Antologia Documental

RELAÇÃO DAS COISAS DA CHINA*

Juan Bautista Román

Juan Bautista Román era feitor da Fazenda real nas Filipinas e foi enviado a Macau em 1584, para resgatar uma nau espanhola da carreira de Acapulco, que, após uma revolta entre a tripulação, procurara refúgio no estabelecimento português. A situação foi resolvida com mão-de-ferro, sendo os principais culpados sumariamente executados. Entretanto, o feitor parece ter aproveitado a visita à Cida-de do Nome de Deus para tentar obter dos mandarins de Cantão autorização para o estabelecimento de um entreposto espanhol na costa chinesa. O projecto não teve sucesso, de maneira que Juan Bautista abandonou Macau em finais do mesmo ano.

Durante a estada na povoação portuguesa, porém, teve oportunidade de trocar correspondência com o padre jesuíta Mateus Ricci, que no ano anterior se estabelecera em Zhaoqing, no interior da província de Guangdong, diligenciando, simultaneamente, no sentido de obter informações sobre o Celeste Império. Pôde assim preparar uma extensa Relação sobre as coisas chinesas, que logo despachou para Espanha, dando conta das imensas riquezas do Celeste Império e incitando Filipe II a empreender a sua conquista, que apresenta como empresa facilmente exequível. O relatório do feitor real inclui ainda uma cópia de uma carta enviada da China para Macau pelo P.e Mateus Ricci. A Relação de Juan Bautista Román, que abaixo se apresenta, nunca foi traduzida para português.

Fonte utilizada: ROMÁN, Juan Bautista, Relación de Juan Bautista Román, in "Archivo General de India", Sevilha, Filipinas, 29 (manuscrito). Transcrição parcial. O texto foi traduzido do castelhano, acres-centando-se entre parênteses rectos algumas palavras que pretendem esclarecer o sentido de passagens mais obscuras.

RELAÇÃO DE JUAN BAUTISTA ROMÁN.

As armadas que o rei da China tem para guarda destas costas são uma das suas maiores grandezas, porque, sem terem guerra com ninguém, apenas para demonstração de autoridade e bom governo, está um provedor a que chamam aitão1 numa ilha aqui próxima a que chamam Lantao,2 o qual não se ocu-pa de nada mais senão de lançar navios à água, de um estaleiro e arsenal provido de tudo o que é ne-cessário, porque na ilha há madeira abundantíssima e de outras partes trazem os demais materiais. Os navios principais são tão altos e tão largos e capa-zes como as naus,3 ornados4 com muitas câmaras e salas douradas, em parte de pincel e molduras, e o que não é dourado tem um verniz transparente como um espelho, por dentro e por fora do navio. Esme-ram-se particularmente nas capitânias e navios onde andam grandes personagens, dos quais, assim com doutros menores, trazem sempre mais de duzentos e cinquenta de armada na jurisdição desta provín-cia de Cantão5 até às proximidades de Chincheu,6 que é outro distrito, onde têm outras armadas para a respectiva defesa. Ao general chamam chumpim,7 e é um cargo de grande poderio e autoridade, ainda que inferior ao tutão. 8 Traz sempre muita guarda e grande aparato de charamelas, flautas e atabales a seu modo, que para o nosso é muito dissonante.

Todo este aparato de navios e armada, bem averi-guado, não é mais que fumaça, como se costuma dizer, pois [os navios] são fragilíssimos, cuidando [os chineses] apenas de decorações e fanfarronices, sendo na verdade de pouca substância, pois não se atrevem a sair com eles três léguas para o mar. Nada mais fazem que percorrer a costa em tempo de calmaria, e mal sentem o vento logo ancoram, sem qualquer perigo, por ser tudo limpo e raso, e os na-vios chatos. A artilharia que usam são alguns esmeris9 de ferro e poucos, e nenhum de brocal,10 com ruim pólvora; e não os têm todos [operacionais], usando-os mais para disparar sal-vas do que para combater. Têm também alguns arcabuzes mal feitos, curtos, de muita munição e pouco ferro, ao qual, a meu parecer, resistiria qual-quer corselete11 ordinário, tanto mais que eles não sabem atirar bem. As demais armas são piques fei tos de canas e de outras varas, umas com ferro, ou-tras com as pontas, alfanges curtos e pesados, e al-guns capacetes de estanho e outros de ferro.

Quando topam com algum corsário, costumam cercá-lo com cem navios, deitando-lhe de barlaven-to muita cal peneirada, para cegar o inimigo, e como são muitos, conseguem por fim dominá-lo. Esta é uma das melhores tácticas de combate que conhe-cem. Os corsários são normalmente japoneses ou mesmo chineses alevantados. E se alguns navios desta armada se encontram com algum naviozito de paz, seja da terra, seja japonês ou português, rou-bam-no e queimam-no, matando a tripulação e jo-gando-a ao mar, de modo a não deixarem quais-quer vestígios. Fazem isto mesmo que o dito navio traga patentes e salvo-condutos do tutão, 12 mas sem conhecimento deste ou do seu general, pois se ele vem a saber o que se passou, castiga-los-á muito bem.

Quando cheguei à China, numa boa e bem arma-da fragata, chegaram-se a nós alguns dos infinitos navios que andavam pela costa, para nos identifi-carem. Mas nenhum deles nos incomodou, até sur-girmos junto de Macau, quando um capitãozeco da guarda de Cantão me abordou com uma patente que trazia engrudada numa tábua, como preçário de uma estalagem, pedindo-me o nome para avisar o chinfu13 que cobra os direitos régios. Distribuí al-guns reais por ele e pelos seus soldados, para entrar na terra com pé direito.

É uma vergonha falar do porte destes soldados da China. Há já alguns dias que [os soldados] ti-nham brigado contra outros chineses que traziam mantimentos à terra [de Macau], escavacando-os à paulada. Estes queixaram-se ao mandarim que governa Macau, o qual prendeu quarenta dos sol-dados, logo os mandando açoitar, e eu vi-os sair chorando como crianças. É gente muito vil, de pouco ânimo, desarmados, pícaros, e não há que ter medo de milhares deles. Afinal, que milícia pode haver em terra que tem a soldadesca por es-tado infame, sendo todos os outros escravos? Por certo nenhuma. Muito mais animosos são os nos-sos índios das Filipinas.

Todas as cidades e vilas são cercadas de redutos de pedra, sendo igualmente muito vigiadas por causa dos ladrões, não só nas muralhas e nas portas, mas também nas ruas, as quais se vigiam a si próprias, fechando-se durante a noite e mantendo sentinelas. Todos os moradores do bairro são obrigados a ser-vir de sentinelas, sendo castigados com rigor se adormecem ou se se descuidam. As muralhas, con-tudo, não têm proporção geométrica, nem traveja-mentos, nem casamatas, nem fossos, nem artilha-ria.

Os chineses não podem ter quaisquer armas em casa, com excepção destes soldados miseráveis, mas existem armazéns públicos e do rei, com grande soma de lanças, espadas, alabardas [e] capacetes, que se guardam para as necessidades. Há muitos cavalos, dos pequenos, mas apenas a gente do povo os utiliza para cavalgar, pois os mandarins são vul-garmente transportados em cadeiras, aos ombros de lacaios. Estas cadeiras são muito douradas e cober-tas, por causa do sol e da água. Não usam freio [nos cavalos], mas antes um barbicacho. Cavalgam meio à gineta,14 com pouca galhardia. Enfim, não têm milícia de cavalo, embora digam que na província de Pequim há cavalos grandes. Os reis [da China] costumavam viver em Nanquim, mas mudaram-se para Pequim, por aí terem fronteira com os tárta-ros, com quem tiveram guerra.15

Consideram a nação dos chincheus16 a mais beli-cosa, e haverá poucos anos que estes se revoltaram e levantaram rei.17 Mas o tutão daquela província entreteve-os em tão hábeis conversações que con-seguiu segurá-los, e fez depois justiça rigorosa em muitos deles, invocando as ordenações [imperiais] que proíbem os chineses de saírem do reino, tanto por mar como por terra. Porém, [as autoridades] costumam dissimular com estes chincheus para os manter quietos, permitindo-lhes que naveguem e contratem livremente, excepto com japoneses, que são públicos inimigos. E assim vão às Filipinas, a Java, ao Sião, a Patane, ao Camboja, a Joor,18 a Samatra e a outras partes, carregados de sedas, pa-nos de algodão, louça e outras muitas mercadorias da China, [em troca das quais] trazem prata, pimen-ta, cravo [e] brasil.19

As mulheres são muito formosas, brancas como espanholas e de cabelos negros, e naturalmente muito honestas. Têm por grande gentileza terem os pés pequenos. Este [costume] tornou-se obrigató-rio, de modo que, às filhas dos nobres, quando nas-cem, cortam-lhes um nervo nas plantas dos pés e enfaixam-lhes os pés, para que não cresçam, e por isso andam muito devagar e pouco, não sendo tão caminheiras como as nossas [mulheres]. O rei tem, como diz o padre [Mateus Ricci na sua carta],20 trin-ta e seis mulheres, e quando quer ter conversação com uma delas, manda redigir um auto com teste-munhas, registando dia, mês e ano, para garantia de fidelidade e continuidade na estirpe real, muito embora todo o serviço da casa seja feito por eunucos. A recompensa que dão a estas mulheres, quando morre o rei, é pô-las a leilão, não para serem escra-vas, mas para que o comprador se case com elas, e levam-nas cobertas, para que ninguém saiba a fei-ção do corpo daquela que compra, nem se é formo-sa ou velha. [Neste leilão] fazem-se grandes lan-ces, tanto pela qualidade [das mulheres], como pelo facto de algumas levarem consigo muitas jóias e dinheiro que receberam do rei, de forma que valem muito mais do que aquilo que custam aos novos maridos.

Entre outros vícios enormes, estes chineses são manchados pelo [vício] nefando,21 que se não cas-tiga entre eles, antes tendo todos estes mandarins muitos [homens] a servi-los, o que apreciam em extremo, e tal como há mancebia de mulheres, tam-bém existe mancebia destes miseráveis.

[Os chineses] são afeiçoados à música, da qual têm livros e arte, mas [a mesma é] muito distinta da nossa, pois soa-nos mal. Têm papel delgado e liso, que fazem de algodão. O uso da tipografia é entre eles muito antigo e talvez a Europa tenha tomado tal invenção desta terra.22

Existem muitas minas de prata nestas colinas em volta de Macau e todas estas ilhas de Cantão têm veios conhecidos. O rei não permite a sua explora-ção, para que as pessoas não esqueçam a agricultu-ra e o comércio. E numa [mina] que os chineses começaram a lavrar, colocou uma cerca e destacou para lá uma guarnição, com um capitão de muita confiança, para que não se consinta a extracção de prata dela. A prata que vem de fora é muita, como na relação [do padre Mateus Ricci] foi referido, e em cada cidade tem o rei uma fazenda real e res- pectivo tesoureiro, para cobrar as rendas do reino, sendo essas rendas guardadas para as suas próprias despesas.

O rei tem 150 milhões de renda, e ainda que as coisas admiráveis não se devam contar, direi o que disto pude apurar. Primeiro, a terra é muita, pois a costa tem cerca de quatrocentas léguas de com-primento, sendo este um dos lados do quadrado; a muralha que divide a Tartária da China, que é ou-tro [dos lados], é ainda mais extensa; assim, os outros dois lados devem ser tão extensos como estes, embora nada saibamos de concreto. Toda esta terra é muito fértil, como ficou dito, pois não se desperdiça um único palmo de terra. Por outro lado, ninguém pode possuir campos ou solares, já que tudo pertence ao rei, a quem pagam rendas, ou talvez feudo. Também não há senhores de vassalos. Há igrejas com renda. Não há hospitais, nem mosteiros, nem abadias.23 O rei de tudo rece-be dízimos, assim como um tributo geral, que lhe pagam por pessoas, solares e casas. Detem os almoxarifados e os portos fluviais. Detem o sal, que explora por conta própria, daí tirando grandes rendas. Deste modo, não é de admirar que seja rico, especialmente por [em sua terra] não haver pes-tes, fomes ou guerras. Desta terra nunca sai di-nheiro, antes sempre entra. Dizem ainda que o rei gasta cem milhões em oficiais de governo e de justiça, e também nas armadas e na reparação das muralhas, e na sua casa e nas fronteiras com os tártaros, e em mercês que faz, particularmente aos colaus24 do seu conselho, e a seus parentes e mu-lheres. Todos os restantes [rendimentos] são guar-dados com os outros tesouros, para quaisquer ne-cessidades que possam ocorrer.

Uma das coisas que o padre [Ricci] não referiu [na sua carta] foi o almíscar, que apenas existe na China, de onde é exportado para todo o mundo, e em tanta quantidade que não há mercador que não tenha seis ou oito quintais dele. Dizem que provem de uns animaizitos semelhantes a furões, que são apanhados em armadilhas, mortos à paulada e pos-tos ao sol abertos; depois do sangue coalhar, dão origem àquele unguento perfumado.25

Os portugueses que residem aqui em Macau es-tão como vassalos do rei da China, e como tais dão obediência e reconhecimento a Cantão, pagando cada ano quinhentos taéis de prata de tributo, que são outros tantos ducados de Castela; e dos navios que carregam, pagam de acordo com a capacidade e medida do navio, e não pelas mercadorias, de for-ma que alguns levam seis ou sete mil ducados, pa-gando em Cantão apenas a dois por cento. Quase todos estão casados com mulheres chinesas, que não são filhas de nobres, mas sim escravas e gente sol-ta. [Os mandarins] tratam-nos mal, pois nas audi-ências negoceiam de joelhos, sendo por vezes obri-gados a esperar seis horas ao sol, com a cabeça des-tapada. Os litígios civis ou criminais entre os pró-prios portugueses são resolvidos pelo capitão-mor e pelo ouvidor; mas aqueles que envolvem chine-ses são resolvidos pelo mandarim e juízes de Anção26 e de Cantão, sendo-lhes muitas vezes os portugueses entregues, para serem açoitados e cas-tigados publicamente. [Os mandarins] têm agora preso o capitão António de Carvalho, por certas quantias que se devem em Macau a uns mercado-res chineses. E a prisão é um calabouço e cárcere onde não vêem sol nem lua, cheio de sujidades e horrores, porque [os chineses] são crudelíssimos nisto de prisões e castigos judiciais.

Com menos de cinco mil espanhóis poderá Sua Majestade pacificar estes reinos e ser senhor deles, pelo menos dos lugares marítimos, que em todo o mundo são a parte mais substancial dos senhorios, e com meia dúzia de galeões, juntamente com ou-tra meia dúzia de galés, dominaria as costas da China e províncias adjacentes, assim como todo este Mar do Sul e Arquipélago, da China às Molucas, pela costa corrida e pelas ilhas.

Podem-se sacar do Japão, por meio dos padres da Companhia [de Jesus], seis ou sete mil solda-dos, gente cristã e belicosíssima, mais temida dos chineses que a morte. E das Filipinas podem le-var-se três a quatro mil índios da nação dos "pin-tados", a que chamam visaias,27 que são muito animosos quando lutam a nosso lado, sendo mui-to melhores soldados que os chineses, e poderiam servir de gastadores. Mas a vitória não depende da multidão do exército, mas antes do céu, de onde nos há-de vir a força.28

Feita em Macau, a 28 de Setembro de 1584.

Fabrico de porcelana, in CRUZ, Gaspar da, Tratado em que se Contam Muito por Extenso as Coisas da China, Macau, Museu Marítimo, Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento, 1996.

NOTAS

1 Original: "haytán". Trata-se do haidao, comandante da guar-da costeira.

2 "Lantao" tem sido identificada com a ilha de Daiyushan.

3 O autor referia-se aos juncos chineses, que podiam atingir proporções verdadeiramente gigantescas.

4 Leitura conjectural.

5 Isto é, Guangdong.

6 Isto é, Fuquiém.

7 Chumpim (chinês zongbing): comandante do exército pro-vincial.

8 Tutão (chinês dutang): vice-rei ou governador geral de uma província.

9 O esmeril é uma antiga peça de artilharia.

10 Anel que reforça a boca das peças de artilharia. Trata-se de uma leitura conjectural.

11 Corselete: peça de armadura que protege o peito.

12 Tutão (dutang): vice-rei ou governador geral de uma pro-víncia.

13 "Chinfu" ou chifu (chinês zhifu): prefeito.

14 Isto é, com estribos curtos.

15 A capital imperial chinesa foi transferida de Nanquim para Pequim por volta de 1420, precisamente por causa da amea-ça tártara que se fazia sentir nas fronteiras setentrionais.

16 Os chincheus, em princípio, serão os habitantes da provín-cia de Fuquiém.

17 Esta notícia não tem fundamento. Pode tratar-se de uma re-ferência confusa à revolta da guarnição chinesa ocorrida em 1564, que acabou por ser dominada pelos mandarins de Can-tão com a ajuda dos portugueses de Macau.

18 Patani e Joor eram sultanatos da extremidade meridional da Península Malaia.

19 Os mercadores fuquinenses, de facto, mantinham uma den-sa rede mercantil em todo o Mar do Sul da China.

20 O autor refere-se à carta do padre Ricci que transcreveu no início da sua Relação.

21 O autor refere-se à sodomia, que era duramente penalizada nos reinos ibéricos.

22 Esta hipótese é muito curiosa, pois ainda hoje os historiado-res discutem se a imprensa chinesa esteve na origem da "in-venção" da mesma arte na Europa.

23 Juan Bautista procura analogias com a realidade europeia; mas nem todas as suas observações estão correctas.

24 Colau (chinês gelao): grande secretário. Os seis colaus pre-sidiam aos "Seis Tribunais", organismos supremos do gover-no chinês.

25 O gato almiscarado, que produz o almíscar, é originário dos altos planaltos do Tibete.

26 Xiangshan.

27 Os "visaias" eram uma das principais nações indígenas das Filipinas.

28 Os espanhóis, por estes anos, alimentaram grandiosos pro-jectos de conquista espiritual e territorial no Extremo Ori-ente. Com efeito, Filipe II recebeu regularmente das Fili-pinas memoriais apresentando planos para a conquista de variadíssimas regiões asiáticas, desde o Camboja ao Ja-pão, passando pela China. Estes sonhos imperiais, moti-vados pela fama das riquezas que aí se poderiam encontrar, baseavam-se num óbvio desconhecimento do terreno.

* Ms., Macau, 1584.

desde a p. 103
até a p.