Antologia Documental

VIAGEM DA CHINA*

P.e Adriano de las Cortes

Adriano de las Cortes, religioso espanhol (1578-1629) chegou às Filipinas em 1605, desempenhando a partir de então funções missionárias em vários pontos do arquipélago, que estava a ser sistematicamente ocupado por Espanha. Em 1625 largava de Manila com destino ao estabele-cimento português de Macau, onde pretendia resolver algumas questões do foro eclesiástico. Mas a viagem foi interrompida por uma violenta tempestade, que provocou o naufrágio da nau espanhola ao largo do litoral da província de Guangdong. Os sobreviventes, entre os quais se encontava o padre jesuíta, foram aprisionados pelas autoridades chinesas, sendo durante cerca de um ano trans-feridos de localidade em localidade, até finalmente chegarem a Cantão. O padre Adriano e alguns companheiros de infortúnio foram então resgatados por intermédio dos portugueses de Macau, cida-de onde chegavam em Fevereiro de 1626, para, cerca de dois meses mais tarde, de novo embarcarem rumo a Manila.

Durante esta viagem por território chinês, o missionário jesuíta conviveu intimamente com gente de vários estratos sociais, observando de perto muitos aspectos da vida quotidiana chinesa. Como resulta-do destas vivências, conseguiu redigir um extenso manuscrito, onde complementava o relato das suas andanças, com uma rigorosa e bem informada descrição do Celeste Império. A Viaje de China do jesuíta, para além de encerrar preciosas notícias sobre numerosos aspectos da realidade chinesa até então pouco divulgados, continha ainda muitos desenhos originais, preparados pelo autor com a ajuda de um informador chinês. O padre Adriano de las Cortes viria a falecer pouco depois nas Filipinas, deixando o seu manuscrito inédito. A obra teve uma restrita circulação, pois permaneceu encerrada em arquivos espanhóis até à publicação de uma recentíssima edição crítica.

Fonte utilizada: CORTES, Adriano de las, Padre, Viaje de la China, edição de Beatriz Moncó Rebollo, Madrid, Alianza, 1991, pp. 270-285. Tradução parcial do castelhano. Acrescentam-se algumas pala-vras entre parênteses rectos com o objectivo de facilitar a leitura.

Chineses comendo. Gravura espanhola do século xvII, in CORTES, Adriano de las, Viaje de la China, edição de Beatriz Moncó, Madrid, Alianza, 1991, p. 202.

CAPÍTULO 25

VÁRIOS SUCESSOS POR QUE PASSAM

OS CATIVOS QUE FICARAM NO REINO

DE CAUCHIU[FU],1 E DILIGÊNCIAS

QUE NAS CIDADES DE CHAO-CHING2

E DE CANTÃO SE FAZEM PARA

QUE SEJAM LIBERTADOS, E COMO

OS DOZE PRIMEIROS QUE FORAM

A CANTÃO PARTIRAM PARA A CIDADE

DE MACAU3 JÁ LIVRES

Aos vinte e três do mês de Junho [de 1625], foi Nosso Senhor servido de nos consolar com segun-das novas e cartas, depois da de cinco de Março, a que já acima fizemos referência, sendo esta recebi-da em três de Maio, escritas em Cantão, e a seis do mesmo mês de Junho.4 Entre elas vinham duas para mim, do padre procurador do Japão, o padre João Rodrigues,5 e do padre procurador da China, Si-mão da Cunha,6 membros da Companhia [de Je-sus], os quais nos enviavam, a mim e ao padre Miguel Matsuda,7 pelos chineses portadores [das cartas], algum vestuário, para socorrer a necessida-de que neste particular aspecto sofríamos, e tam-bém 20 pesos para outras necessidades, e para re-partir pelos demais [cativos], juntamente com uma esmola de 14 pesos, recolhida entre alguns dos mercadores portugueses que estavam na cidade de Cantão. Ainda que o dinheiro destes socorros, um e outro, fosse pouco, tanto pelo risco em enviá-lo, como por se esperar que muito em breve se alcan-çaria licença do tutão8 para nos libertarem com tudo o que fosse necessário para o caminho, os chineses que o traziam apropriaram-se da metade, ou mes-mo mais, com mentiras e embustes, como se lhes importasse mais esta paga do que o bem que mais tarde lhes poderíamos fazer.

É curioso como não conseguem soltar da mão a prata que recebem por qualquer meio, ficando to-dos os chineses verdadeiramente ofuscados com a vista da mesma, de uma forma que não se encontra em nenhuma outra nação. A um dos nossos portu-gueses,9 perguntou um dos mandarins se era ver-dade que nos haviam trazido prata de Macau, por-que (acrescentou) os soldados que nos dão de co-mer tinham dito aos mandarins de Chauchiufu que nô-la tinham trazido; e caso a tivéssemos, deveria-mos comer dela e avisá-los, para que deixassem de nos sustentar. Respondeu-lhe o nosso português que sim, [que tínhamos prata,] mas que era pouca para tantos, pois o portador chinês tinha ficado com gran-de parte dela. Retorquiu o mandarim: "Até me es-panta terem-vos dado alguma [prata], pois entre nós dificilmente conseguimos recuperar a prata que ti-vermos de passar para as mãos de outro chinês, ain-da que tenha de fugir e de desaparecer para sem-pre; e isto ainda que seja de filho para pai. Pois se este vos deu alguma, não deveria ser senão chinês cristão de Macau".

Avisaram-me [de Macau] que tinham recebido algumas cartas, minhas e de outros dos meus com-panheiros, depois de terem sido levantadas as bar-reiras que havia pelos caminhos, que serviam a ou-tros intentos do tutão e para negócios que com cer-tos mercadores chincheus10 tinha, mas que também impediam a passagem das nossas cartas para Ma-cau e de Macau para nós.

Soube-se também, com algum pesar, que a sobredita [troca de cartas] tinha sido impedida por a cidade de Macau ter estado cercada por mar e por terra, para que nela não entrassem mantimentos, e muito apertada pelo tutão e pelos seus chineses. As coisas tinham-se finalmente acalmado, estabelecen-do-se de novo um clima de paz e de harmonia com os chineses, depois da cidade ter derrubado o lanço de muro que caía para a parte da terra, cumprindo assim ordens do rei da China, que havia recebido acusações antigas, e muito falsas, contra a cidade de Macau.11 Sucedeu isto na mesma altura da nos-sa perdição, quando dela se veio a saber em Cantão e em Macau.

Em seguida, o acima citado padre João Rodrigues e uns fidalgos cidadãos da cidade de Macau esta-vam em Cantão, de caminho para a cidade de Chao-ching, [onde haviam sido] chamados pelo tutão para assinarem as pazes e saudarem o dito tutão em nome de Sua Majestade e da cidade de Macau. Pretendi-am ainda obter dele uma chapa, que logo nos envi-ariam, com autorização para que fôssemos liberta-dos do reino12 de Chauchiufu e levados a Cantão.

O certo é que, quando chegou a primeira carta que nos escreveu Dom Francisco de Castel-bran-co,13 oito dias após a nossa perda na cidade de Toio, 14 como acima disse, foi verdadeira providên-cia de Nosso Senhor terem chegado ao mesmo tem-po, e no mesmo dia, a Cantão, pouco antes do cer-co de Macau, o dito padre João Rodrigues e outros fidalgos de Macau, que iam tratar de negócios [da dita cidade] com o tutão, aos quais deram as nossas [cartas]. Recebendo estas notícias, logo apresenta-ram petições ao tutão, tentando livrar-nos da morte a que estaríamos condenados como ladrões, ao que os do reino de Chauchiufu objectaram [...].

O trecho que nos interessa da carta do padre João Rodrigues reza assim: "Foi providência de Nosso Senhor chegarmos nós a esta cidade de Cantão na altura em que ali chegou a primeira carta [dos náu-fragos], para assim podermos apresentar petições ao tutão, para que os desse navio perdido fossem conhecidos como gente nossa e os mandassem vir, porque os dessa terra [de Chaozhou] tinham deter-minado matá-los a todos como ladrões, para escon-derem os roubos [que na fazenda deles haviam co-metido]. O tutão prometeu-nos que expeditamente os faria vir para cá. Rogo a Deus que assim seja, etc."

Deve aqui notar-se que se, por um lado, as pen-dências entre os chineses e a cidade de Macau a respeito dos muros nos fizeram algum dano ou cau-saram alguma dilação à nossa total liberdade, por outro lado, se não fossem elas, o dito padre João Rodrigues e os demais fidalgos seus companheiros não chegariam em altura tão propícia e convenien-te a Cantão, nem ali estaria qualquer outro portu-guês, por não ser época de feira. Do mesmo modo, tão-pouco teria tido efeito a chegada do chinês com o [nosso] aviso, pois se ele tivesse passado a Ma-cau, quando de lá se procurasse remédio para a nossa situação, já o vice-rei Tavia15 teria em Cantão ne-gociado a nossa morte com as suas sinistras infor-mações, voltando depois ao reino [de Chaozhou] para nô-la aplicar. Assim, pode bem o padre João Rodrigues dizer mais claramente que foi providên-cia de Nosso Senhor que a cidade de Macau tivesse disputas com os chineses e que nós chegássemos a Cantão a tempo de ter bom efeito a primeira carta.

Outro ponto da carta do padre Simão da Cunha toca também em parte, e tacitamente, o citado pon-to. Dizia, pois, assim: "O cerco e guerra dos chine-ses à nossa cidade de Macau foram o motivo da questão que eles tiveram com Vossa Reverência e todos esses senhores naufragados, a quem maltra-taram. E o motivo principal que mais agudizou a questão foi a prata que vinha no navio,16 porque os chineses, quando vêem prata, ficam aferrados a ela, como o ferro dando na pedra, sem possibilidades de fazerem qualquer bem, antes dispostos e apare-lhados para fazer todo o mal, para arrecadarem a prata."

O que em Panchiuso17 nos sucedeu com a chega-da do chinês que trouxe as sobreditas cartas, foi que, não conseguindo nós falar com ele sem que o no-tassem outros chineses que nos vigiavam com todo o cuidado, logo correu voz que connosco falava um chinês estrangeiro, com o que se alvoroçaram [os da cidade] e aumentaram as suspeitas que de nós tinham. E tendo-nos o dito chinês, pouco depois, entregue o vestuário [que para nós trazia], acaba-ram por reconhecê-lo, enchendo-se a casa e a rua de chineses alvoroçados. Entretanto, sem eu o sa-ber, deram com o chinês que tinha trazido [o vestu-ário], logo o levando a casa do mandarim.

Eu, para sossegar o alvoroço da minha rua, tomei por remédio logo vestir as vestes novas, à charachina, 18 dirigindo-me depois a casa do mandarim, para lhe relatar o que se havia passado. Chegando à porta de sua casa, já ali encontrei o chinês, o qual, chegando-se a mim, me disse que o mandarim era seu parente e que ele tinha diligenciado no sentido de o prevenir. O mandarim dirigiu-se à sua sala, para ouvir os chineses que nos acusavam. Nós falámos também em nossa própria defesa. Mas ele começou a repreender o chinês, de forma que entendi que, não obstante a prevenção, de nenhum modo haveria de escapar aos açoites. Logo ali trouxeram um baraço, coisa que me deu mais cuidado, por entender que [o mandarim] que-ria enviar [o chinês] à cidade de Chauchiufu, para mais averiguações. E qualquer género de indício ou suspeita comprovaria que tinha sido ele também que havia levado a primeira carta a Cantão, entre-gando-a com tamanha prontidão aos cinco de Março e aos dez de sua partida, como acima disse, sendo logo secundado outra vez com outras [cartas]. Neste caso, [o chinês] tinha muito a temer e havia de passar muito mal.

Prostrei-me aos pés do mandarim uma e duas e mais vezes, chegando mesmo a beijar-lhos, supli-cando-lhe que perdoasse [ao chinês]. Mas ele fa-zia-me com a mão sinais de que de modo nenhum lhe havia de perdoar. E continuando a repreendê-lo, dizia-lhe que devia ter ido ter com ele primeiro, para o avisar do que trazia para mim, que ele já sabia quem eu era, que era um bom padre, e não impediria que me entregasse a encomenda. Mas ele tinha feito mal, falando-me a mim primeiro e en-tregando-me o que trazia sem sua autorização. Fi-nalmente, contentando-se com a dita repreensão, ficando-se só pelas palavras e ameaças, ordenou que fôssemos embora.

No dia seguinte, disse-me o chinês que tinha dado ao mandarim dez pesos e uma peça de seda. Se isto foi mais suborno que parentesco, em minha opi-nião assim conseguiu o chinês remediar a vida e escapar ao castigo da cana e ao risco de morte, pois, com a chegada da nossa primeira carta a Cantão, conseguiu livrar-nos por então da sala e audiência de Chauchiufu, como se viu suceder depois do que acima se disse. E o chinês, a partir de então, já sem temer, nos visitou algumas vezes, coisa que eu lhe disse que não fizesse, pedindo-lhe e rogando-lhe que se afastasse de onde estávamos, por temer que lhe voltasse a suceder algo, uma vez que todos os chineses da povoação suspeitavam de nós e nos vi-giavam, como se todos tivessem por ofício o dos soldados que nos guardavam.

Estranha nação de gente esta, pois sendo co-nhecidos por gente boa e amiga de Macau e de Manila, lugares onde vão com as suas mercado-rias e onde vivem milhares deles, com suas casas e ofícios, não tinham qualquer compaixão por nós, nem dela davam mostras, apesar de saberem que apenas podíamos ser acusados de nos termos perdido e de termos sofrido os trabalhos e agra-vos que relatei, antes nos vigiavam cuidadosa-mente, sem qualquer discrição. Enfim, procedi-am como chineses, como índios, de forma bárba-ra e sem qualquer justificação.

O chinês voltou a ser acusado, sendo levado pela segunda vez diante do mandarim, dizendo-se que tinha uma embarcação preparada para nos levar a todos para Macau. O mandarim enviou-o preso com um baraço ao pescoço, ao que entendemos para o cárcere de Chauchiufu, coisa que muito temíamos e que nos deu grande pena. Contudo, [o chinês] mandou-nos dizer ao outro dia que o mandarim lhe pedia mais prata para o soltar. Acabou efectivamente por soltá-lo, e não mais falámos com ele.

Este caso fez com que o nosso cativeiro se tor-nasse mais rigoroso, guardando-nos e vigiando-nos os guardas com muito cuidado daí em diante, pois dizia-se que tencionávamos fugir, estando eles, pelo contrário, bem seguros da nossa prisão, e nós mui-to conformados com ela. Mas o rumor generalizou-se, fazendo com que a todos nos vigiassem cuida-dosamente, a nós e aos nossos companheiros que estavam espalhados por outras povoações, impe-dindo-nos de trocar cartas uns com os outros, antes abrindo estas e entregando-as aos mandarins, o que foi um enorme desconsolo para todos, pois mal sa-bíamos se os nossos companheiros estavam vivos ou mortos.

Depois disto, acontecendo um chinês que vinha de Cantão entabular conversa com um dos nossos na cidade de Chauchiufu, logo foi preso e conser-vado uma noite no cárcere, para tentarem estabele-cer se era ele que nos tinha trazido peças de vestu-ário. No dia seguinte levaram-no à audiência dos mandarins, mas um seu parente, vizinho da cidade, com o qual tinha negócios, ficou por fiador, junto do mandarim pequeno, garantindo que os fanes19 -- que é o nome que dão aos estrangeiros -- não haveriam de fugir, e que se o fizessem ele arcaria com as responsabilidades, pelo que acabaram por libertar o dito chinês.

Mês e meio depois, enviei umas cartas ao padre Miguel Matsuda, dando-me para o efeito, um mandarim [meu conhecido], por especial favor, um criado seu. Este deu as cartas ao padre, mas quando recebia a resposta, houve quem reparasse, e logo prenderam o criado, levando-o ao mandarim, o qual, sabendo a quem servia, dissimulou e acabou por o soltar. Durou meses este trabalho de vigiarem to-dos os nossos movimentos e de nos impedirem de comunicar uns com os outros por meio de cartas.

Depois do que fica dito, por via do nosso próprio mandarim de Panchiuso, tive aviso de que o padre Miguel Matsuda sofria de afrontamentos, e que es-tando na povoação de Aimanso, 20 padecera muito com um furacão que houvera no reino de Chauchiufu, durante o qual, por espaço de vinte e quatro horas, a força dos ventos correra todos os quadrantes da agulha. O mau tempo durou mais três ou quatro dias, com o que se padeceu enormemen-te, havendo geral e lastimosa destruição de casas e de árvores, ficando algumas destas, como eu bem vi nessa ocasião, com as raízes para cima. Enfim, todos padecíamos de igual modo nas nossas ruins casitas. Ao padre Miguel Matsuda e a um dos seus companheiros retirou à pressa da casa em que esta-vam um outro companheiro português, a qual, se não tivessem saído, os teria soterrado. A mesma sorte não teve Daudot, lascarim21 mouro do nosso navio, que na povoação de Tatapo foi soterrado pela casa, partindo uma perna, que lhe provocou a mor-te dois dias mais tarde.

Esteve pois o bom padre japonês algumas horas ao vento e à chuva, na noite do furacão, sem saber onde se albergar, estando enfermo, pelo que se agra-vou muita a enfermidade e chegou a perder o pul-so. O mandarim dessa povoação, um chinês de bom carácter, compadeceu-se do padre, indo-o visitar e escrevendo uma carta, a seu pedido, ao meu mandarim, para que me deixasse ir visitá-lo. Este [mandarim] enviou-ma por um seu amigo, [dando-me a necessária autorização]. Lá fui acompanhado por dois soldados de guarda, andando [parte do ca-minho] embarcado e [outra parte] a pé por terra, com muita pressa e grande receio de já o ir achar morto. Mas achei-o algo melhor, muito alegre com a minha chegada, e eu não menos com sua melho-ria e vista. Encontrei-o sobre umas tabuinhas, num colchão de esteira de juncos, com suas próprias vestes por lençóis e mantas, padecendo assim, tan-to ele como os seus companheiros, fartas misérias.

Depois de comunicados os nossos sucessos e tra-balhos, que encarámos como outros tantos presen-tes que Nosso Senhor nos dava, confessámo-nos uns aos outros, pois há cinco meses que não nos víamos e que carecíamos de tão reconfortante sa-cramento. O padre e outro dos seus companheiros, ambos doentes, estavam albergados num excelente e bem edificado pagode, onde também se encon-trava o cavalo do mandarim, com o respectivo pesebre, coisa que não me surpreendeu, pois du-rante o temporal do furacão tinha visto porem o cavalo do mandarim da nossa vila num pagode ou templo semelhante, podendo dispor de muitos ou-tros sítios para o acomodar, já que se tratava de uma povoação de oito ou dez mil vizinhos. Enfim, por um lado, ajoelham-se os mandarins diante de seus pagodes, a quem fazem mil genuflexões, pondo sobre as cabeças destes os pivetes acendidos antes de os oferecerem; por outro lado, alojam nos seus templos os cavalos, que ali estão, comendo e dor-mindo, como numa cavalariça.

A povoação ou aldeia murada de Aimanso teria com o seu arrabalde de mil e quinhentos a dois mil vizinhos. Para lá ir, fui obrigado a passar pela cida-de de Toio, na qual disse acima que tivemos a nos-sa primeira audiência. No regresso para Panchiuso pude observá-la com mais vagar do que nas vezes anteriores [que por lá passara]. Teria dentro de seus muros e fora no arrabalde trinta mil vizinhos ou mais, e tanto os nossos como os chineses diziam que seriam mais alguns milhares. Tinha muitas e boas casas. Entrei dentro de algumas, que pareci-am as melhores, para ver melhor a sua traça e cons-trução. A rua principal tinha a espaços alguns arcos triunfais, formosíssimos na fábrica, na grandeza e na beleza das pedras, [arcos esses que eram] feitos de uma peça, ao modo dos da cidade de Chauchiufu [...].

Entrando no melhor templo dela, admirei-me de ali ver simultaneamente um tão grande nú-mero de pessoas, sobretudo mulheres chinesas, que enchiam os altares com frutas doces, tortilhas e outras coisas de comer, oferecendo-as aos seus pagodes, diante dos quais faziam mil reverências, pedindo-lhes saúde para os enfer-mos e os bonzos ou ministros que os ajudavam e dirigiam, e diziam-lhes não sei que coisas, que deveriam servir para avivar a sua falsa fé. De-pois de entrar, estando já no meio do templo, veio-se a mim um chinês venerável, dizendo-me que eu também deveria ajoelhar-me, fazen-do semelhantes genuflexões e reverências aos altares e pagodes. Disse-lhe que não, que de ne-nhuma forma [o faria], que tudo aquilo era mui-to mau, e levantando a voz, e fazendo ao mes-mo tempo sinais com a cabeça e as mãos, fui até junto dos altares, por entre a referida gente, dizendo o mesmo. À medida que caminhava e saía [da povoação], acompanhado por dois sol-dados, de regresso a Panchiuso, as pessoas mi-ravam-me.

Alguns dias depois de lá chegar, recebi cartas da cidade de Cantão e da de Macau, do padre João Rodrigues, da nossa Companhia, e de ou-tras [pessoas], com substanciais notícias, escri-tas nos meses de Julho e Agosto. Em primeiro lugar, avisavam-me que estavam mais de cem vizinhos da cidade de Macau na feira de Can-tão, fazendo as suas compras para a viagem do Japão, sujeitos a não poucas incomodidades e trabalhos da parte dos chineses. Em segundo lugar, [avisaram-me] que ao tratarem dos capí-tulos de pazes sobre as coisas da cidade de Ma-cau, o tutão tinha-se comprometido a devolver a tripulação e a prata do nosso navio, pois esta-va desejoso de favorecer os vizinhos [de Ma-cau], por estes terem derrubado uma parte do lanço de muralha daquela cidade, da parte e ban-da que cai e olha para terra, tencionando ainda castigar com cruéis justiças os de Chingaiso, para que fizessem aparecer a prata do [nosso] navio, assim como os soldados mais culpados de Chingaiso, com o seu mandarim, que nos prendeu, cujo nome próprio era Cabanchon, nome tão ruim como a sua cara e obras. Tinha ainda despachado uma chapa para que todos os que nos perdéramos logo fôssemos a Cantão, com um mandarim pequeno de sua casa, que vinha acompanhado por um português de Ma-cau e por um intérprete, trazendo chapa para que nos tirassem do reino de Chauchifu e nos levas-sem para Cantão. Mas aos dois dias de cami-nho, [estes] encontraram doze dos meus que para lá iam, os quais, com boa intenção, embora com mau sucesso, foram de parecer que a chapa e os que a levavam deveriam regressar [a Cantão], para primeiro prestarem as suas declarações, como eles próprios me escreveram, e que [na dita chapa] se acrescentasse que aos mandarins de Chauchiufu não seria concedida oportunida-de de replicarem, pois caso contrário poderiam argumentar que já tinham libertado doze [prisi-oneiros] e que agora pretenderiam esperar por novas ordens do tutão [...].

Em terceiro lugar, [avisaram-me] que depois de chegarem a Cantão souberam que tinha chegado da corte e reino de China um despacho com al-gumas repreensões para o tutão e com o nome do que lhe havia de suceder no ofício, com o que o tutão se tinha ausentado do reino de Cantão, desleixando as coisas ordinárias do governo, en-quanto aguardava a chegada do sucessor, com ex-cepção de coisas de grande gravidade, correndo rumores em Cantão e em outras partes que o rei privava o tutão do seu ofício e o mandava apre-sentar-se na corte por acusações graves, por coi-sas que tinha feito em outro governo anterior. Em quarto lugar, [avisavam-me] que pelos motivos indicados perdeu efeito a chapa do tutão, nada mais se podendo negociar com ele.

A matéria principal acima referida, recolhida de várias cartas, é resumida numa carta escrita pelo padre Simão da Cunha em Macau, durante o mês de Agosto. Diz assim: "Paz em Cristo, Jesus. Pa-dre meu: Já teríamos Vossa Reverência nesta ci-dade se não fossem os doze que daí vieram, pois chegou a Cantão chapa do tutão em que mandava buscar toda a gente, para que todos viessem para Macau. Esta chapa chegou quando eu ainda me encontrava em Cantão, com o padre João Rodrigues, que a tinha negociado na cidade de Chao-ching, onde estava o tutão. Eu pus logo gran-de diligência em despachar os que levavam [a cha-pa] numa embarcação, com duzentos ducados para os gastos do caminho de Vossa Reverência e dos demais prisioneiros. Partiram, pois, e encontraram os doze, que não estavam à espera de encontrar, os quais, ouvindo as boas novas de Cantão e sa-bendo quão benévolo estava o tutão, fizeram vol-tar para trás os que levavam a chapa com ordens do tutão para que a cumprissem. O regresso fez-se a rogos destes [doze], tendo chegado todos a Cantão em 23 de Junho, com algumas dificulda-des, e sem Vossa Reverência nem os outros com- panheiros. Encontraram o tutão deposto e tudo mudado, com as anteriores facilidades cerceadas. Veja Vossa Reverência como fiquei eu, vendo que Vossa Reverência e os demais ainda aí estavam, depois de nos ter custado tanto despachar esta embarcação com os que levavam a chapa. Tanto mais que agora não conseguiremos obter chapa do aitão22 para daí tirar Vossa Reverência e os de-mais, pois este é um grande tirano, que para a dar não cessa de pedir prata e mais prata. Ao padre Miguel Matsuda mande Vossa Reverência enviar de minha parte largas recomendações. Tenho muita pena de não poder enviar a Vossa Reverência al-gum dinheiro, por não se poder dar nenhum a es-tes chineses, pois se lho déssemos seria o mesmo que não enviarmos nada. Encomendo-me muito nas orações de Vossa Reverência, etc."

Em quinto lugar, avisaram-me que, os que deles tinham encargo, tinham querido devolver ao cati-veiro de Chauchiufu os doze dos nossos. Mas es-tes tinham resistido, conseguindo refugiar-se nos navios dos portugueses que estavam na feira [de Cantão], depois de negociarem com o mandarim Techesi, que autorizou que permanecessem em Cantão, nos ditos navios. Um dos que os haviam levado a Cantão, que era criado do mandarim Goucia, regressou à pressa a Cauchiufu para dar as ditas novas; mas o mandarim Goucia mandou açoitá-lo por alvíssaras da notícia que trazia, man-dando-o regressar a Cantão com cartas para o aitão e para os outros mandarins, nas quais lhes pedia que o informassem se nós éramos boa ou má gen-te, e que lhe mandassem de volta os doze dos nos-sos que estavam nos navios dos portugueses.

Quando estas cartas chegaram a Cantão, os mer-cadores chineses tinham já dado informação e pres-tado fiança sobre os nossos doze, assegurando que eram gente conhecida, vizinhos da cidade de Ma-cau. Pelo que o [mandarim] Techesi os tinha liber-tado, disso mesmo informando, a partir de Can-tão, o mandarim Goucia, acrescentando que os nossos doze, uma vez libertados, se tinham dirigi-do para a cidade de Macau.

Em sexto lugar, o padre João Rodrigues voltava a avisar-nos que a intenção do vice-rei Tavia ha-via sido tirar-nos as vidas, pelo que não se punha já a questão de tentar recuperar a [nossa] prata, mas tão simplesmente de salvar as vidas. O capí-tulo da carta do padre João Rodrigues dizia assim: "Esse mandarim Tavia, para esconder os roubos, quer fazer dos do nosso navio perdido japoneses ou holandeses, para que como tais sejam executa-dos." E logo acrescentava mais abaixo: "A prata que se perdeu e esses roubaram é a causa de toda esta questão, pois se se falasse apenas das pesso-as, já cá estariam todos, pois como [a prata] já foi repartida por todos esses [funcionários chineses], para não terem de a devolver dizem que vós sois ladrões japoneses, holandeses e má gente, pois assim não terão de dar a prata, evitando que esta gente para cá venha e fazendo com que aí se aca-be de consumir a pouco e pouco, ou com morte violenta, etc."

Grandemente cegou a prata do nosso navio aos miseráveis mandarins de Chauchiufu, sendo tão claro como o meio-dia no seu reino [quem nós éra-mos]. Assim pelos chineses que nos serviram de intérpretes, os quais das àlheias não sabiam ou-tras línguas senão a castelhana, a portuguesa e a japonesa, como por estar cheio o reino de Chaucheo de outros muitos chineses que haviam estado em Macau e em Manila, sendo evidente para todos que éramos gentes de entre ambas as cida-des. [Além do mais,] os mandarins Talavia [e] Tavia eram do reino de Chaucheo, o pai desde úl-timo era mercador que enriquecera fazendo via-gens para Manila; e os mandarins Tavia e Goucia eram do reino de Foquiem, cabeça de Chincheu, tendo sido igualmente mercadores e tendo estado na cidade de Manila e nas feiras de Cantão com os portugueses de Macau. Assim, [todos eles] tinham obrigação de ter muita notícia e conhecimento da gente de entre ambas as cidades. Acrescento que o vice-rei Tavia era tão ladino que conhecia a nos-sa língua castelhana e, embora tivesse dissimula-do com os brancos e com muitos dos cativos, por duas vezes se descuidou com dois lascarins do nosso navio, falando-lhes alguns argumentos com ela. No entanto, tudo quiseram obscurecer e fazer noite, persuadindo-se que poderiam encobrir a prata e a gente que éramos, tirando-nos a vida pe-las razões já ditas.

Caça do almíscar. Gravura espanhola do século xvII, in CORTES, Adriano de las, Viaje de la China, edição de Beatriz Moncó, Madrid, Alianza, 1991, p. 294.

Fortaleza de Malaca, 1635 (Biblioteca Pública de Évora), in BOCARRO, António, Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, edição de Isabel Cid, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, est. XLVI.

NOTAS

1 Trata-se de Chaozhou, cidade da parte oriental da costa de Guangdong, a que o autor, com algum exagero, chama "rei-no", talvez com o objectivo de salientar as dimensões da China e das suas províncias e distritos.

2 Original: "Sciauquin" (Zhaoqing). Importante cidade do in-terior da província de Guangdong, onde desde 1583 se havia estabelecido uma missão jesuíta. Nela residia frequentemen-te o governador provincial.

3 O original regista sistematicamente o topónimo "Macán".

4 Os prisioneiros espanhóis gozavam de uma relativa liberda-de, já que conseguiam trocar correspondência com Macau.

5 João Rodrigues "Tçuzzu" (1561-1633), missionário com lon-gos anos de experiência do Japão e da China, foi procurador da missão nipónica entre 1591 e 1626. Em 1628 empreendeu uma visita às missões chinesas da Companhia de Jesus. Possuía pro-fundos conhecimentos da língua japonesa e da língua mandarina.

6 Simão da Cunha (1589-1660), que missionou durante longos anos na China, foi durante uma década procurador da missão chinesa da Com-panhia de Jesus.

7 Jesuíta japonês (1577-1632), companheiro de infortúnio do padre Adriano.

8 Tutão (chinês dutang): vice-rei ou governador geral de uma província.

9 Algum português, ouluso-chinês, que acom-panhava os cativos es-panhóis, servindo de intérprete junto dos mandarins.

10 Isto é, "fuquinenses".

11 Depois do grande, e fra-cassado, assalto holan-dês a Macau em 1622, os portugueses consegui-ram autorização dos mandarins cantonenses para reforçarem as defesas da cidade através da construção de vários lanços de muralha. O padre Adriano refere-se aqui, decerto, à parte da muralha que confrontaria as chamadas "Portas do Cerco".

12 Sic. O autor utiliza frequentemente este termo, embora de forma pouco correcta, para designar províncias ou mesmo distritos chineses.

13 Trata-se certamente de D. Francisco de Mascarenhas, pri-meiro governador de Macau, que exerceu funções na cidade entre 1623 e 1626.

14 Pequena localidade do litoral de Guangdong, nas proximi-dades de Shantou.

15 O autor deve estar a referir-se ao governador da cidade de Chaozhou.

16 Os navios oriundos das Filipinas vinham normalmente carrega-dos de prata americana, pois este metal era su-mamente apreciado pe-los chineses, como o nosso autor não se can-sa de repetir.

17 Localidade não identificada.

18 Isto é, "ao modo da China". Leitura conjectural.

19 Provável transcrição do chinês fanguizi, lite-ralmente, "diabos es-trangeiros".

20 Localidade de Guangdong não identificada. Como se pode constatar, os cati-vos luso-espanhóis fo-ram espalhados por di-versas povoações.

21 Termo utilizado no Oriente para designar um soldado indígena.

22 Aitão (chinês haidao): comandante da guarda costeira, com jurisdição sobre os es-trangeiros.

* Ms., Manila, 1628.

desde a p. 159
até a p.