Antologia Documental

INFORMAÇÃO DA CHINA*

Anónimo

Esta anónima Informação da China, datada de 1548, tem sido atribuída sem grande fundamento ao padre Francisco Xavier (1506-1552). O célebre jesuíta, chegado à Índia em 1542, viajara depois por toda a Ásia marítima, procurando lançar as bases das missões orientais da Companhia de Jesus. Em 1547, ao passar por Malaca a caminho do recém-contactado arquipélago japonês, Xavier entregou a um português seu conhecido um detalhado questionário sobre as coisas da China, numa tentativa de obter assim notícias mais pormenorizadas sobre esse enigmático império. É certo que os nossos mercadores e aventureiros tinham frequentado os portos do litoral chinês quase sem interrupção desde há cerca de três décadas. Porém, ninguém se preocupara até então em compilar notícias que ultrapassassem um nível de observação mais imediato e elementar. Os portugueses inte- ressavam-se sobretudo por questões mercantis ou de marinharia: produtos existentes ou em falta, preços, pesos e medidas, calendários de feiras e mercados, e também portos mais acessíveis, rotas, fundeadouros, ventos e correntes.

A acção inquiridora do padre jesuíta veio despertá-los para a importância do conhecimento mais aprofundado das gentes orientais, desencadeando o aparecimento de um interesse cultural pela China. Mestre Francisco parece ter sido um dos primeiros europeus a procurar obter um novo tipo de informa- ções, não imediatamente utilitárias, sobre a China. A anónima Informação da China apresenta dados até então inéditos sobre determinados aspectos da realidade chinesa, como a orgânica e o conteúdo do sistema de ensino, o estatuto dos letrados, o tipo de escrita, a difusão da tipografia e as condições de existência em território chinês de comunidades estrangeiras. Mesmo assim, algum utilitarismo se detectará neste texto, já que todas as questões nele abordadas se ligavam estreitamente ao projecto missionário jesuíta.

Uma leitura atenta desta relação mostra que o seu processo de composição foi bastante elaborado. Em primeiro lugar, Xavier terá redigido o questionário original, que entregou em mão a algum fidalgo--mercador das suas relações. Este, subsequentemente, procurou responder aos diversos quesitos do jesuíta, recorrendo às suas próprias vivências extremo-orientais, e também aos serviços de um informador chinês, decerto algum habitual parceiro de negócios. O resultado final -- a Informação que hoje conhecemos -- seria depois entregue ao padre Francisco Xavier.

O conhecido historiador Georg Schurhammer atribuiu a autoria desta relação a Afonso Gentil, fidalgo português com grande experiência oriental, que, depois de exercer diversos cargos oficiais em Malaca e nas Molucas, andou pelo Mar do Sul da China entre 1529 e 1533, dedicando-se à mercancia. É uma interessante hipótese de trabalho, que convirá ter presente. Uma cópia da Informação foi incluída logo em 1548 ou 1549 numa compilação de materiais diversos sobre assuntos asiáticos, que teria sido organizada a instâncias de Garcia de Sá, durante o seu breve período de governo na Índia (g. 1548-1549).

Fonte utilizada: CALADO, Adelino de Almeida, Livro que Trata das Cousas da Índia e do Japão, "Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra", (24) 1960, pp. 1-138 (pp. 113-117). Transcrição parcial; o texto foi modernizado.

INFORMAÇÃO DA CHINA, MANDADA POR UM HOMEM A MESTRE FRANCISCO.1

Quanto ao que Vossa Mercê diz, se na terra da Chi-na há estudos onde ensinem mais que a ler e escrever, e se há estudos de leis, medicina ou outras artes, como na nossa pátria,2 [o meu informador chinês] diz que na China há escolas em muitas cidades, onde apren dem os regedores que mandam a terra todas as leis do reino;3e há escolas de aprender [par]a padres,4 que diz que é a entender os livros, que eu lá vi muitos, e os levam à terra de Japão;5 e há aí estudo de aprender a curar todas as enfermidades. E [diz também] que de tudo isto têm grandes escrituras, todas em língua chi-nesa, e que não sabe haver outra leitura nem escritura senão em chinês,6 e diz que esta escritura chinesa se lê desde Champa7até o Meaquo,8 terra firme de Ja- pão, que serão de costa, se não mentem as cartas que os japoneses mostram,9 quinhentas léguas ou mais, e [assim se] verá o que terá [a China] de sertão em qui- nhentas e tantas léguas de costa.10 E diz mais, e eu ouvi muitas vezes dizer a outros muitos chineses, que na China os mais dos livros são imprimidos, e que há muitos imprimidores.11 E já me uns perguntaram pe- los nossos livros, se eram escritos à mão, se em tábu- as, dando sinais da impressão.

Quanto ao que Vossa Mercê diz se são muito estima- dos e se fazem muita honra aos homens de letras e le- trados, e se têm valia e se por suas letras vêm a ser fidalgos e senhores grandes, diz que na China não há outros fidalgos senão os letrados, e o que mais letras sabe é mais honrado no reino e estimado d'el-rei, e que por esta causa toda a gente se lança [a] aprender, assim grandes como pequenos.12 E dizem que é desta manei-ra. Como sabem bem ler e escrever, o moço que há-de aprender que se vai [ter] com um letrado da sua terra, que são os que mandam a terra, e diz: "Eu quero apren-der as leis para ser letrado". Então, este mandarim o manda ensinar, com o tal moço pagar a despesa do co- mer e vestir, porque [tudo] o mais o dá o rei. E se, de- pois de ter idade, sai bom letrado das leis do reino, mandam-no examinar; e se acham que é suficiente, encarregam-no em cargos pequenos; e depois, se o faz bem, em cargos grandes, até que o fazem grande. E tanto pode subir que manda aos outros todos. Estes têm na terra mando para matar13 e na guerra estes são os capitães, e tudo na terra, sobretudo lhes é defeso nas leis o tiranizar. Porque eu fui a Cantão ao Porto Velho, onde paguei os direitos na era de [mil quinhentos e] trinta e três,14 e [a]o mandarim que me veio fazer os direitos eu lhe dava um anel que valeria quarenta cru- zados de um rubi, e outros brincos que lá vão, e [ele] não o quis tomar, mas antes disse que se soubera quem mo aconselhara, o mandara castigar, que os bons mandarins da China não costumavam tomar nada de peita, principalmente aos estrangeiros.15 Estes mandarins não são naturais [da terra onde exercem o seu cargo]: se são chincheus, são regedores de Cantão, e os de Cantão [são regedores] de Liampó,16 e os de Liampó [são regedores] de Chincheu.17 Assim são tro- cados, [e] por isso são muito crus e fazem muitas justi- ças e são muito justiçosos. Estes [mandarins] não têm renda nenhuma própria, tudo é acostamento que lhes el-rei paga cada um ano. A mim me disseram que não havia, na China toda, outro senhor que tivesse juro18 senão o próprio rei dela.19

[....]

Quanto ao que diz [Vossa Mercê] se na terra da China, dentro no sertão, se há alguma gente que não seja chinesa e que se estão sobre si,20 diz [o meu informador] que ele viu por muitas vezes na terra de Pequim21 muitos povos de gente que são como chi- neses, [mas] que não comem porco e que toda a outra carne comem, e que o que comem é morto por suas mãos, degolado. É gente que não são muito conversáveis com eles, e diz que lhe parece que são todos fanados, que ele viu os que têm cargo do seu templo, que são fanados.22 Diz que estes guardam um dia [de descanso] como os mouros, no qual dia não têm nenhum trabalho, nem homens nem mulheres, e que no tal dia vão todos [os] homens a um templo que têm, onde têm ídolos diferenciados dos [ídolos dos] chineses, e que quando vão ao templo se vestem os homens de vestiduras grandes, com toucas na cabeça e calções compridos, e entram no templo e se põem de joelhos e dão muitas cabeçadas. E [diz] que [a]os outros dias andam vestidos como os próprios chine- ses, com o mesmo cabelo, e [que] têm fala sobre si,23 que os chineses não entendem. Eu lhe perguntei se esta gente tinha rei; ele me disse que sim, que nas costas de Pequim, detrás de uma serra, era a terra des- ta gente e que lá têm o seu rei, e que, por a terra ser pequena, se passaram à China, e que el-rei da China faz dum destes, o que é mais cavaleiro, seu capitão para o suster em paz e em direito. Diz [o meu informador] que [estes homens] são grandes frecheiros e que andam todos a cavalo, e que é a principal gente que el-rei tem de peleja.24 [Diz que] é gente que es- creve mouro,25 que ele foi a Sião e que levava letra desta gente, e que os mouros de Sião a leram.26 E diz que é gente branca e que trazem barbas cortadas à maneira destes guzerates,27 [e] que esta gente não costuma [ter] mais que uma mulher e muitas escravas e mancebas. E diz que não ouviu, nem viu, nem leu que houvesse outras gentes estrangeiras na China, nem que confinassem com ela.

Mandarim em audiência.

Gravura espanhola do século XVII, in Cortes, Adriano de Ias, Viaje de Ia China, edição de Beatriz Moncó, Madrid, Alianzá, 1991, p. 118.

Mandarim a caminho da audiência.

Gravura espanhola do século XVII, in Cortes, Adriano de las, Viaje de la China edição de Beatriz Moncó, Madrid, Alianza, 1991, p. 142.

NOTAS

* Ms., Goa, 1548.

1 Isto é, padre Francisco Xavier.

2 Os jesuítas desejavam saber se o sistema de ensino superior chinês teria algum paralelo com a estrutura em vigor nas uni- versidades europeias. Nos estabelecimentos de ensino supe- rior chineses estudava-se sucessivamente política, explica- ção de livros antigos, moral e filosofia.

3 Por toda a China existiam numerosas escolas oficiais e pri- vadas, onde os estudantes se preparavam para os rigorosos exames estatais, que garantiam entrada na função pública.

4 Tratar-se-ia certamente de escolas monásticas budistas ou tauistas.

5 O redactor desta Informação, segundo se deduz, tinha anteri- ormente visitado o Japão.

6 A escrita chinesa era utilizada em todo o Celeste Império, servindo ainda de meio de comunicação em vastas áreas circundantes, e nomeadamente no Japão e no norte da Indochina.

7 Champa era um antigo reino indochinês, situado no território do actual Vietname.

8 Miaco era a antiga capital imperial japonesa, actual Quioto.

9 Curiosa referência à cartografia japonesa, que desde cedo terá chegado ao conhecimento dos nossos navegadores.

10 A desmesurada extensão da China foi um dos tópicos mais explorados na literatura quinhentista.

11 A tipografia com caracteres móveis era antiquíssima na Chi- na, utilizando-se ainda, desde tempos bastante recuados, pro- cessos de impressão xilográficos.

12 A referência ao papel dos letrados na sociedade chinesa do tempo dos Ming está basicamente correcta, já que o funcio- nalismo público era recrutado entre os homens de letras, atra- vés de um elaborado sistema de exames periódicos. Os jesu ítas, como parece óbvio, pretendiam encontrar na China al-gum termo de comparação para o estatuto de que eles própri- os gozavam na sociedade europeia.

13 A pena capital, ao contrário do que afirma o nosso autor, tinha de ser confirmada pelo poder central.

14 Aparentemente, o autor desta Informação teria sido um dos primeiros portugueses a visitar a região de Cantão depois dos violentos confrontos sino-portugueses de 1521 -1522. As car- tas dos cativos de Cantão, Cristóvão Vieira e Vasco Calvo, datadas de 1534-1536, confirmam a realização de viagens portuguesas ao litoral cantonense em 1533 e 1534 (cf. supra, pp. 32 - 35).

15 O tema da honestidade dos mandarins também é muito glo-s ado nos textos portugueses sobre a China, divididindo-se as opiniões dos distintos autores, inspirados, segundo parece ve- rosímil, em diferentes vivências da realidade chinesa.

16 Esta é uma das mais antigas referências a "Liampó", termo que aqui designa a região litoral da província de Chequião. O mesmo nome identificava um célebre estabelecimento por- tuguês situado nas proximidades da cidade de Nimpó (Ningbo), que prosperou entre cerca de 1542 e 1549, altura em que foi violentamente destruído pelas autoridades impe- riais.

17 No original "Chymcheo". Este topónimo era utilizado pelos portugueses para designar as regiões litorais da província de Fuquiém.

18 Isto é, direito hereditário.

19 Na China desta época, com efeito, não existia uma nobreza hereditária de tipo europeu, já que todos os cargos mandarinais influentes, e que implicavam prerrogativas legais e riquezas materiais, tinham de ser sancionados pela burocracia imperi- al. Apenas o título imperial era hereditário, não sendo, contu- do, obrigatoriamente transmitido ao primogénito.

20 Os jesuítas pretendiam apurar se lhes seria permitido, en- quanto comunidade de estrangeiros, viverem livremente em território chinês. Por aqui perpassa um claro intuito missio- nário.

21 Original: "Poquym", forma que é sistematicamente usada na Informação.

22 Isto é, circuncisados. Este inesperado pormenor permitira determinar se na China existiam comunidades de muçulma- nos, os tradicionais oponentes dos portugueses.

23 Ou seja, têm a sua própria língua.

24 Tratar-se-ia certamente de tártaros.

25 Referência provável à escrita mongólica, perfeitamente dis- tinta do chinês.

26 O informador chinês do nosso autor parece ser algum mer- cador com experiência de viagens pelo Sueste Asiático. É pouco provável que os siameses conseguissem ler escrita mongólica; aqui terá havido, porventura, algum lapso do au- tor ou do copista.

27 Os guzerates eram os habitantes de Cambaia. Esta observa- ção leva a supor que a Informação teria sido escrita na Índia.

desde a p. 37
até a p.