trato em outra governança senão em Can-tão, porque para isso é mais apta que outras para trato com estrangeiros.

Esta governança tem treze cidades e sete chenos,9 que são grandes cidades que não têm nome de cidades; tem cem vilas cercadas, afora outros lugares cercados. Todo o melhor jaz ao longo do mar, até Ainão, por rios [em] que podem entrar navios que remem; e os [luga-res] que estão arredados do mar, estão entre rios em que outrossim pode andar toda a fustalha de remos. As cidades e vilas que estão por rios que não podem a eles ir senão à sirga, não se faça delas, pelo princípio, fun-damento; porque quando o mor obedece, o menor não se alevanta. Como digo, debaixo do sol não há coisa tão disposta como esta, e de gente sem conto. É muito povoada nestas faldas por onde estão rios, e onde os não há não é assim povoada nem o quinto. [Tem] de toda [a] sorte de oficiais de todos [os] ofícios mecâni-cos, digo: carpinteiros, calafates, ferreiros, pedreiros, telheiros, serradores, entulhadores; finalmente, que esta é a soma das coisas que são necessárias para o serviço d'El-Rei [e] de suas fortalezas. E daqui se podem tirar cada ano quatro, cinco mil homens, sem fazerem ne-nhuma míngua na terra.

Carta anónima, do Livro de Marinharia de João Lisboa, c. 1560; in MARQUES, Alfredo Pinheiro, A Cartografia Portuguesa do Japão (Séculos XVI-XVII), Lisboa, Fundação Oriente, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1996, p. 115.

NOTAS

* Ms., Cantão, 1534.

1 A primeira lista das províncias da China Ming, embora não seja totalmente fidedigna, consegue identificar quase todas elas. O Celeste Império estava dividido em treze províncias e duas áreas metropolitanas. As áreas metropolitanas eram Pe-quim e Nanquim; as províncias eram Guangdong, Fuquiém, Chequião, Xantum (Shandong), todas elas marítimas; Iunão (Yunnan), Guizhou, Guangxi, Jiangxi, Huguang, Honão (Henan), Sejuão (Sichuan), Shaanxi e Shanxi. O autor utiliza ao longo da sua carta diversas variantes destes topónimos, que aqui foram unificados, por comodidade de leitura.

2 Cristóvão Vieira refere-se à sua viagem entre Cantão e Pe-quim, em 1520-1521, na comitiva de Tomé Pires.

3 Isto é, "tártaros".

4 Golfo de Tonquim.

5 Trata-se da serra de Meiling.

6 Curiosa referência do autor à serra de Sintra.

7 Provável referência a Dongguan, no estuário do rio Dong, o rio de Leste.

8 Entrevê-se neste trecho um incitamento à conquista da re-gião de Cantão pelos portugueses, projecto que é mais clara-mente defendido em outras secções da carta. A situação trá-gica em que se encontrava Cristóvão Vieira, assim como as limitações a que estava submetido em termos de observação da realidade chinesa, justificam claramente este projecto.

9 "Cheno" (em chinês, cheng) é a cidade de mercado.

desde a p. 33
até a p.