Antologia Documental

COMENTÁRIOS DO GRANDE AFONSO DE ALBUQUERQUE*

Afonso Brás de Albuquerque

Brás de Albuquerque (1500-1580) era filho do célebre governador da Índia e resolveu preparar, a partir da correspondência que tinha na sua posse, os Comentários de Afonso de Albuquerque, de modo a fazer justiça aos feitos do pai, insuficientemente destacados pelos cronistas da Índia. O seu volumoso tratado foi pela primeira vez impresso em Lisboa em 1557, conhecendo desde então um rela-tivo sucesso, já que em 1576 era publicada, também na capital do Reino, uma edição corrigida e amplia-da. Afonso de Albuquerque, durante a sua permanência em terras asiáticas, nunca viajou para leste de Malaca, cidade que conquistou para a coroa lusitana em 1511. Assim, os Comentários não deveriam incluir qualquer descrição alargada do Celeste Império, tanto mais que à data da sua morte, em 1515, ainda mal se haviam iniciado os primeiros contactos luso-chineses. A 1.a edição da obra, com efeito, pouca atenção presta à China, que é referida quase de passagem, sem qualquer destaque especial.

Curiosamente, porém, o mesmo não se passa com a 2.a edição, que inclui já uma breve, e antes inédita, incursão por terras sínicas, a pretexto da embaixada enviada a Pequim pelo antigo sultão de Malaca. A justificação é simples: na época em que Brás de Albuquerque preparava a reimpressão da biografia albuquerquiana, a China assumira já um papel de extraordinário relevo na visão portuguesa da Ásia, de forma que seria difícil publicar uma obra sobre assuntos asiáticos sem atribuir algum relevo ao longínquo Império do Meio, onde os portugueses, além do mais, se haviam estabelecido de forma duradoura desde 1557. Este episódio da embaixada malaia, onde o imperador chinês sanciona a conquista de Malaca pelos portugueses, aparecerá mais tarde nas páginas da Peregrinação de Femão Mendes Pinto (cf. infra, pp. 143 -151), publicada apenas em 1614, podendo alimentar especulações sobre as relações existentes entre ambas as obras. Não é improvável que Brás de Albuquerque tivesse colhido o episódio num primeiro esboço das "memórias" romanceadas de Femão Mendes a que terá tido acesso, pois o célebre andarilho regressou do Oriente a Portugal em 1558, sabendo-se que dez anos mais tarde tinha já a composição da sua obra bem avançada.

Fonte utilizada: ALBUQUERQUE, Afonso Brás de, Comentários de Afonso de Albuquerque, edição de Joaquim Veríssimo Serrão, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1973,2 volumes (parte 3, pp. 148-152). Transcrição parcial. O texto foi modernizado, colocando-se entre parênteses rectos algumas palavras que tomam a leitura mais acessível.

Frontispício da 1.a edição dos Comentários de Afonso de Albuquerque, por Afonso Brás de Albuquerque, Lisboa, 1557.

DE COMO O REI DE MALACA, DEPOIS DE LHE OS PORTUGUESES TEREM GANHADO A CIDADE, SE RECOLHEU AO REINO DE PÃO E MANDOU UM EMBAIXADOR AO REI DA CHINA, PEDINDO-LHE SOCORRO.

Chegado o rei de Malaca ao reino de Pão,1 ven-do-se sem nenhum remédio, determinou mandar um embaixador ao rei da China,2 pedindo-lhe socorro para tomar a cobrar a cidade que tinha perdido, obri-gando-o, para o nisto favorecer, à amizade antiga que os reis de Malaca tiveram sempre com os da China e à obediência que como seus vassalos lhe tinham. E, para mais autorizar esta embaixada, quis que fosse a este negócio um seu tio, que se chama-va Tuão Nacem Mudaliar, em quem confiava mui-to, o qual, depois de ser despachado, se veio em-barcar ao rio de Muar, donde se partiu em um junco com sua mulher, acompanhado de alguns mouros, seus criados.3

E chegado à cidade de Cantão, que é o porto da China onde todos aqueles que navegam para aque-las partes vão aportar, os governadores dela, pelo costume antigo que têm, mandaram logo um men-sageiro ao rei, que estava dali [a] cento e oitenta léguas pelo sertão, fazendo-lhe saber a chegada do embaixador do rei de Malaca, que mandasse o que queria que se nisso fizesse, porque o costume da China é que nenhum estrangeiro pode passar da-quele porto nem ir ao rei sem sua licença. O men-sageiro que os governadores mandaram chegou à cidade de Pequim, onde ele estava, e tardou na jor-nada dois meses, e tomou com recado aos governa-dores que deixassem passar o embaixador com a companhia que trazia e que lhe dessem tudo o que lhe fosse necessário para seu caminho. O embaixa-dor, como teve este recado, fez-se logo prestes e partiu-se com sua mulher [a] caminho da corte, e foi sempre caminhando ao longo do rio onde havia muito nobres cidades e muito sumptuosos edifíci-os, de que não trato, porque não convém a esta his-tória.4

Chegado o embaixador à corte, foi muito bem recebido de todos os senhores e governadores da terra e, passados alguns dias, qui-lo o rei ouvir em pessoa, posto que este não era o seu costume, por-que ninguém o vê e correm os negócios por ho-mens que governam a terra. E depois de lhe o em-baixador fazer sua cortesia ao modo e costume dos chineses, lançou-se aos seus pés e com muitas lá-grimas lhe pediu que quisesse ajudar o rei [de Malaca] seu senhor naquele trabalho em que esta-va, porque nele tinha toda sua confiança. O rei o mandou alevantar e disse-lhe que lhe contasse o negócio como passara; ele lho contou, porque a tudo fora presente, e disse-lhe que o rei seu senhor, de-pois de desbaratado, se recolhera ao reino de Pão e ali ficava esperando que ele o favorecesse e ajudas-se com gente e armada, para se tornar a empossar do reino e vingar-se das afrontas que o capitão de el-rei de Portugal lhe tinha feito. E posto que o rei da China tinha já sabido pelos chineses que vieram de Malaca tudo o que se passara,5 folgou de ouvir o embaixador, e muito particularmente lhe pergun-tou pela pessoa e autoridade do grande Afonso de Albuquerque e os portugueses que homens eram e o modo que tinham no pelejar. O embaixador como era homem discreto, deu-lhe muito boa razão de tudo, de que ficou muito satisfeito.

Passadas estas práticas, disse-lhe o rei que se fos-se agasalhar, que ele o despacharia e faria tudo o que pudesse, e não lhe quis dar palavra de o ajudar, porque sua tenção e desejos era ter amizade com el-rei de Portugal e com o seu capitão Afonso de Albuquerque, e mandá-lo visitar, assim pelas gran-des novas que tinha de sua pessoa, como também pelo bom tratamento que fizera aos chineses que achara no porto de Malaca, e desejar de ter comér-cio na sua terra. E ajudou muito a isto as queixas que os mercadores chineses tinham das tiranias que o rei de Malaca lhes fizera em suas mercadorias, os dias que estiveram na terra.6

O embaixador andou muito tempo na corte sem poder haver despacho, e neste tempo lhe morreu sua mulher. E passados alguns dias, [o imperador] respondeu-lhe por seus oficiais, escusando-se do so-corro que lhe pedia, dando-lhe suas razões para o não poder fazer, e a principal era a guerra que tinha com os tártaros. O embaixador com esta resposta se partiu logo e, chegando à cidade [de] Janquileu, vendo-se mal despachado e sua mulher morta, de pura paixão faleceu, e man-dou fazer uma capela para seu enterramento no arrabal-de da cidade em que jaz en-terrado em uma sepultura cercada de grades de latão, na qual mandou pôr um le-treiro que diz: "Aqui jaz Tuão Nacem, embaixador e tio do grande rei de Malaca, a quem a morte levou pri-meiro que se vingasse do ca-pitão Albuquerque, leão dos lobos do mar."

Junco chinês, in CRUZ, Gaspar da, Tratado em que se Contam Muito por Extenso as Coisas da China, Macau, Museu Marítimo, Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento, 1996.

NOTAS

* 2.a edição: Lisboa, 1576.

1 Após a conquista de Malaca em 1511, o antigo sultão da cidade refugiou-se no sultanato de Pão, situado na parte oriental da Pe-nínsula Malaia.

2 Malaca era então um estado de-pendente da China, enviando re-gularmente a Pequim embaixadas tributárias. De acordo com a pri-meira edição dos Comentários, o sultão Mahmud, depois da con-quista portuguesa da cidade, mui-to "anojado" e descontente pela perda da sua cidade, tinha-se reti-rado para o reino de Pão, onde morrera.

3 Cristóvão Vieira, na sua carta de 1534 (cf. supra, pp. 32 - 35), transmite algumas notícias sobre este embaixador malaio que vi-sitou a China.

4 Brás de Albuquerque recusa re-petidamente fornecer descrições das terras onde se passam os acontecimentos que narra, alegando que outros mais habi-litados o haviam feito antes dele. Referia-se provavelmente a Tomé Pires e a Duarte Barbosa (cf. supra, pp. 18 - 25 e 30-31).

5 Por ocasião da conquista de Malaca, encontravam-se naque-la cidade vários juncos chineses, que foram muito bem trata-dos por Afonso de Albuquerque.

6 O carácter ficcional desta passagem parece óbvio, assim como são claras as suas intenções apologéticas: Brás de Albuquerque, utilizando a figura do imperador chinês, pre-tendia apenas salientar a importância de Afonso de Albuquerque, que era admirado por um tal monarca. Com efeito, muito dificilmente se poderia imaginar o imperador Zhengde preocupado com as façanhas do governador portu-guês ou com o incremento das relações comerciais entre por-tugueses e chineses.

desde a p. 89
até a p.