Antologia Documental

COMENTÁRIOS SOBRE A EMBAIXADA DE GIL DE GÓIS*

João de Escobar

João de Escobar era o escrivão da embaixada de Gil de Góis, enviada pelo governador português do Estado da Índia à China, para tentar regularizar as relações luso-chinesas e conseguir autorização para a entrada dos padres da Companhia de Jesus em território imperial. Deverá ter viajado de Goa para Macau em 1563, a bordo da nau do embaixador. Visitou repetidamente a cidade de Can-tão, e assistiu à célebre campanha contra os piratas chineses em 1564, organizada conjuntamente pelas autoridades cantonenses e pelos portugueses estabelecidos no território macaense. Preparou dois extensos Comentários, de que sobrevive apenas a segunda parte, em cópia conservada nos arquivos jesuítas de Roma (ARSI, Goa, 38). O seu testemunho revela-se crucial para esclarecer de vez alguns dos mais importantes episódios dos primeiros anos da Cidade do Nome de Deus. Este importante documento manteve-se inédito até há muito pouco tempo, pois apenas em 1996 foi pela primeira vez impresso na íntegra.

Fonte utilizada: LOUREIRO, Rui Manuel, Em Busca das Origens de Macau, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996, pp. 149-157. Transcrição parcial. Acrescentaram-se entre parênteses rectos algumas palavras ou expres-sões, com o objectivo de facilitar a leitura do texto.

CAPITULO 4

COMO SE LEVANTARAM EM CANTÃO

CERTOS CORSÁRIOS LADRÕES

E A DESTRUIÇÃO QUE FIZERAM

SAQUEANDO CANTÃO,

E O POUCO QUE FIZERAM NO PORTO

DOS PORTUGUESES

Posto que o governador [da Índia] não provesse as coisas da embaixada, nem mandasse os elefan-tes e cavalos que o embaixador esperava,1 e depu-sesse de capitão-mor a Diogo Pereira,2 nem com todas estas coisas o abalaram do serviço de Deus e d'El-Rei. Mas antes daí por diante fazia com mor vontade e desejo o que cumpria a bem da embaixa-da, não negando sua fazenda para as coisas dela, mas antes a repartia muito liberalmente com os gran-des de Cantão em dádivas e peças que lhes manda-va, por acabarem estes meios entre os chineses muito, pela muita cobiça e interesse que neles reina (o que nós também não enjeitamos). E ganhou tan-to à-vontade com isto que veio a acabar com os gran-des a mor coisa que nunca da China se esperava, que foi virem pedir socorro aos portugueses contra certos ladrões alevantados, como largamente nesta segunda parte de meus Comentários contarei e gas-tarei a mais de minha história, passando[-se] a coi-sa desta maneira.

Um certo capitão da guerra e mandarim grande trazia a seu cargo uma grossa armada d'el-rei [da China], que era de juncos, que são embarcações tão grandes e alterosas como as nossas naus, em que entravam dezoito juncos, afora outras embarcações pequenas e ligeiras. Chegou com esta armada da costa do Chincheu,3 onde andava, a Cantão, muito vitorioso e favorecido da fortuna contra seus inimi-gos. E, chegando, mandou aos grandes de Cantão que lhe fizessem pagamento a sua gente, por haver muito tempo que lhe não pagavam, o que ele sem-pre suprira. Os grandes o detiveram alguns dias com palavras, e depois lhe impunham4 alguns erros a fim tudo de não lhe darem a prata que pedia. E por se temerem dele, lhe mandaram que se tornasse para o Chincheu e que deixasse em Cantão seu irmão, que logo nas suas costas levaria toda a prata neces sária para o pagamento. E confiado destas palavras, o fez assim. E depois de partido, açoitaram o irmão que em Cantão ficava, que é a comum justiça que entre eles se usa.5

Sabida a afronta que lhe era feita ao irmão, o mandarim grande fez volta com sua armada, e em satisfação de tamanha ofensa e de não cumprirem com ele a prata que ficaram [de pagar], desembar-cou com sua gente na cidade, matando e assolando quanto nela achava, e roubando todos os despojos que ficavam. Dizem que fez isto tão súbito e aci-dentalmente, que ao tempo que os principais e gran-des com sua gente e mais povo se recolhiam pelas portas da cerca dentro, por escaparem dos ladrões, morreriam afogadas e atropeladas entre as ditas portas passante de duas mil almas. E não é maravi-lha, porque a cidade de Cantão tem mais gente em si que Lisboa, e todos quantos a vêem afirmam ser maior, e a mor parte vive nos arrabaldes. É gente muito efeminada e fraca, e não podem trazer nem ter nenhuma arma, [o] que os faz ser mais covar-des.6 [Pel]o que os ladrões, pelo costume da guerra e abundância das armas e artilharia das suas em-barcações, puderam fazer e saquear todo Cantão a seu salvo, não entrando da cerca para dentro, por ser muito forte e alta.

E feito isto, logo se declararam por alevantados e públicos ladrões e corsários, trabalhando daí por diante de se fazerem mais fortes, aparelhando-se de muita mais artilharia e munições de guerra, para nenhuma força de outra armada os poder entrar. E para mais sua guarda e segurança, escolheram a ci-dade de Tancoão7 e a fortificaram, por ela em si ser muito forte e antiga, na qual se recreavam e refazi-am dos trabalhos do mar. Esta cidade está [a uma] jornada de um dia de Cantão, pelo que todas [as] vezes que os ladrões queriam, dando assalto em Cantão, se recolhiam a Tancoão sem nenhuma re-sistência, pelo que os arrabaldes e a mor parte dos mercadores de Cantão a despovoavam e se metiam pela terra dentro, andando já todos tão atemoriza-dos e desinquietados que deixavam as fazendas, por remir a vida. Esta vitória desavergonhou mais aos ladrões, metendo-se-lhe[s] em cabeça que poderi-am vir de noite a nosso porto e desembarcar nele e queimar a povoação e roubarem-na e matar os por- tugueses; e isto feito iriam esperar nossas naus e juncos, que da Índia e de todas as partes no tempo da monção vêm ao porto [de Macau], e as desbara-tariam.

Do que tudo foi avisado o capitão-mor pelos mandarins de Cantão, mandando-lhe [estes] dizer que se vigiasse, por ter[em] estas novas por muito certas. O que o capitão [D. João Pereira] e embai-xador [Gil de Góis] fizeram logo com muita dili-gência, repartindo certos capitães e toda a gente da povoação, que por ser na invernada não haveria ain-da trezentos portugueses.8 Porém, estes, com seus escravos e cristãos da terra, que seriam mais de mil e quinhentos, se repartiam todas as noites nos pas-sos onde se presumia que poderiam vir entrar os ladrões e aí vigiavam seus quartos até a manhã. E nisto havia muita ordem e cuidado, tanto que de noite parecia que nas mostras que davam que esta-vam mais de mil portugueses na povoação. Pelo que quis Nosso Senhor que não vieram naquele tempo que se esperava virem, e a causa seria por saberem da maneira que nos podiam achar se nos viessem cometer.

CAPÍTULO 5

COMO OS LADRÕES, MEADO JUNHO,

VIERAM À POVOAÇÃO

DOS PORTUGUESES E SE FORAM,

DESCONFIANDO, DESEMBARCAR

NO PORTO

Meado Junho, que é o tempo em que começam [a] vir dalgumas partes embarcações dos portugue-ses ao dito porto, chegaram os ladrões a ele, em uma tarde, e surgiram muito perto de terra, apega-dos com a povoação da banda do leste. E, surtos, toda a povoação acudiu à praia a vê-los; não leva-ram suas armas, porque como era de dia sabiam muito bem que [os ladrões] não haviam de desem-barcar. E porque [os ladrões] estavam muito quie-tos e desagastados, como quem estava em sua ter-ra, porto e morada, não faziam nenhum modo de sinal, nem mandavam recado do que queriam. E o capitão, vendo tão pouco desavergonhamento, man-dou pôr sobre um outeiro que defronte deles estava um falcão pedreiro,9 que lhes perguntasse o que que-riam. E posto que o falcão [a]tirou muitos tiros e assombrava com pelouro[s] seus juncos, nem isso os movia a se levantarem nem [a] fazerem outra coisa de si, como quem fazia muito pouca conta do falcão. Ao outro dia pela manhã se levantaram e fizeram seu caminho para o mar, pousando muito desagastadamente por entre duas naus nossas que estavam para irem a[o] Japão, as quais estavam com muita artilharia no meio do canal por onde os la-drões passavam. E posto que das naus disparassem sua artilharia, nem por isso deixaram os juncos de passar por elas e irem seu caminho contra o mar.

Soube-se logo a determinação dos ladrões, que era irem esperar na entrada da barra os juncos e naus nossas que ao porto viessem desapercebidos. O que bem mostraram na nau de Luís de Melo,10 que, estando surta em Lampacau, foram dar com ela e a acometeram, trabalhando de a entrar, o que não fizeram pela muita artilharia que [ela] trazia. E deixando-a, se tornaram outra vez [a] meter no ca-nal do porto dos portugueses, para aí serem mais senhores das embarcações que nele entrassem. E estando no dito boqueirão, quis entrar um nosso junco que vinha com sândalo de Timor,11 o qual era de Pêro Veloso, casado em Malaca. E à nossa vista o abalroaram sem nós lhe podermos acudir, e trata-ram-no mal, e tomaram-no12 se não fora a nau de D. João Pereira que vinha atrás, que, por não haver maré, estava fora esperando por ela.

Com este socorro desconfiaram os ladrões [não] fazer[em] já nenhuma presa nas embarcações dos portugueses, pela resistência que em todas achava[m]. E com esta desconfiança se tornaram para Cantão a se refazer do que connosco tinham perdido, e no repartir das presas houve entre eles dissensão e discórdia, de maneira que se dividiram em duas partes. E divisos, os nove juncos tornaram para o Chincheu e os outros nove ficaram com [o] mandarim e pessoa principal na cidade de Tancoão, e daí avexavam todavia a Cantão, sem lhes poder resistir, recebendo os mercadores muita perda por não poderem passar nem trazer suas mercadorias aos portugueses, e o mesmo eles também a recebi-am [por] não acudirem as mercadorias.

Diogo Pereira, que nunca seu ânimo repousava, quis-se aproveitar do tempo e ver se podia com esta presa convencer aos grandes de Cantão, oferecen-do-lhe[s] todo [o] favor e ajuda que houvessem mester dos portugueses, em nome d'El-Rei de Portugual e de seu embaixador, para desbaratarem os ladrões. E tratou isto com tanta prudência e se-gredo, que ninguém soube parte deste oferecimen-to nem das inteligências que trazia em Cantão so-bre o dito socorro, à uma porque tinha por impossí-vel os chineses mostrarem tanto sua fraqueza aos portuguesses e à outra porque não se haviam [os chineses] de fiar deles, pela experiência que o dito Diogo Pereira deles tinha.

Todavia, quis Deus mover-lhe[s] os ânimos, ha-vendo [os chineses] por bem de aceitar[em] o dito socorro, e o que o aceitou foi o chumbim, capitão geral do estado da guerra de todas as províncias da China, segunda pessoa depois d'el-rei,13 que, por ser tal, os outros grandes não lhe puderam contradizer. O qual chumbim mandou logo uma chapa ao embai-xador e [a] Diogo Pereira, de como ele aceitava os oferecimentos do socorro, e que nisso faria o embai-xador muito serviço a el-rei da China, mandando-lhe mais dizer que ele lhe prometia de tomar a seu cargo o peso da embaixada e fazê-lo saber a el-rei, que por entretanto que descansasse em Macau do comprido caminho que fizera, e que lhe pedia que olhasse e favorecesse a gente miúda das aldeias, [para que] não lhe fizessem os portugueses algum desaguisado, porque esta é a principal confiança que encomenda seu rei aos embaixadores estrangeiros de novos reinos. E com estas palavras, outras de muitos agradecimentos e cumprimentos de amizade.

CAPÍTULO 6

COMO O CHUMBIM MANDOU UM

GRANDE MANDARIM AO PORTO

DE MACAU COM MUITAS

EMBARCAÇÕES PEDIR O SOCORRO,

E O QUE SE NISSO FEZ

Diogo Pereira e o embaixador, vendo a chapa que Tomé Pereira14 lhes trouxe de Cantão, por ele lá andar secretamente sobre estas coisas, foi tanto o alvoroço neles que o não puderam encobrir, mas, todavia, não no publicaram ao capitão-mor, por te-rem por impossível confiarem os chineses seu cré-dito e honra de nós. E porque o dito Tomé Pereira, que era a língua15 e cativo de Diogo Pereira, fora a Cantão sem liçença de D. João [Pereira, este] o tra-tou mal de palavras, dizendo-lhe que se outra hora fosse a Cantão sem sua licença, posto que o man-dasse Diogo Pereira nem o embaixador, que lhe mandaria cortar as orelhas. E perguntando-lhe se trouxera chapa do chumbim sobre a embaixada, lhe disse Tomé Pereira que sim, do que se riu e zom-bou D. João, pela informação que tinha dos gran-des não admitirem nem receberem a embaixada. Tudo isto dissimulou Diogo Pereira com sua dis-crição, e não se deu por achado de nada, nem dei-xou de ser de D. João como era dantes, por cumprir assim ao serviço de Deus e d'El-Rei.

E logo neste comenos chegou o mandarim com embarcações de juncos e lanteias ao porto de Ma-cau, da parte do chumbim, [a] pedir o dito socorro. Era o mandarim que a isto veio pessoa de muita autoridade e crédito, e fora principal capitão nas coisas da guerra, mas andava fora da graça d'el-rei [da China], por maus sucessos que na guerra lhe sucederam, o que o chumbim, pela antiga amizade que com ele tivera, o assinalava em todas suas coi-sas, para as que bem lhe sucedessem as nomear por suas e em seu nome as apresentar a el-rei [da Chi-na], para tornar a pô-lo em seu estado e ficar em sua graça. Coisa muito alheia de nós fazermos, mas antes faríamos muita mercê a Deus não tirarmos a honra e o crédito aos homens de seus serviços e os usurpássemos a nós, como cada dia se faz.

Chegando como dito é, bem representou logo em seu aparato e pessoa e poderes que trazia sua gravi-dade e valia que já tivera, [e] fez logo saber de sua vinda ao embaixador e a Diogo Pereira, para se verem onde lhes bem parecesse e saberem a causa de sua vinda. Mandaram-no logo visitar por seus jerubaças,16 que são as línguas da terra, e dar-lhe o parabém de sua chegada. E quanto a isto que man-dava dizer em que lugar seria, que ele [Diogo Pe-reira] não era já capitão-mor, que sucedera no dito cargo D. João Pereira; e por ser costume dos portu-gueses darem em tudo a obediência a seu capitão-mor, que a ele mandasse perguntar o lugar, e assim o mandasse visitar e fazer saber de sua vinda e o para que era [vindo], que tudo o mais que dele e do embaixador lhe fosse necessário, que estavam muito aparelhados para o fazer. E, como fosse tempo, que todos se veriam. Pela qual causa o mandarim o fez logo saber a D. João Pereira, o que [i. e., o qual] logo mandou chamar ao embaixador e a Diogo Pe-reira e a seu irmão Guilherme Pereira e a Luís de Melo, e a muitos senhores cavaleiros e criados d'El-Rei, para com eles pôr a coisa em conselho; e sen-do determinado ser licito dar-se o tal socorro que vinham buscar, fazer-se logo prestes. O qual ajun-tamento foi feito em dia dos Cosmos17 pela manhã, do dito ano de 1564.

CAPÍTULO 7

DO QUE SE ASSENTOU NO CONSELHO

QUE SE FEZ EM CASA DE D. JOÃO

PEREIRA, E DE COMO [ESTE] SE VIU

COM [O] MANDARIM NA VARELA

Depois da missa, o capitão-mor se recolheu para casa e juntamente com ele muitos fidalgos e principais da povoação, para se tratar em conselho a vinda do mandarim e do socorro que vinha pedir, os nomes dos quais são estes: o reverendo padre João Soares, provisor e visitador-geral destas partes da China, o embaixador [Gil de Góis], Luís de Melo, Diogo Pereira e Guilher-me Pereira seu irmão, D. Manuel de Castro, Jorge Ri-beiro Manojo, Henrique Fernandes Nordelo, Gaspar da Nóbrega, e alguns outros senhores.18 E sendo todos jun-tos, propôs a prática o capitão-mor, como aquele mandarim era chegado da parte do chumbim a pedir socorro a ele capitão contra os ladrões, para o qual ajun-tava Suas Mercês, para dize[rem] seus pareceres, e não se fazer outra coisa senão o que se ali assentasse e de-terminasse, porquanto confiava nas obrigações de to-dos os que ali estavam terem especial cuidado do servi-ço de Deus e d'El-Rei; e também porque eles haviam de ajudar com as pessoas e fazendas, havendo-se de dar o tal socorro, por não haver aí outro armazém d'El-Rei. Ao que responderam todos a uma voz que era muito bem e muito necessário, assim para o serviço de Deus como d'El-Rei, como para o bem comum de todos, dar-se o tal socorro, e que nisso não se havia de fazer ne nhuma demora, visto ser contra ladrões alevantados, e mais resultando dele muita esperança de amizade per-pétua; o que negando-se-lhe[s], poderia haver quebra e a embaixada não se receber. E além destas razões, de-ram outras muitas em favor do socorro, como era não serem os portugueses tidos por maus e ladrões como os chineses presumiam, sendo gente de muita verdade e primor, pois ofereciam a vida e as fazendas em seus serviços de tão boa vontade.

E assentando todos nisto, disse D. João que à tarde se veria com [o] mandarim e lhe ofereceria o socorro em nome d'El-Rei e de seu embaixador, e o mais que com ele passasse, depois se determinaria acerca dos capitães que para isso fossem necessários. [...] Estando a coisa desta maneira, o mandarim mandou dizer a D. João que ele desembarcava e ia à varela19 para se ver com ele e assentarem seus negócios, por não se perder tempo, que Sua Mercê o mesmo fizesse. D. João o houve por bem e foi ter ao dito lugar, que é no cabo da povoação, junto ao mar, acompanhado de muita gente, assim da de sua obri-gação como da mais da povoação, vestidos de todos os cetins, grãs e veludos, e outras muitas louçainhas e peças ricas de ouro. Levava D. João uma roupa francesa de cetim aleonado, atorcelada20 de ouro, e uns calções e jubão do mesmo [tecido], e uma gorra de veludo com uma medalha muito rica e um colar de ouro de duas voltas, com [o] hábito de Cristo pendente,21 muito ricamente esmaltado. Levava seus pajens muito lustrosos de toda a grã vestidos, e um deles levava diante dele um rico esto-que dourado. [D. João] chegou ao sobredito lugar da varela primeiro que o mandarim, e aí o esteve esperando (não lá muito espaço), sentado em uma cadeira de broca-do, a qual estava posta sobre uma rica alcatifa no campo, sem haver aí outra cobertura senão os sombreiros de pé, que ao longe representavam um arraial de um lustroso exército.

CAPÍTULO 8

DO APARATO DO MANDARIM COM QUE

SAIU, E DO QUE SE PRATICOU ENTRE

ELE E D. JOÃO

O mandarim não fez nenhuma detença tanto que viu o capitão-mor na varela, mas logo desembar-cou do junco donde estava, e ao tempo que abalou tangeram-lhe os seus muitos talicos,22 que são como nossos atabales, e outra invenção de caldeiras, da maneira que botam o Entrudo fora, e outra inven-ção de música, a qual trazia diante à maneira de gaitas e trombetas bastardas. Saindo em terra, iam diante dele dez ou doze alferes, cada um com uma bandeira de campo nas mãos, de tafetá azul, com umas letras no meio muito grossas por divisa; e após estes, uns como porteiros de maça, com as mesmas maças nas mãos como de cónegos, mas eram de metal; e após estes, outros com umas tábuas nas mãos e uns paus engastados em metal; e outros ves-tidos com uma invenção estranha de seda e ouro a modo de [d]almáticas curtas e uns fraldamentos por baixo doutra seda singela, e celadas na cabeça de estanho, e das pontas saíam um como rabo de cabe-los muito curados, que pendiam sobre as costas; e outras estranhezas que não se podem explicar por falta de linguagem.

Após estes iam muitos upos,23 que são ministros da justiça, com bambus muito largos, que são ca-nas de palmo de grossura, partidas pelo meio, com que açoitam e executam sua justiça. Após estes iam os pajens do mandarim, com bocetas de seu bétele24 e a chá,25 e outros com abanos, que o iam abanan-do. Vinha o mandarim aos ombros de seus chineses sobre uma estranha cadeira assentado, debaixo de um sombreiro de tafetá amarelo, a qual cor é divisa dos mandarins da casa real, porque a eles lhe[s] dão esta insígnia por mais honra e excelência dos ou-tros, e por esta é conhecida sua pessoa por onde vai. Trazia vestido umas opas muito largas e com-pridas com muitas pregas, de um damasquilho ver-melho muito transparente e de águas, e um cinto por riba, de prata e conchas, como peitoral de cava-lo, o qual nenhuma coisa apertava, só parecia que o trazia por estado, como todos trazem. Na cabeça trazia uma caraminhola preta ao modo romano, com umas molduras todas douradas, muito estranha, a qual caraminhola é também insígnia de mandarim grande. Não trazia orelhas como trazem outros mandarins, por este ser dos da guerra.26 Sua pessoa e aparência era muito grave, [sendo] bem proporci-onado e de boa estatura, o rosto largo, dando muito o ar a D. Constantino.27

Chegando desta maneira aonde D. João estava, se abaixou da cadeira e se foi para ele, e D. João se levantou saindo a recebê-lo. E, feitas suas cerimónias de cortesia ao modo chinês, se assenta-ram. E, postos os nossos jerubaças, que são línguas, em joelhos diante dele, propôs sua prática desta maneira: "Eu sou vindo a este porto em nome do chumbim, mandarim e cabeça principal do estado da guerra de todas as províncias da China, a pedir socorro ao embaixador d'el-rei dos portugueses e ao seu capitão-mor, confiando neles não lho nega-rem, pois tão justo e necessário é, por ser contra ladrões que destruíram Cantão e impedem aos mer-cadores, [pois] não correm com suas mercadorias. E, sobretudo, o que mais obrigou o chumbim man-dar-me cá com esta demanda foi o embaixador mandá-lo cometer e oferecer. Pelo que, por ter mais seguros aos ladrões e na rede, lhes deu seguro, e sobre ele estão na enseada de Tancoão surtos, confiando que o chumbim os ponha em livramento. E para que não venham ter inteligências deste ardil de guerra, trago logo as embarcações necessárias, assim para os que houverem de ir pela banda de fora como de dentro, para que logo se embarquem".

Ao que D. João respondeu que se havia por mui-to dito[so] isso em seu tempo oferecer-se coisa por que viessem [a] ter necessidade dele e dos portu-gueses, que nunca outra coisa mais desejara senão haver na China [ocasião] em que mostrasse os de-sejos que tinha de servir a seu rei assim com a pes-soa como com a fazenda, por assim o trazer muito a cargo e por regimemto de seu rei. E posto que o não trouxera [por regimento], que o costume dos portugueses é nunca negar[em] favor e ajuda a quem os vem buscar, quanto mais em coisa tão justa e necessária que a obrigação de seu cargo bastavam, sem as outras mais razões. E além disto lhe disse outras palavras de muito favor e amizade, que fazi-am a bem do mandarim, do que ficou muito satis-feito, louvando muito ao capitão.

E agradecendo-lhe tão boa vontade, perguntan-do-lhe logo se estava ali o capitão-mor que havia de ir com socorro, que lhe mostrasse, para lhe dar uma chapa de prata que trazia do chumbim, e ou-tras para os mais capitães das outras embarcações que com ele haviam de ir. D. João lhe apresentou a D. Manuel [de Castro], dizendo-lhe que ele era o capitão-mor.28 O mandarim lhe deu a chapa de pra-ta, e notando vê-lo moço, se virou a D. João e lhe disse que não fizesse pouco caso do socorro que vinha buscar, que as embarcações dos ladrões eram nove muito grandes, com muita artilharia e muni-ções de guerra, afora outras pequenas, e mais de dois mil homens de peleja com muitas armas, saligues29 [e] estrepes de ferro para quando abalroam. Ao que respondeu D. João que não qui-sera ele senão que fora muito mais o poder, que para tão pouco meia-hora não havia[m] que fazer neles cem portugueses, quanto mais que para o sa-tisfazer mandaria duzentos, os quais bastavam para duzentos juncos; e não se espantasse falar tão con-fiado, porque falava como capitão muito antigo e experimentado na guerra, em que sempre servira a seu rei, principalmente sendo capitão em Malaca. O mandarim ficou mais esforçado, mas a pouca experiência que até então dos portugueses tinha não celebrou muito este prometimento. Todavia, fez seus cumprimentos, e fazendo-se já tarde pareceu bem recolherem-se, ficando assentado dar-se-lhe o dito socorro, e com a mor brevidade que pudesse ser. E, com isto, o mandarim se tomou [a] embarcar, por ter a pousada no mar, e D. João Pereira se foi para casa, todos com a ordem que vieram.

Planta de Macau, c. 1640, in SILVEIRA, Luís, ed., Livro das Plantas das Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1991, p. 109.

NOTAS

* Ms., Macau, 1565.

1 O embaixador Gil de Góis havia pedido para a Índia o envio de dois elefantes, que deveriam ser incluídos no presente a oferecer ao imperador chinês. Esperava-se que esta singular dádiva contribuísse para cimentar a credibilidade da embai-xada portuguesa.

2 Diogo Pereira exercera funções de capitão-mor de Macau até 1564, data da chegada àquele estabelecimento de D. João Pe-reira, que trazia uma mercê régia da "viagem do Japão", a qual implicava normalmente a posse da capitania de Macau enquanto o benificiário ali estanciasse. Diogo Pereira era um dos mais abastados mercadores portugueses que circulavam pelo Extremo Oriente, tendo estado associado desde a pri-meira hora aos destinos de Macau (cf. supra, pp. 57 - 65).

3 Chincheu: termo que designava o litoral de Fuquiém, ou mais particularmente a região da baía de Amói (Xiamen), então muito frequentada pelos wokou, bandos de piratas multinacionais.

4 Leia-se "imputavam".

5 Muitos textos portugueses da época descrevem em porme-nor a prática chinesa de açoitar os criminosos com canas de bambu (cf. supra, pp. 57 - 65).

6 Os nossos textos repetem frequentemente este tópico da fra-queza dos chineses, juízo que se aplicava apenas à gente co-mum.

7 Tancoão: Dongguan, localidade situada a cerca de dez léguas para leste de Cantão.

8 A população de Macau oscilava ao longo do ano; esta infor-mação revela-nos que em 1564 viveriam na cidade cerca de três centenas de portugueses, número que em épocas de na-vegação mais intensa deveria aumentar consideravelmente.

9 Falcão pedreiro: peça de artilharia que utilizava balas de pe-dra.

10 Luís de Melo Pereira trazia uma mercê de uma "viagem do Japão" e acabara de chegar ao litoral chinês oriundo de Java, onde carregara pimenta.

11 A ilha de Timor, frequentada pelos portugueses desde cerca de 1515, era grande produtora de sândalo branco, madeira aromática muito apreciada na China, onde era utilizada não só em mobiliário, mas sobretudo em incensos, largamente aplicados nos mais variados rituais de vida quotidiana.

12 Leia-se "tê-lo-iam tomado".

13 João de Escobar confunde aqui a designação do funcionário imperial — certamente algum censor —, já que o chumbim (ou chumpim, chinês zongbing) era um mero comandante do exército provincial.

14 Tomé Pereira era um chinês lusitanizado que estava ao ser-viço de Diogo Pereira.

15 Isto é, "intérprete".

16 Jerubaça ou jurubaça: intérprete.

17 Sic, talvez por "S. Cosme".

18 Estes seriam, sem dúvida, os mais destacados residentes portugueses de Macau.

19 Varela: templo budista.

20 Atorcelar: guarnecer ou ornar as vestiduras com torçais de seda e fio de ouro ou prata.

21 Condecoração própria da Ordem de Cristo.

22 Este termo chinês não é atestado por outras fontes quinhen-tistas.

23 Upo (chinês dubo): beleguim.

24 O bétele é um masticatório muito usado no Oriente, com propriedades estimulantes, que é composto por uma mistura de areca, cate, cal de ostras e substâncias aromáticas diver-sas, tudo embrulhado numa folha de bétele. A sua utilização pelos mandarins chineses nesta época, embora não esteja completamente posta de parte, levanta sérias dúvidas aos his-toriadores

25 O termo "chaa" do original transcreve com exactidão o chi-nês cha. Embora os portugueses que visitaram o Japão tives-sem antes feito referência à típica bebida extremo-oriental, esta parece ser a mais antiga abonação feita directamente a partir do chinês. Escassos anos mais tarde, em 1569-1570, Fr. Gaspar da Cruz mencionaria "uma água morna a que cha-mam chá", na edição evorense do seu Tratado das Coisas da China, cap. ° 13. Repare-se no género feminino aqui atribuí-do à bebida.

26 Os mandarins chineses usavam várias insígnias, como sinal da respectiva dignidade e estatuto, entre as quais se salienta-vam o cinto, o barrete e uma espécie de "orelhas" aplicadas ao barrete. Os mandarins eram normalmente funcionários públicos que haviam cumprido pelo menos um dos três graus do sistema de exames imperiais (sucessivamente equivalentes ao bacharelato, licenciatura e doutoramento). Os cargos militares, em determinadas ocasiões, podiam ser ocupados por mandarins menos graduados, o que talvez explique a au-sência de uma das insígnias no funcionário que visitou Ma-cau.

27 Aparentemente, João de Escobar encontrou semelhanças entre o mandarim chinês e o antigo vice-rei D. Constantino de Bragança (g. 1558-1561).

28 Posteriormente, D. João haveria de nomear por capitão da força expedicionária portuguesa Luís Pereira de Melo, ho-mem mais popular entre os habitantes de Macau, e susceptí-vel de conseguir mais apoios, do que o jovem fidalgo inicial-mente indicado. D. Manuel de Castro, apesar do seu elevado estatuto social, era talvez demasiado jovem para impor disci-plina e respeito a homens muito experimentados nos mares da China.

29 Saligues: antiga arma de arremesso.

desde a p. 67
até a p.