Antologia Documental

RELAÇÃO SOBRE A FUNDAÇÃO E FORTIFICAÇÃO DE MACAU*

Diogo Caldeira Rego

Carta anónima da região de Macau, c. 1646 (Biblioteca da Ajuda), in Macau: Cartografia do Encontro Ocidente-Oriente, coordenação de Luís Filipe Barreto, Macau, Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, s. d., p. 134.

Diogo Caldeira Rego é personagem de difícil referência biográfica, sabendo-se apenas que era escrivão da Câmara de Macau em 1623, altura em que redigiu uns apontamentos sobre o "estado da Cidade do Nome de Deus". O documento permaneceu manuscrito na época, apenas modernamente sendo impresso. Do respectivo conteúdo pode concluir-se que se trata de uma espécie de "carta de servi-ços" da câmara da cidade, onde se destacam os serviços prestados à coroa luso-espanhola pelos cidadãos macaenses, com o objectivo de conseguir alguma compensação da parte do monarca.

Fonte utilizada: LUZ, Francisco Paulo Mendes da, O Conselho da Índia, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1952, pp. 606-616. O texto foi modernizado. As palavras entre parênteses rectos foram acres-centadas para facilitar a leitura de determinadas passagens.

BREVE RELAÇÃO DO ESTADO DA CIDADE DO NOME DE DEUS [NO] REINO DA CHINA, DE SEU PRINCÍPIO ATÉ O ANO DE 1623.

Depois que os primeiros portugueses que a estas partes da China passaram no ano de 1524 estive-ram e contrataram com os chineses dezoito anos na ilha de Sanchoão e doze [anos] em Lampacau,1 des-cobriram este porto de Macau,2 aonde, por acha-rem mais comodidades para seu trato e mercancia, se foram deixando ficar esquecer nele, ora uns, ora outros, fazendo suas casas, ao princípio de palha e depois de taipa. Cresceram de [tal] maneira que em espaço de trinta anos que, quase sem se sentir, no cabo deles estava já uma povoação tal que tratou de ser cidade, como de efeito no ano de 1584 o vice-rei da Índia D. Francisco Mascarenhas,3 conde de Santa Cruz, mandou fazer a primeira eleição de juízes e vereadores nela, e no [ano] seguinte de [15]85 o vice-rei D. Duarte de Meneses4 a fez ci-dade, a que se chamasse do Nome de Deus, dando-lhe por armas a cruz do hábito de Cristo, com os privilégios da cidade de Évora, o que tudo confir-mou a majestade d'El-Rei Filipe primeiro, nosso senhor.5

Porque os primeiros fundadores em bela paz fa-ziam sua mercancia com os chineses, e as viagens da Índia, Japão, Sião e outras se continuaram sem temor dos inimigos, não cuidavam então que os po-deriam ter ao diante, e cada um edificava para si e a seu modo aonde lhe melhor estava, sem respeito ao comum, com [o] que ficou esta cidade muito espa-lhada, mal armada, pouco defensável. E sendo edificada, como foi, sem licença nem consentimento d'el-rei da China, só [pôde crescer] com a dissimu-lação dos mandarins que governavam, pelos pro-veitos comuns do reino e [pelos] seus particulares. Havendo neles as contínuas mudanças que confor-me a seu governo costuma haver, não faltaram com eles, por muitas vezes, várias contrariedades aos moradores dela. Os quais, mostrando-se sempre leais vassalos de Sua Majestade, assim como se prezavam de à custa de sua[s] fazendas, sangue e vidas, com grandes perigos e trabalhos de tão lar-gas navegações, terem descoberto tantos portos nestas partes, fundando e edificando neste [lugar] uma tal cidade, se prezam também muito seus fi-lhos e sucessores de a conservarem e acrescenta-rem com a mesma custa e maiores perigos, sem nela entrar até hoje a Fazenda real para gastos que se tenham feito, antes teve sempre grandes proveitos e acrescentamentos dela, como se verá.

Pondo no primeiro lugar o proveito espiritual das almas e a conversão dos gentios, que os senhores reis passados a tanto zelo sempre encomendaram como principal intento, e a majestade católica d'El-Rei nosso senhor tanto deseja e procura, sabido é que à sombra desta cidade [e] de seu trato e comu-nicação com os japoneses e chineses se abriu entra-da ao Sagrado Evangelho nestes tão grandes e po-pulosos impérios, estando dantes tão fechada. E neles, com tanta glória de Deus nosso senhor, se têm feito muito grandes cristandades, regadas já com o sangue de tantos e tão insignes mártires,6 como cada dia vemos principiados, aumentados e conservados com os contínuos trabalhos e sangue dos padres da Companhia de Jesus. Os quais há poucos anos que daqui foram à Cochinchina, onde de novo fundaram casas e igrejas em aquele reino, [e agora] continuam em ele, [onde] têm feito e fa-zem grande cristandade, com proveito de muitas almas [e] com esperanças de abrirem outras novas missões nos muito espaçosos reinos que por toda esta costa estão vizinhos.

Além dos muitos gentios que nesta cidade se bap-tizam todos os anos, assim dos chineses naturais como japoneses e outros que de vários reinos a ela concorrem, procuraram os primeiros povoadores que cá neste fim do mundo lhes não faltassem mi-nistros que pregassem, confessassem, ministrassem os sacramentos, e tudo o mais necessário para bem espiritual de suas almas, nem [faltassem] outros que ensinassem seus filhos. E com este bom zelo, logo do princípio de sua fundação tiveram aqui padres da Companhia de Jesus, que foram os primeiros religiosos que a estas partes passaram e nesta cida-de fundaram um colégio. O qual, ainda que sem renda alguma, em edifício, número e qualidade de sujeitos é uma das maiores e mais graves casas de religiosos que há neste Oriente, que, por ser como seminário de muitas missões, residem às vezes nele sessenta, setenta e mais sujeitos.7 Os quais, a bem dos grandes serviços que sempre lhe[s] fizeram e continuamente fazem com seus acostumados mi-nistérios, ensinando, confessando, e pregando, [tam-bém] acodem sempre com muito zelo em todas as ocasiões particulares que se oferecem de bem da terra e proveito de seus moradores, e daqui provê-em de ministros e sustentam as cristandades destes reinos.

Tem esta cidade as religiões de Santo Agostinho, São Domingos e São Francisco; [tem] boas igrejas e conventos, e em cada um deles de ordinário resi-dem sete, oito frades, ora mais, ora menos. Há sé matriz, duas freguesias, e em cada uma delas, e nos conventos, muitas confrarias; e [há também] duas ermidas de Nossa Senhora. E todas estas igrejas são servidas dos ministros necessários, com ricos orna-mentos e muitas peças de prata, com que os sacra-mentos se ministram, e os ofícios divinos se cele-bram nelas com grande aparato e religião. Além disto, tem uma casa da Santa Misericórdia bem ser-vida, em que se gasta todos os anos grande cópia de ouro com órfãos desamparados, pobres, viúvas, com dois hospitais que tem à sua conta, em que sempre há muitos doentes, assim dos portugueses como dos naturais da terra e de outras partes, e to-dos são curados com muita abundância de tudo e caridade. [E isto] afora grande número de órfãs honradas, que os irmãos em suas casas criam e sus-tentam como próprias filhas até as casarem e dota-rem liberalmente à própria custa, conforme a qua-lidade de cada um.

Toda esta máquina de convento, igrejas, Miseri-córdia, hospitais, obras pias e ministros eclesiásti-cos sustenta e edificou esta cidade com esmolas ordinárias e particulares, e com algumas imposi-ções gerais que com aprazimento do povo se puse-ram alguns anos, sem entrar para isto coisa alguma da fazenda real, como em outras partes se faz, mais que a ordinária que se manda pagar ao bispo, a qual, posto que Sua Majestade concedeu, manda e quer que se pague inteiramente. Contudo, ou por culpa dos ministros, ou por falta do dinheiro necessário no Estado da Índia para se acudir a outras obriga-ções mais precisas, de ordinário se não paga, e as-sim a carga da sustentação do bispo e sua casa fica também sobre os moradores e à sua conta, como bem se viu no tempo que nela residiram os três que já nela houve.8

Nestes poucos anos não foi menor o acrescenta-mento desta cidade no temporal, porque [tanto] em grandeza [e] nobreza de edifícios, [como] em nú-mero de moradores, é hoje uma das principais des-te Oriente, havendo nela mais de 400 portugueses casados, entre os quais alguns fidalgos muito no-bres, e os mais ou quase todos de muitos anos de bons serviços de Sua Majestade nas armadas e guer-ras de todo este Estado, afora muitos casados natu-rais da terra e de fora, e outra muita gente de várias nações, que por razão do grande trato e mercancia que há para muitas partes deste Oriente vão e vêm e nela residem o mais do ano. E este comércio acres-centou e conservou sempre [a cidade] em muita paz e quietação com todos, gastando para isso em cada um ano muito do seu, com os mandarins que go-vernam a China, com os senhores de Japão, Cochinchina e outros, nas embaixadas, peitas e pre-sentes que é necessário fazerem-se para se conser-var no meio de tantos e tão poderosos inimigos.

O proveito que desta paz e comércio aos de fora se tem seguido, dirão todos os que até agora fo-ram capitães das viagens de Japão, que entrando pobres só com nau ou navios (que às vezes não eram seus) para as fazerem, saíam ricos e com muitos mil cruzados, pelos grandes fretes de dez por cento que de muitas e muito ricas fazendas lhe[s] pagaram sempre. Também o confessara todo o Estado da India, [e sobretudo] as alfândegas de Malaca, Cochim e Goa, que as viagens da China sempre enriqueceram, e o conhecem agora melhor, que sentem a falta delas.9 Os estados de Maluco e Filipinas não negarão que sempre participaram de grandes proveitos e muitos interesses à sombra desta cidade, que mal se poderão conservar sem ela. A qual [cidade] nunca também faltou em o particular de serviço de Sua Majestade todas as vezes que houve ocasiões de o fazer aos vice-reis do Estado, aos capitães-gerais, a suas armadas, a Malaca, a Maluco, em que com grande liberalida-de e leal vontade gastou grande soma de mil cru-zados, o que tudo, com o mais que se vai gastando nos presídios, artilharia e fortificação, se verá melhor da lista particular que vai acostada.10

Viu-se ainda melhor a lealdade e ânimo que os moradores desta cidade têm de a conservarem em serviço de Sua Majestade, quando o ano de 1620, sendo avisados pelo seu feitor que estava em Ja-pão, do intento que os rebeldes holandeses tinham de darem nela e a tomarem à força de armas, confe-derados com ingleses e japoneses. Porque logo à sua custa trataram de a fortificar o melhor que pu-dessem, vencendo esta grande e nunca até agora vencida dificuldade com os mandarins,11 a poder de muitas peitas, pelos grandes ciúmes e medos que sempre tiveram e têm dos estrangeiros, com que deram princípio a alguns baluartes e fortificaram as partes mais fracas e de maior perigo do inimigo haver de acometer por elas, provendo-se de pólvo-ra e munições sem reparar em gastos. Mandaram um navio de aviso a Manila com um padre da Com-panhia de Jesus por embaixador ao governador D. Alonso Fajardo,12 e pela boa diligência e bom âni-mo com que ele e a cidade [de Manila] o despacha-ram, foi e veio em quarenta e sete dias, trazendo compradas sete peças de artilharia grossa, com pro-messas largas de acudir [de lá] com navios, gente e ainda com a própria pessoa [do governador], com o mais que tivesse, todas as vezes que o avisassem e fosse necessário.

Foi de tanta importância esta boa diligência e apa-relho, que a não estar feito se vira esta cidade em muito maior perigo e aperto do que foi o em que se viu o Junho seguinte, do ano de 1622. Porque à vis-ta dela surgiu o inimigo holandês com 17 velas, naus grandes as demais e alguns patachos, todas bem artilhadas e providas da melhor gente que tinham nestas partes, porque para esta empresa desmante-laram as mais das forças e feitorias, que todos de-sejavam de vir a ela, e lhes acrescentava o ânimo e desejos a fama das riquezas desta terra e importân-cia dela, a qual se persuadiram que sem resistência seria sua, por terem notícia que estava com pouca gente, sem forças, sem muros, sem artilharia, sem presídio.13

Porém, saiu-lhe[s] ao contrário, porque sendo véspera de S. João Baptista à tarde, duas naus [ho-landesas entraram] à bateria com o nosso baluarte de S. Francisco, que acharam feito de novo e ainda mal acabado, [e] ele lhe[s] respondeu melhor do que eles esperavam nem cuidavam. E tornando o dia seguinte de madrugada com a mesma salva e bateria, no mesmo tempo por outra parte desem-barcaram em terra oitocentos mosqueteiros em es-quadrão fechado,14 marchando para a cidade com tanta ordem, segurança, brio e ânimo, que parecia virem já senhores dela. Os nossos, que ao desem-barcar deles se não descuidaram, por várias partes os seguiram sempre e serviram com a mosquetaria, até que algumas pessoas do monte de S. Paulo, de que se não tem razão, com bom sucesso deram no esquadrão. Com que [eles] se pertubaram e come-çaram a desordenar, e sem perder ânimo se dividi-ram, cometendo o monte de Nossa Senhora da Guia com intento de o ganharem, unindo-se com duas bandeiras que para o mesmo efeito logo ao desem-barcar se apartaram; e servindo-se da mosquetaria, foram subindo até ao alto da serra, onde já acharam alguns dos nossos. Mas acudindo mais gente da ci-dade e portos em que estavam com grande ânimo, foram dando neles por várias partes.

Matando muitos com os mosquetes e à espada, os seguiram até se embarcarem a nado os que pu-deram escapar, que foi a gente de menos porte, fi-cando mortos no campo e na praia mais de quatro-centos, e entre eles o general da terra e o do mar, que os quis[eram] acompanhar, o mestre do cam-po, oito capitães de infantaria, os mais dos sargen-tos e oficiais do campo, e outras pessoas principais e de nome entre eles, e perto de duzentos feridos, dos quais, como depois se soube, poucos escapa-ram, alguns cativos, e entre eles um capitão, pessoa principal, que ainda hoje aqui temos, deixando por despojo mais de seiscentos mosquetes, uma peça de bater, muitas espadas, escudos, alabardas, sete bandeiras, outras tantas caixas em sinal e troféu de tal vitória.

As naus que estiveram à bateria com o nosso for-te, se levaram tão faltas de gente e destroçadas da nossa artilharia, que a uma delas deram logo fundo e outra depois queimaram. E se naquele tempo hou-vera qualquer bafo de vento, ambas ficar[i]am no mesmo lugar. Foi esta insigne vitória milagrosa, por não custar mais que cinco portugueses, alguns es-cravos e poucos feridos, e por isso a celebramos como alcançada pelo glorioso [S. João] Baptista, e em seu dia,15 que esta cidade festeja com particular devoção, e de novo para perpétua memória dela, o tomou por seu padroeiro, para que a conserve nos sucessos e boa mão que sempre teve contra estes hereges e inimigos comuns,16 porque em outras ocasiões [a cidade] lhe[s] tomou alguns patachos, matou e cativou muita gente, e no ano de [1]618, indo para Japão os navios de trato, os nossos aco-meteram um seu patacho grande com uma nau e o queimaram e meteram no fundo. Confessaram os inimigos, quando o souberam, que em gente e ri-queza fora esta uma das maiores perdas que até então neste Oriente tiveram.17

Os moradores desta cidade se mostram nestes encontros tão [hábeis] com as armas como liberais com as fazendas no serviço de Sua Majestade, não perdoando as vidas a trabalhos [e] a gastos, e al-guns houve que para mostrarem mais seu bom âni-mo e valor forraram e deram liberdade a seus es-cravos que mataram [algum] inimigo ou fizeram alguma outra valentia no campo, e outros deram peças [de ouro] aos que tinham feito bem sua obri-gação, pelo que os mais ou todos mereciam bons despachos da liberal real mão de Sua Majestade, como o tem feito e faz a outros que se acharam em menores ocasiões, e de menos perigo. E isto tanto mais quanto se não descuidaram com a vitória, an-tes com novo ânimo e maior liberalidade se come-çaram logo de aperceber para maiores encontros, por lhes parecer que o inimigo tornaria a provar ventura, para refazer a perda passada, e assim se tem por novas de várias partes, e os prisioneiros o não negavam.

Com esta resolução, se nomeou logo um sargen-to-mor, capitães e soldados, um capitão de artilha-ria com quarenta bombardeiros, e todos com bons estipêndios de mantimentos e pagas ordinárias. [Além disso,] deu-se princípio a uma casa de fun-dição que hoje está acabada,18 com esperanças cer-tas de se poder fundir muita e boa artilharia grossa, e de novo se tornou a mandar aviso a Manila, [por] um padre da Companhia, com outras pessoas gra-ves, donde com muita diligência o governador [das Filipinas] nos mandou duas companhias de infan-taria com seus capitães e oficiais, e por cabo19 de todos a D. Fernando da Silva, sargento-mor daque-la praça, com quartéis determinados e pagos adian-tados, que tudo paga e sustenta até hoje esta cidade do seu e à custa de seus moradores, pagando tam-bém mais doze peças de artilharia e alguma pólvo-ra e munições que vieram com o mesmo socorro.

Sobre tudo, se fizeram grandes diligências com os chineses, para efeito de se fortificar de todo [a cidade], e com novas peitas que lhe deram vieram alguns mandarins ver as naus dos inimigos, e os mortos que no campo ficaram, dos quais levaram algumas cabeças a Cantão, em prova [de] que os muros que desejávamos fazer era só a fim de de-fender a cidade, que estava nas terras d'el-rei da China, de inimigos que injustamente a queriam to-mar, e nisto se teve também modo que, como o dar pode muito e acaba tudo, com ele se venceu a mai-or dificuldade que havia e se deu princípio à obra. Os mandarins foram dissimulando, a gente de ser-viço veio crescendo, a obra continuando, com tan-to fervor que em pouco mais de um ano se têm aca-bado grandes lanços de muro, de dezoito palmos de largo e trinta e cinco de alto, com seus reveses, baluartes e parapeitos, que a cidade está já quase fechada da parte da terra. Está feita grande parte da fortaleza dos estados de Sua Majestade, e este foi o proveito que a Sua Majestade e a esta sua cidade deram os inimigos com sua vinda a ela, porque tar-de ou nunca doutra maneira se pudera fortificar, por mais que nisso se trabalhasse.

Pelo aviso que também se mandou à Índia, o con-de da Vidigueira, vice-rei do Estado, 20 nos mandou um socorro de cem soldados, e por general da gen-te de guerra a D. Francisco de Mascarenhas, fidal-go de muitas partes, de que confiamos que nas oca-siões que se oferecerem o fará como se espera de pessoa de tanta qualidade. Mas como estes solda-dos da Índia vieram à custa desta cidade, a qual passa já de um ano que sustenta os que aqui tinha e os que vieram de Manila, que de necessidade deve sustentar enquanto falta monção para se tornarem, e não há novas do poder com que o inimigo passou a Japão, vão crescendo os gastos tanto que é neces-sário ir-se cada dia empenhando mais [a cidade], e com a perda que estes anos houve de alguns navi-os, arribada de outros, falta de viagem de Japão, que se não fez o passado [ano] por causa do inimi-go, nas passadas serem os ganhos poucos, e gran-des as quebras que houve nos mercadores chineses com muita quantia de dinheiro que lhe tinham en-tregue seus moradores, ficam todos tão alcançados21 na maior parte de seus cabedais, que será impossí-vel sem o poderoso e real braço de Sua Majestade, e sem as mercês que espera lhe faça, desempenhar-se nem conservar-se esta sua cidade de tanta im-portância para estes seus estados e para sua real fa-zenda, quanto se verá claramente de outros aponta-mentos que com estes vão.22

Subscrita por mim, Diogo Caldeira do Rego, al-feres e escrivão da Câmara desta Cidade do Nome de Deus da China, aos 27 de Novembro de [1]623 annos.

NOTAS

1 Esta cronologia não é confirmada por outras fontes. O pri-meiro contacto dos portugueses com a China data, na reali-dade, de 1513, ano em que Jorge Álvares foi a Tamão num junco malaio. A ilha de Sanchoão começou a ser frequentada pelos nossos navios por volta de 1535-1540 e a ilha de Lampacau só começou a ser escalada depois de 1554.

2 Original: "Amacao".

3 Governou o "Estado da Índia" entre 1581 e 1584.

4 Governou o "Estado da Índia" entre 1584 e 1588.

5 Filipe II de Espanha subiu ao trono de Portugal em 1581.

6 Por este anos, o cristianismo, que durante a segunda metade do século XVI prosperara no Japão, tinha já começado a ser violentamente perseguido pelas autoridades nipónicas.

7 O colégio jesuíta de Macau albergava durante vários meses-- o tempo de esperar a monção apropriada -- os missioná-rios que todos os anos demandavam o Japão.

8 Os primeiros bispos de Macau foram D. Melchior Carneiro (que renunciou em 1582), D. Leonardo de Sá (que faleceu em 1597) e Fr. João da Piedade (que resignou em 1623).

9 Em 1623, quando Diogo Caldeira escrevia, os holandeses estavam já solidamente estabelecidos na Insulíndia, colocan-do enormes obstáculos à passagem dos navios portugueses que do Mar do Sul da China tentavam atingir a Índia.

10 A Relação de Diogo Caldeira deveria conter originalmente um apêndice orçamental, entretanto desaparecido.

11 Os mandarins chineses sempre tinham levantado enormes obstáculos à construção de fortificações em Macau.

12 Governador das Filipinas entre 1618 e 1624.

13 Tratava-se da poderosa armada de Cornelius Reijersen, com a qual os holandeses pretendiam consolidar posições no Mar do Sul da China.

14 Os holandeses desembarcaram na praia de Cacilhas.

15 O dia de S. João Baptista cai a 24 de Junho.

16 Os protestantes do norte da Europa eram alvo de gran-de hostilidade por parte dos católicos das regiões mais meridionais.

17 A vitória dos macaenses sobre uma força holandesa muito superior constituiu um extraordinário feito de armas, que na época foi devidamente salientado pelas partes intervenientes.

18 Trata-se da célebre fundição de Manuel Bocarro.

19 Isto é, "por comandante".

20 D. Francisco da Gama, que governou o "Estado da Índia" entre 1622 e 1628.

21 Isto é, "tão comprometidos".

22 O autor refere-se ao já citado "orçamento", que seguiria em anexo à sua Relação.

* Ms., Macau, 1623.

desde a p. 153
até a p.