Antologia Documental

HISTÓRIA DO GRANDE REINO DA CHINA*

Fr. Juan González de Mendoza

Juan González de Mendoza nasceu em 1545 e embarcou para o Novo Mundo com dezassete anos, aí vindo pouco depois a ingressar na ordem de Santo Agostinho, dedicando-se durante vários anos aos estudos na cidade do México. Os espanhóis tinham-se estabelecido definitivamente nas Filipinas em 1565, passando desde então a existir um regular movimento de homens e de mercado-rias entre Espanha e as suas longínquas possessões extremo-orientais. A partir de Manila, missionários e conquistadores começaram a lançar miradas cobiçosas sobre os ricos impérios asiáticos onde os portugueses mercadejavam desde os alvores do século xvI, e desde aparecem projectos de intervenção espanhola na China e no Japão. Em 1574, Juan González é destacado para acompanhar a Madrid um seu correligionário que regressava do Extremo Oriente e pretendia solicitar a Filipe II autorização para demandar o Celeste Império.

Deverá ter nascido então o interesse do nosso missionário pelas coisas da China, que não mais deixa-rá de cultivar em anos posteriores. Como resultado, em 1581 era nomeado pelo monarca para coman-dar uma embaixada espanhola a Pequim, e em meados desse mesmo ano já se encontrava de novo no México, fazendo os preparativos para a jornada. Esta missão diplomática, contudo, não chegou a rea-lizar-se, talvez porque entretanto Filipe II assumira também o trono de Portugal, comprometendo-se, em contrapartida, a manter total separação entre os interesses ultramarinos de ambas as coroas ibéri-cas. A embaixada à China, por efeito deste pacto régio, deixava de ter prioridade. Frei Juan González de Mendoza, entretanto, acabou por ir parar a Roma, onde em 1584 dava os últimos retoques no volu-moso manuscrito de uma obra que no ano seguinte seria impressa naquela cidade, a Historia de las Cosas mas Notables, Ritos y Costumbres del Gran Reino de China. Os acasos da vida levaram-no ainda por duas vezes a terras americanas, onde haveria de falecer em 1618.

A História de González de Mendoza, apesar do seu autor nunca ter pisado solo chinês, conheceu de imediato um extraordinário sucesso entre o público culto, sendo objecto de sucessivas reedições e traduções em diversos países da Europa, nada menos de quarenta no curto espaço de quinze anos. Curiosamente, uma das menos citadas reedições parciais foi impressa em Lisboa em 1586. Na base deste tremendo êxito editorial estava uma imensa e rigorosa pesquisa documental efectuada pelo reli-gioso, tanto em Espanha como no Novo Mundo, e que se baseava não só em obras de origem portuguesa, como a Década III de João de Barros (cf. supra, pp.50 - 56) e o Tratado de Fr. Gaspar da Cruz (cf. supra, pp. 75 - 87), mas também em conversas mantidas com gente espanhola que tivera a oportunidade de visitar a China. Entre os principais informadores, directos ou indirectos, de Mendoza contavam-se os membros de três expedições missionárias espanholas que, por diversos motivos, haviam desembarcado em terras do Império do Meio após o estabelecimento dos espanhóis em Manila.

Valerá a pena destacar o especi-al contributo de Fr. Martín de Rada, que visitou a província de Fuquiém em 1575, o qual pode muito bem ser considerado o pri-meiro "sinólogo" europeu. Este re-ligioso agostinho, com efeito, du-rante a sua aventurosa jornada, teve oportunidade de adquirir um importante conjunto de obras chi-nesas impressas, que mais tarde faria traduzir, numa interessante e precoce tentativa de decifrar os se-gredos da realidade sínica com base em fontes de origem local. Os manuscritos preparados por Rada, incluindo uma desaparecida Arte y Vocabulario de la Lengua Chi-na, não foram impressos na épo-ca. Mas o trabalho deste missio-nário foi devidamente aproveita-do e destacado por González de Mendoza, que fez imprimir a mais exaustiva descrição das coisas da China produzida no século de Qui-nhentos. O trecho que a seguir se transcreve dá notícias da mencio-nada biblioteca chinesa adquirida pelo frade espanhol.

Fonte utilizada: GONZÁLEZ DE MENDOZA, Juan, Frei, Historia del Gran Reino de la China, edição de Ramón Alba, Madrid, Miraguano, Polifemo, 1990, pp.127-130. Tradução do castelhano. As palavras entre pa-rênteses rectos foram acrescen-tadas com o objectivo de facili-tar a leitura.

Frontispício de uma das numerosas edições da Historia de las Cosas mas Notables, Ritos y Costumbres del Gran Reyno de la China, de Fr. Juan González de Mendoza, Antuérpia, 1596.

CAPÍTULO 15

DE QUANTO MAIS ANTIGO

É O COSTUME DE IMPRIMIR LIVROS

NESTE REINO DO QUE NA NOSSA EUROPA

A admirável invenção da tipografia foi tão sub-til e engenhosa, que, decerto, caso faltasse, pere-ceria uma grande parte da memória de tantos e insignes varões que os ditosos tempos antigos pos-suíram; e muitos dos que agora existem, não se afadigariam tanto com a cobiça de ganhar honra, nas letras ou nas armas, se a respectiva memória apenas perdurasse durante o seu tempo de vida ou pouco mais. Deixando isto de parte, assim como os grandes benifícios desta invenção, que querê-los referir seria alargar-me muito, tratarei apenas de mostrar o que o título do capítulo propõe, com alguns exemplos, bastantes para que fique claro, dos muitos que em suas histórias se encontram, tal como nas nossas.

Segundo julga a comum opinião, a invenção de estampar apareceu na Europa no ano de 1458, sendo atribuída a um alemão chamado Johan Gutenberg,1 e tem-se por coisa certa que o pri-meiro molde que serviu para imprimir foi fabri-cado em Mogúncia. Um alemão chamado Konrad trouxe esta invenção para Itália, onde o primeiro livro que se imprimiu foi o que escreveu Santo Agostinho, que se intitula a "Cidade de Deus".2 E nisto concordam graves autores. Contudo, se-gundo os chineses afirmam, o seu primeiro prin-cípio foi neste seu reino, sendo seu inventor um homem a quem eles reverenciam por santo, ten-do mais tarde, muitos anos depois de aqui ser usada, sido levada para o reino da Alemanha, por via da Rússia e da Moscóvia. Por isso, tem-se por muito certo que se pode vir por terra [da Chi-na à Europa], e que os mercadores que vinham de lá ao dito reino [da Alemanha] pelo Mar Ver-melho e Arábia Feliz, trouxeram livros [chine-ses], dos quais Johan Gutenberg, a quem os li-vros de história fazem autor, tomou inspiração.

Sendo isto verdade, como eles têm documenta-do, fica muito claro que esta invenção veio [de lá] e por eles nos foi comunicada. Esta versão é tanto mais verosímil quanto hoje se acham entre eles muitos livros impressos mais de quinhentos anos antes do ano em que pelas nossas contas teve prin-cípio a invenção na Alemanha. E tenho na minha posse um destes, e vi muitos outros, tanto nas Ín-dias [Ocidentais] como em Espanha e Itália.3

O padre [Martín de] Rada e seus companhei-ros, quando voltaram da China para as Filipinas,4 trouxeram muitos volumes de diversas matérias, que tinham adquirido na cidade de Aucheo,5 im-pressos em diversas partes daquele reino, e so-bretudo na província de Ochiam,6 onde existe a maior tipografia. E muitos mais trariam, segun-do disse, porque havia grandíssimas livrarias e valiam pouco dinheiro, se o vice-rei [daquela pro-víncia] não os impedisse, pois temia porventura que por meio deles se viessem a saber os segre-dos do reino [da China], coisa que com grandes cautelas procuram encobrir aos estrangeiros. As-sim, mandou-lhes dizer que lhe haviam assegu-rado que andavam a comprar livros para levarem para suas terras, que nisso não gastassem dinhei-ro, porque gratuitamente lhes daria ele todos os que quisessem. Porém, depois não cumpriu a sua promessa, ou pela razão já dita, ou talvez por se esquecer.

Os [livros] que [os religiosos] já tinham com-prado quando chegou a sentença7 eram em boa quantidade, tendo-se deles sacado mais coisas do que nesta nossa pequena História quisemos es-crever, para dar uma breve notícia das [coisas] daquele reino, até que se difundam mais alargadamente, quando, com o passar do tempo, tiverem sido entendidas e o testemunho de mui-tos as torne verosímeis, pois, hoje em dia, pela pouca e recente notícia que delas se tem, tal não se consegue fazer facilmente. Isto moveu-me e forçou-me a deixar de tratar de muitas coisas tidas por verdadeiras naquelas partes [da China], do que tenho sido acusado e repreendido por homens que dela tinham muita notícia. E por não me pa-recer fora de propósito, registarei no capítulo se-guinte as matérias de que os ditos livros trata-vam, para que se torne mais fácil acreditar no que, da curiosidade e polícia daquele reino, em mui-tas partes se tratou e se virá a tratar.8

CAP ÍTULO 17

DOS LIVROS QUE O PADRE RADA

E SEUS COMPANHEIROS TROUXERAM

DO REINO DA CHINA E DAS MATÉRIAS

DE QUE TRATAVAM

Os livros que trouxeram eram em grande núme-ro, como já dissemos, e tratavam de diversas maté-rias, como se poderá verificar [na lista que se apre-senta] de seguida.

1) Da descrição de todo o reino da China, e em que parte está cada uma das quinze províncias; a largura e o comprimento de cada uma delas; os rei-nos com que confinam.

2) Dos tributos e rendas do rei, e da ordem do seu palácio real, e dos salários ordinários que dá; com os nomes de todos os oficiais de sua casa, e até onde se estende o poder de cada um deles.

3) Dos tributários que tem cada província, [com] o número dos que estão livres de pagar tributo; e as épocas e a ordem em que se devem cobrar.

4) Para fazer navios de muitas maneiras, e de como se há-de navegar, com as alturas dos portos e a qualidade de cada um em particular.

5) Do tempo e da antiguidade do reino da China, e do princípio do mundo e em que tempo e quem o começou.

6) Dos reis que teve o reino e como se sucederam nele, e de que maneira e modo governaram, com a vida e costumes de cada um deles.

7) Das cerimónias com que hão-de oferecer sa-crifícios aos ídolos que eles têm por deuses, e os nomes de cada um deles e o princípio que tiveram, e as épocas em que se hão-de fazer tais sacrifícios.

8) Do que pensam sobre a imortalidade da alma, do céu e do inferno, e do modo de sepultar os de-funtos e das exéquias que por eles se hão-de fazer, com os lutos que cada um é obrigado a trazer, se-gundo o parentesco que com o defunto tinha.

9) Das leis que tem o reino, e em que épocas e por quem foram feitas, e as penas que pela sua que-bra se hão-de dar, com outras muitas coisas tocan-tes ao bom governo.

10) Muitos livros de ervas medicinais, e como se hão-de aplicar para que aproveitem e curem as en- fermidades.

11) Outros muitos [livros] de medicina, de auto-res daquele reino, antigos e modernos, com a or-dem que os enfermos hão-de ter para se curarem das enfermidades e para evitarem sofrer delas.

12) Das propriedades de pedras e metais, e de coisas naturais que têm em si alguma virtude, e de como as pérolas, o ouro, a prata e os demais metais podem servir à vida humana, comparando entre uns e outros a utilidade de cada qual.

13) Do movimento dos céus e do seu número; dos planetas e estrelas, e dos seus efeitos e influên-cias particulares.

14) De todos os reinos e nações de que têm notí-cia, e das coisas particulares que de cada um se sabe.

15) Das vidas que tiveram os homens a quem eles têm por santos, e onde passaram suas vidas, e onde morreram e estão enterrados.

16) De como se hão-de jogar as damas e o xa-drez, e de como hão-de fazer jogos de mãos e marionetas.

17) Da música e cantares, com os nomes dos in-ventores.

18) Da matemática e das contas, e das regras para as saber bem.

19) Dos efeitos que faz uma criatura no ventre da mãe, e de como está cada mês e se sustenta, e quais são os bons ou maus tempos para o seu nascimen-to.

20) Da arquitectura, e para todas as maneiras de fabricar; com a largura e comprimento que um edi-fício há-de levar para ter proporção.

21) Das propriedades da boa ou má terra, e dos sinais para a conhecer; e que coisas [se devem] cul-tivar em cada uma.

22) Da astrologia natural e judiciária, e das re-gras para a aprender; e como levantar figuras para fazer adivinhação.

23) Da quiromancia e fisiognomonia e outras si-nas, e do que cada uma significa.

24) Do estilo de escrever cartas, e dos títulos que se hão-de dar a cada um, segundo a dignidade ou qualidade de sua pessoa.

25) De como se hão-de criar os cavalos, e para os ensinar a correr e a caminhar.

26) Para adivinhar por sonhos e deitar sortes, quando começam alguma jornada ou fazem algu-ma obra cujo fim é duvidoso.

27) Dos trajes de todos os do reino, começando pelo rei e pelas insígnias dos que governam.

28) Para fazer armas e instrumentos de guerra, e para saber formar esquadrões.

Estes e muitos [outros livros chineses] trouxeram os ditos padres, dos quais, como disse, se tiraram as coisas que se disseram e que se dirão ainda neste livro de história, interpretadas por pessoas nasci-das na mesma China e criadas nas ilhas Filipinas em companhia dos espanhóis que nelas residem. Os quais [chineses] afirmaram ter visto muitas e muito grandes livrarias nas cidades onde chegaram, em especial a Aucheo e a Chincheu.9

Pormenor de biombo namban, finais do século XⅥ (Museu de Arte Antiga), In THOMAZ, Luís Filipe, Namban Jin: Os Portugueses no Japão, Lisboa, Correios, Telégrafos e Telecomunicações, 1993, p. 13

NOTAS

1 Johan Gutenberg (1397-1468) é tradicionalmente considera-do o inventor da tipografia europeia.

2 A Cidade de Deus, escrita por Santo Agostinho entre 413 e 427, é considerada a mais profunda meditação cristã sobre o sentido da história.

3 Os livros chineses impressos eram muito apreciados como objectos exóticos na Europa.

4 Martín de Rada (1533-1578) foi um dos primeiros missioná-rios agostinhos a estabelecer-se nas Filipinas. Visitou em 1575 a província chinesa de Fuquiém, tentando conseguir autori-zação das autoridades provinciais para a fundação de um entreposto espanhol, semelhante ao que os portugueses pos-suíam em Macau.

5 A cidade de Fuzhou (ou Fucheu), no litoral de Fuquiém.

6 Província de Fuquiém.

7 Isto é, a resposta das autoridades chinesas às pretensões es-panholas de estabelecerem uma base no litoral de Fuquiém.

8 O inventário da biblioteca adquirida na China pelo padre Rada e pelos seus companheiros não deixará de ter interesse, uma vez que se trata da primeira grande "biblioteca chinesa" adquirida por ocidentais, com claros propósitos de estudo e análise da história e da cultura do Celeste Império. Trechos de muitas dessas obras foram decerto traduzidos em Manila com o auxílio de chineses ali residentes; e muitos desses ma-teriais chegaram às mãos de González de Mendoza, que de-les faz devido uso.

9 Fuzhou e Zhangzhou, respectivamente.

* 1.a edição: Roma, 1585.

desde a p. 109
até a p.