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INTRODUÇÃO
NOTÍCIAS DA CHINA NA LITERATURA IBÉRICA (SÉCULOS XVI E XVII)

Rui Loureiro

A cultura medieual ibérica igno-rou quase por completo a Ásia, mundo demasiado remoto, cujo lacunar conhecimento se baseava so-bretudo em relatos de viajantes e de aventureiros, moldados pela fantasia de sucessivos compilado-res. O Livro de Marco Polo contribuíra para a di-vulgação de vagas notícias a respeito do Cataio, vasto e poderoso império governado pelos cãs mongóis, que se situava algures nas partes do Ex-tremo Oriente. A visão ibérica dessas regiões exó-ticas, porém, era vaga e nebulosa, sem contornos precisos, pois a ausência de contactos directos con-tribuía para a difusão de uma geografia imaginária. O descobrimento do caminho marítimo para Índia (1498) irá alterar radicalmente esta situação, pois de repente, graças às viagens e explorações portu-guesas, o mundo oriental ganha uma nova dimen-são para os europeus, impondo-se como um pode-roso pólo de atracção, tanto por razões de ordem material como por motivos de ordem intelectual. A vivência directa dos mares, das terras e das gentes asiáticas, alargando os horizontes geográficos dos portugueses, e depois de outros europeus, provoca-rá importantes alterações nos modos de vida, mas também nas formas de conceber o mundo, já que as notícias recolhidas em primeira mão pelos nossos viajantes, renovando o saber tradicional, irão revo-lucionar a visão da Ásia.

Entre muitas outras novidades absolutas, os por-tugueses recolhem as primeiras informações sobre uma enigmática terra dos chins, que se situaria nos confins mais remotos do Oriente. Ao correr dos anos, na sequência de sucessivas viagens de explo-ração e de regulares inquéritos levados a cabo em numerosos portos asiáticos, as notícias disponíveis vão-se acumulando, dando origem à criação de enor-mes expectativas. A China, com efeito, começa a tomar a forma de um extenso e poderoso reino, pro-dutor de valiosíssimas mercadorias, que suscitam a curiosidade e também a cobiça dos viajantes oriun-dos da Europa. Os primeiros contactos entre portu-gueses e chineses são estabelecidos em Malaca, em 1509, e confirmam todos os anseios dos nossos: os chineses, para além de traficarem sedas e porcela-nas, revelam enormes parecenças com os próprios ocidentais, desde a cor alva da pele ao vestuário e à alimentação, passando pelas elaboradas regras de civilidade. Assim, praticamente desde o primeiro encontro, os chineses apresentam-se como interlocutores privilegiados, enquanto a China se impõe como uma meta prioritária das nossas nave-gações.

Depois do contacto inaugural com a ilha de Tamão, estabelecido em 1513, os navios portugueses não mais deixariam de demandar o litoral chinês, com uma persistência louvável, decerto proporcional aos enormes benefícios materiais que ali podiam alcan-çar, experimentando nas décadas imediatas sucessi-vas formas de aproximação ao Celeste Império. Num primeiro momento, os enviados de El-Rei D. Manu-el I, de Portugal, tentam estabelecer um entreposto fixo na baía de Cantão, recorrendo ao poderio naval, temperado pela mediação diplomática. Este proces-so, porém, que havia resultado em outras regiões asi-áticas mais ocidentais, mostrou-se totalmente inade-quado às circunstâncias locais, conduzindo a um bre-ve período de confrontos. Por um lado, os portugue-ses cometeram demasiados erros tácticos, motiva-dos pelo total desconhecimento das principais carac-terísticas da civilização chinesa. Por outro lado, a China revelou uma invulgar capacidade de resistên-cia à intrusão dos nossos homens, recusando qual-quer tipo de relacionamento oficial com estes bárba-ros estrangeiros.

Perante o fracasso da política régia, os mercado-res privados tomam a iniciativa, criando, ao longo de anos de tráfico semilegal, uma vasta rede de cum-plicidades com as populações ribeirinhas das pro-víncias chinesas meridionais. Onde a intimidação e a utilização da força haviam falhado, a maleabilidade e o compromisso com os poderes locais obtiveram resultados surpreendentes. Depois de minimamente familiarizados com as subtilezas da política externa chinesa, os portugueses adop-tam um perfil conciliador, que lhes permite contor-nar as proibições imperiais de uma forma discreta, mas com grande eficácia. Assim, conseguiram du-rante várias décadas manter um proveitoso inter-câmbio com determinadas zonas costeiras de Fuquiém (Fujian) e de Chequião (Zhejiang). O des-cobrimento do Japão, em 1542 ou 1543, veio intro-duzir um factor de dinamização no tráfico luso-chi-nês, que se tinha até então desenvolvido paulatina-mente, de uma forma camuflada, decerto, mas com segurança e com continuidade. Constrangimentos de vária ordem, sobretudo climáticos e geográfi-cos, exigiam agora a existência de uma base segura em algum ponto do litoral chinês, a partir da qual os nossos navegantes pudessem rumar alternadamente a Malaca e aos portos nipónicos.

Cerca de uma década depois da primeira viagem documentada à ilha japonesa de Tanegaxima, as em-barcações lusitanas obtinham autorização dos mandarins de Cantão para ancorarem na ilha de Sanchoão (Shanxiachuan). E em 1557, menos de três anos depois do primeiro acordo luso-chinês, a base de negócios fora transferida para a península de Macau, onde se iria manter a partir de então. Tinha chegado a idade do compromisso, tanto para os portugueses como para os chineses. A manuten-ção de uma base lusitana em território do Império do Meio deve ser entendida, sem dúvida, como uma conquista dos nossos mercadores e aventureiros, que conseguiram adquirir um estatuto de parceiros credíveis face às autoridades da vizinha metrópole de Cantão. Todavia, Macau é também uma invulgar concessão dos mandarins cantonenses, que, numa atitude perfeitamente inédita, mas explicável por sólidas razões de pragmatismo político e económi-co, consentiam o estabelecimento de uma povoa-ção de estrangeiros no interior das fronteiras impe-riais.

Os contactos com a terra dos chineses, facilitan-do a obtenção de informações de carácter geográfi-co e etnográfico, deram inevitavelmente lugar a uma proliferação de relatos manuscritos, que pretendi-am divulgar realidades anteriormente ignoradas. Assim, mercadores e aventureiros, soldados e fun-cionários régios, e também missionários de varia-das denominações, todos contribuíram, na medida das respectivas possibilidades, para um melhor co-nhecimento do mundo sínico. O processo foi idên-tico ao que se desenvolveu em outras regiões asiá-ticas. Os nossos observadores começaram por pres-tar atenção aos dados de carácter mais utilitário, li-gados aos condicionalismos políticos e militares, assim como ao mundo mais imediato da navegação e da mercancia. Tanto a Suma Oriental de Tomé Pires (1515) como o Livro de Duarte Barbosa (1516), as primeiras geografias globais do Oriente redigidas por portugueses, já registavam importan-tes e minuciosos dados sobre os principais aspec-tos materiais da civilização chinesa. Depois de pre-enchidos os vazios informativos mais urgentes, os viajantes ampliariam a sua grelha de questões, pro-curando obter informes cada vez mais pormenori-zados sobre usos e costumes, e também sobre cren-ças e práticas religiosas, de modo a formarem uma imagem global mais rigorosa do Império do Meio. Uma anónima Informação de cerca de 1548, redigida a instâncias do P.e Francisco Xavier, pro-curava desvendar aspectos menos claros da vida cultural do Império do Meio, que haviam passado despercebidos aos anteriores observadores. E esta parece ser a primeira intrusão espanhola, embora de todo pacífica, nas "cousas da China".

As informações consignadas em cartas e relatóri-os manuscritos circularam de uma forma ampla, sendo regularmente aproveitadas por cronistas e por literatos, que, a seu modo, deram consistência à imagem que se ia esboçando. A China, descoberta pelos navegadores lusitanos nos primeiros anos do século XVI, foi-se impondo aos olhos dos escritores ibéricos como um dos mais poderosos reinos asiá-ticos, merecedor da maior admiração e do mais pro-fundo interesse, não só pela sua enorme extensão e pela sua incrível riqueza, mas também pela forma eficiente como conseguira resolver os principais problemas materiais que afectavam qualquer soci-edade policiada. A relação de Galiote Pereira sobre Algumas Coisas Sabidas da China (c. 1553), redigida depois de um curto período de cativeiro em prisões chinesas, transmitia bem o clima de ex-pectativa que estava a ser criado em volta daquela longínqua potência asiática. O conjunto de notícias recolhidas no Oriente por meados do século XVI—não só na relação de Galiote Pereira, mas também em cartas e relatórios de outros viajantes como Gaspar Lopes, Leonel de Sousa, Fernão Mendes Pinto, Pe Melchior Nunes Barreto e Amaro Pereira — caracteriza-se, regra geral, por um tom franca-mente apologético. A realidade chinesa é encarada de uma forma admirativa em extremo, que não en-contra paralelo em qualquer outro reino asiático então frequentado pelos europeus. A China apare-ce aos olhos dos portugueses como uma verdadeira sociedade modelo, pelo impecável funcionamento da administração e do governo, pela rigorosa im-parcialidade da justiça, pela abundância em todo o género de mercadorias, pela elaborada organi-zação das actividades produtivas, pela benevolên-cia e a caridade das instituições estatais, pelo apu-rado ordenamento urbano, e até pela enorme se-veridade dos castigos aplicados aos infractores. Curiosamente, apesar de vários observadores por-tugueses terem chamado a atenção para traços menos positivos da realidade sínica, tais como a corrupção que grassava entre alguns mandarins de grau inferior, a brutalidade dos castigos apli-cados aos criminosos ou a excessiva autoridade de que gozavam os magistrados, os elogios são praticamente generalizados.

A visão positiva da China formulada pelos via-jantes lusitanos com experiência asiática seria logo de seguida retomada e amplificada em todas as grandes obras da literatura portuguesa da expan-são impressas na segunda metade de Quinhentos. Da História do Descobrimento e Conquista da Ín-dia pelos Portugueses de Fernão Lopes de Castanheda (Coimbra, 1551-1561) às três primei-ras Décadas da Ásia de João de Barros (Lisboa, 1552-1564), do Tratado dos Descobrimentos de António Galvão (Lisboa, 1563) aos Colóquios dos Simples e Drogas da Índia de Garcia de Orta (Goa, 1563), da Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel de Damião de Góis (Lisboa, 1566-1567) aos Co-mentários de Afonso Brás de Albuquerque (Lis-boa, 1557), sobretudo na sua segunda e ampliada edição (Lisboa, 1576), as coisas chinesas foram motivo de um autêntico coro de louvores, que, ao mesmo tempo que davam a conhecer o Celeste Império ao público português e europeu, o impu-nham como o único reino asiático capaz de rivali-zar seriamente com a Europa em expansão. Esta visão positiva viria culminar no Tratado em que se Contam Muito por Extenso as Coisas da China de Fr. Gaspar da Cruz (Évora, 1569-1570), extensa monografia onde eram reunidas e sistematizadas todas as notícias que corriam avulsas em Portugal. O missionário dominicano, após uma curta estada no litoral chinês, decidira, por razões que perma-necem algo obscuras, dar forma acabada, e magis-tral, diga-se de passagem, a uma corrente de opi-nião apologética que se vinha desenvolvendo na literatura portuguesa praticamente desde a época dos primeiros contactos com o Celeste Império.

Algumas obras da literatura espanhola da expan-são impressas na segunda metade do século XⅥ re-flectem de igual modo esta atitude de admiração face ao grande reino da China. Os espanhóis ti- nham-se instalado definitivamente nas Filipinas em 1565, depois de nesse ano Fr. Andrés de Urdañeta ter enfim descoberto a rota de torna-viagem para a América. E a partir de Manila, fundada em 1572, começavam a lançar olhares cobiçosos sobre ou-tras regiões extremo-orientais, como a China e o Japão, que até então haviam sido contactadas em exclusivo pela navegação portuguesa. Este interes-se aparece reflectido no Discurso de la Navegación, de Bernardino de Escalante (Sevilha, 1577), que se inspira largamente na monografia pouco antes pro-duzida por Fr. Gaspar da Cruz para redigir um ex-tenso tratado quase exclusivamente dedicado ao Celeste Império, e também na Historia de las Co-sas del Gran Reyno de China, de Fr. Juan González de Mendoza, impressa em Roma em 1585, e que nos quinze anos imediatos iria conhecer nada me-nos de quarenta edições nas mais diversas línguas e cidades europeias.

Esta visão positiva começaria a sofrer alguns ajus-tamentos ainda nos últimos anos do século XVI, gra-ças aos esforços de um pequeno grupo de missio-nários que haviam conseguido entrada em territó-rio chinês. Macau, para além de entreposto mer-cantil firmemente estabelecido, passara também a ser uma base estratégica para os padres da Compa-nhia de Jesus, que tinham a seu cargo a missionação de vastas áreas do Extremo Oriente. Os inacianos, desde a morte do P.e Francisco Xavier na ilha de Sanchoão em 1552, tinham demonstrado um inusi-tado interesse pelas coisas da China, e apareciam mesmo como portadores de um projecto próprio, distinto nos seus métodos e objectivos das aproxi-mações estatais e mercantis. Os padres jesuítas, no seu afã evangélico, haviam mesmo patrocinado várias embaixadas portuguesas a Cantão, todas fra-cassadas, infelizmente. Todavia, depois dos primei-ros falhanços, também a Companhia haveria de aprender as suas lições, optando por uma forma de aproximação mais moderada, que tomava em devi-da conta os condicionalismos impostos pela civili-zação chinesa. Assim, o P.e Alexandre Valignano, visitador jesuíta nas partes do Oriente, delineou uma estratégia mais adaptada às realidades locais, e em 1580 sugeria aos seus confrades a aprendizagem da língua chinesa e a familiarização com os costu-mes chineses. A nova atitude obteria resultados positivos a curto prazo, pois em 1583 já os padres jesuítas residentes na povoação macaense conse-guiam autorização para se estabelecerem em Zhaoqing (Shiu-Hing), importante cidade de Guangdong (província de Cantão). Através de um lento e elaborado processo de aculturação, que pas-sava pela adopção de práticas sociais chinesas e pela aprendizagem da escrita sínica, os jesuítas chefiados pelo P. e Mateus Ricci puderam obter re-novadas informações sobre todos os quadrantes da civilização chinesa, contribuindo assim decisiva-mente para alargar e aprofundar as imagens ibéri-cas, e europeias, do Celeste Império.

Através do entreposto de Macau -- posto de ob-servação privilegiado, que em 1583 possuía já mais de dois mil vizinhos e havia adquirido um estatu-to de relativa autonomia perante o governo cantonense -- os padres da Companhia de Jesus assumiram o papel de informadores oficiosos, ca-nalizando para Portugal um inesgotável manacial de dados factuais sobre a realidade chinesa, que foram regularmente aproveitados pela literatura ul-tramarina portuguesa e espanhola. E, curiosamen-te, apesar de serem corrigidas muitas das defici-entes observações feitas ao longo das décadas an-teriores, o tom geral de admiração manteve-se nos escritos dos padres jesuítas, que descobriam ago-ra novos motivos de admiração na civilização chi-nesa, desde a incomensurável extensão do impé-rio à notável engrenagem política e administrati-va, passando pelos avanços técnicos em determi-nadas áreas produtivas, pela justeza dos costumes ancestrais e pela admirável e generalizada organi-zação do sistema de ensino.

O extenso tratado De Missione Legatorum Iaponensium, da responsabilidade do P.e Duarte de Sande (Macau, 1590), que incluía um largo capítulo sobre a China, parece ter sido a primeira obra impressa onde se incluíam algumas das no-vidades recentemente recolhidas pelo P. e Mateus Ricci e onde se principiava a formar uma nova imagem do Celeste Império, mais documentada e mais rigorosa, mas igualmente positiva. Outras publicações contribuiriam em breve para difun-dir em Portugal e em Espanha esse tipo de ima- gem, muitas delas de origem jesuíta, já que os missionários da Companhia, por um lado, apro-veitavam devidamente o exclusivo dos contactos com a China para aprofundarem os seus conheci-mentos, enquanto, por outro lado, não descuravam o regular envio de notícias para os seus confrades europeus, através de um elaborado e eficiente sis-tema de cartas ânuas.

Para além deste tipo de obras de origem jesuítica, que perseguiam uma estratégia de difusão dos su-cessos missionários, com vista à recolha na Europa de apoios materiais e humanos, outro tipo de escri-tos ibéricos dedicavam uma especial atenção à Chi-na. Quatro exemplos ilustrativos bastarão. Em pri-meiro lugar, especial destaque merece a celebrada Peregrinação (Lisboa, 1614), imenso relato de aventuras que situava muitos dos episódios alegadamente vividos pelo seu autor no interior do Celeste Império. Uma análise cuidada deste monu-mento literário, porém, revela que a obra de Fernão Mendes Pinto, no que à China respeita, era inteira-mente devedora das fontes portuguesas anteriores a 1583, data da morte do conhecido viajante, quase se limitando a uma compilação de trechos redigi-dos por outrem, entretecidos muito embora por um elaborado fio condutor de natureza autobiográfica. Em segundo lugar, uma extensa Relación prepara-da pelo P.e Adriano de las Cortes, que permaneceu manuscrita até aos nossos dias, dava conta de uma acidentada viagem efectuada pelo religioso, em 1625 e 1626, pelas províncias meridionais da Chi-na. Em terceiro lugar, o guarda-mor da Torre do Tombo de Goa, António Bocarro, ao elaborar em 1635 uma relação sistemática sobre as possessões portuguesas no Oriente, conhecida como Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, não se esquecia de incluir uma longa secção sobre o porto de Macau na China. Em quarto lugar, o infatigável Fr. Sebas-tião Manrique, que peregrinou demoradamente por terras e mares asiáticos, atribuía o devido destaque, no seu Itinerario de las Missiones de las Indias Orientales (Roma, 1649), aos principais aspectos da presença portuguesa na China.

Ao longo da centúria de Seiscentos, os autores ibéricos continuam a compilar tratados mais ou menos exaustivos sobre a matéria chinesa, nos quais se recolhem dados circunstanciados sobre a civili-zação sínica e também sobre os (incipientes) pro-gressos da cristianização. Três autores se destacam numa imensa plêiade de noticiaristas, todos eles missionários, uns trabalhando no terreno durante longos anos, em períodos sensivelmente coinciden-tes, outros talvez lamentando não o poder fazer. O P.e Álvaro Semedo, jesuíta da missão chinesa, veria-uma sua relação concluída por volta de 1639 ser impressa duas vezes no curto espaço de dois anos, a primeira vez em Madrid em 1642, a instâncias do erudito Manuel de Faria e Sousa (Imperio de la China & Cultura Evangelica en El por los Religio-sos de la Compañia de Jesus), e a segunda vez em Roma em 1643, em tradução por ele próprio revis-ta (Relatione della Grande Monarchia della Cina). O frade espanhol Domingo Fernández Navarrete, depois de efectuar longas viagens pelo Extremo Oriente, publicaria em Madrid, em 1676, uns proli-xos Tratados Historicos, Politicos, Ethicos y Reli-giosos de la Monarquia de China, onde, apesar de não revelar grandes simpatias pelos portugueses nem pelos jesuítas, apresentaria um extraordinário panorama da realidade chinesa do seu tempo. Quan-to ao P. e Gabriel de Magalhães, também jesuíta em serviço nas missões do Celeste Império, teve uma das suas obras impressa em Paris em 1688, a Nouvelle Relation de la Chine, que fora original-mente preparada em português em 1668. Os traba-lhos destes missionários e viajantes transmitiam um retrato muito denso e muito rigoroso da sociedade chinesa de meados do século XVII, retrato esse que se baseava, no caso dos inacianos, num conheci-mento profundo da língua mandarina, num prolon-gado convívio com chineses de todos os estratos sociais e em extensas viagens pelo interior do Ce-leste Império. A tónica dominante, como não podia deixar de ser, era francamente apologética.

As características positivas da imagem da China que emerge da literatura ibérica quinhentista e seiscentista podem ser explicadas por quatro moti-vos fundamentais. Em primeiro lugar, o ponto de partida do viajante condiciona sempre as observa-ções efectuadas, de modo que os autores portugue-ses e espanhóis, conscientes dos defeitos da sua própria sociedade, estavam particularmente aten- tos aos aspectos da realidade chinesa que pudes-sem suportar um confronto com o mundo europeu. E, nesse sentido, as soluções encontradas pelos chi-neses para resolverem determinados problemas da vida quotidiana não podiam deixar de suscitar ad-miração. Em segundo lugar, a alteridade da civili-zação chinesa -- com os seus espaços descomu-nais, o gigantismo das suas aglomerações urbanas, a densidade da sua população -- era de molde a produzir uma sensação de pequenez no observador europeu, e sobretudo num português, oriundo de um país verdadeiramente miniatural, em termos chineses. Em terceiro lugar, a grande distância que separava a Península Ibérica da China contribuiu, sem dúvida, para o modo entusiástico como foram acolhidas entre nós as notícias respeitantes a esta potência asiática. O distanciamento físico afastava qualquer ameaça potencial, permitindo uma apre-ciação mais tranquila das informações recebidas. Finalmente, em quarto lugar, as limitações concre-tas que afectavam as vivências dos nossos viajan-tes introduzem um elemento de distorção nas ob-servações realizadas. Com efeito, portugueses e espanhóis, antes de 1583, contactaram quase ex-clusivamente com as regiões marítimas da China, por sinal bastante prósperas, e sempre através de intérpretes, uma vez que desconheciam a língua ou dialectos locais. Assim, embora pudessem confiar, até certo ponto, nas suas próprias percepções, fo-ram obrigados a generalizar a partir de uma experi-ência relativamente limitada. Depois da entrada dos padres da Companhia de Jesus em território impe-rial, as barreiras anteriores foram ultrapassadas, uma vez que foi possível ter acesso a um conhecimento mais rigoroso, porque vivencial e linguisticamente informado, pese embora a circunstância de a visão jesuíta também enfermar das suas próprias limita-ções, uma vez que claros intuitos de propaganda missionária perpassavam nas entrelinhas das apo-logias seiscentistas das coisas da China.

Em jeito de balanço global, poderá concluir-se que a China ocupou um lugar privilegiado na lite-ratura ibérica dos séculos XVI e XVII, e sobretudo na portuguesa, tanto pelo peso quantitativo das notíci-as recolhidas, como pela singular relevância que lhes é dada em grande parte da produção manuscri-ta e impressa de cariz ultramarino.

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

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desde a p. 11
até a p.