Antologia Documental

DE MISSIONE LEGATORUM IAPONENSIUM*

P.e Duarte de Sande

Os padres iesuítas em serviço no Oriente, por volta de 1579, perante os estrondosos suces-sos conhecidos pela missionação cristã no arquipélago do Japão, decidiram organizar o envio à Europa católica de uma embaixada constituída por quatro jovens nobres nipónicos. A chegada destes exóticos emissários contribuiria para realçar o importante papel desempenhado pela Companhia de Jesus na cristianização do longínquo mundo asiático, possibilitando uma renovada angariação de apoios materiais e humanos. Além disso, os japoneses poderiam assim testemunhar o preponderante papel desempenhado pela Igreja católica nas regiões europeias meridionais, facto que decerto aumentaria o já significativo prestígio gozado pelos inacianos no Império do Sol Nascente. A missão concretizou-se graças ao especial empenho do padre Alexandre Valignano, que na altura desempenhava as funções de Visitador jesuíta, e os embaixadores japoneses largaram de Nagasáqui em Fevereiro de 1582, para um longuíssimo périplo que os levaria sucessivamente a Macau, Goa, Lisboa, Madrid e Roma, para daí encetarem de novo o regresso ao Japão, onde chegaram seis anos mais tarde.

Valignano delineou então o projecto de editar uma descrição da viagem, que seria preparada a partir dos diários mantidos ao longo da jornada pelos jovens nipónicos. Esta obra, para alcançar uma maior difusão internacional, teria de ser redigida em latim. O encargo foi atribuído ao padre Duarte de Sande, eminente latinista que desempenhava funções no colégio da Companhia de Jesus em Macau, e em 1590 os prelos jesuítas recém-chegados da Europa imprimiam naquela cidade o itinerário De Missione Legatorum laponensium ad Romanam Curiam, em forma de diálogo, obra que hoje é de uma extrema raridade. Mais do que uma simples descrição de viagem, a obra transformou-se numa verdadeira enciclopédia geográfi-ca e cultural, com secções dedicadas às principais regiões visitadas pelos embaixadores. Uma dessas secções é dedicada precisamente à China, e nela se incluem algumas notícias inéditas do ponto de vista europeu, que acabavam de ser obtidas no interior do Celeste Império pelos missionários jesuítas, e em especial pelo padre Mateus Ricci, que desde 1583 haviam conseguido a tão desejada entrada em território chinês. O extracto seguinte apresenta uma imagem entusiástica, mas bastante fidedigna, da realidade sínica, tal como aparecia aos europeus de finais do século xvI.

Fonte utilizada: Um Tratado sobre o Reino da China dos Padres Duarte Sande e Alessandro Valignano (Macau, 1590), edição de Rui Manuel Loureiro, Macau, Instituto Cultural, 1992, pp. 33-47. Transcrição parcial. A pontuação foi ligeiramente alterada e os topónimos foram modernizados, sendo igualmente corrigidos alguns lapsos de tradução.

BREVE DESCRIÇÃO DA CHINA.

Lino

A propósito do reino da China (Miguel) que é o nosso vizinho mais próximo, ouvimos e continua-mos diariamente a ouvir tantos relatos, que vos que-remos pedir uma descrição mais verdadeira do que extensa sobre ele. E se conheceis algo mais do que aquilo que dizem continuamente os rumores que cir-culam entre nós, escutar-vos-emos diligentemente.

Miguel

Em virtude dos relatos sobre este famoso reino se terem vulgarizado entre nós,1 procurarei expor a verdade das coisas, ordenando as muitas e variadas informações recebidas dos padres da Companhia [de Jesus] que ao presente residem na China.2

Em primeiro lugar, sabe-se que, de todas as partes do continente principal,3 este reino da China é o mais oriental, não obstante algumas ilhas, como o nosso Japão natal4 e a ilha de Manila,5 estarem situadas para oriente da própria China. No que respeita aos limites e fronteiras deste reino, podemos nomear uma certa ilha que fica mais a oeste, vulgarmente chama-da Hainão, que se situa a 19 graus de latitude norte.6 O continente vizinho a esta ilha estende-se para les-te, até ao lugar onde se situa o promontório da cida-de chamada Nimpó ou Liampó.7 Não obstante, cor-rendo a partir deste lugar para norte, estende-se por um tão grande espaço, que os habitantes desta lon-gínqua parte da China observam o pólo norte elevar-se pelo menos 50 graus, e talvez mesmo mais. Pelo que uma pessoa pode facilmente conjecturar (per-mitam-me que fale como um astrónomo) como é enorme a latitude deste reino, a qual se estende de sul para norte por mais de 540 léguas. No que diz respeito à longitude, que se calcula de leste para oes-te, não está ainda tão rigorosamente determinada que se possa exprimir em graus.8 É no entanto certo que, no mapa em que os chineses descrevem a forma do seu reino, a latitude do mesmo não excede em muito a longitude.

Este reino é assim, sem qualquer dúvida, o maior e mais extenso de todos os reinos terrestres; pois embora diversos outros reis tenham sob a sua juris-dição vários reinos dispersos que no seu conjunto são maiores e mais extensos que toda a China, ne-nhum deles possui um reino que seja tão extenso e amplo como aquele que o muito poderoso rei da China domina.9

Agora, se formos inquirir quais os seus rendimen-tos e tributos, a verdade é que este rei, de entre to-dos os outros, é dotado dos maiores e mais ricos, tanto no que respeita à fertilidade e grandeza de domínios, como no que toca à cobrança e exacção dos seus direitos. São exigidos tributos aos seus súbditos não só pelas terras, casas e mercadorias, mas também por todas as pessoas de cada família. Deve também entender-se que praticamente nenhum senhor ou príncipe na China tem autoridade para cobrar para si próprio qualquer tipo de rendimen-tos, ou para colectar quaisquer rendas no interior dos seus senhorios, estando esse poder apenas nas mãos do rei. Na Europa é mais vulgar verificar-se o contrário, como já atrás se indicou.10

Neste enome reino existem quinze províncias, cada uma das quais poderia considerar-se um grande reino em si. Seis destas províncias confi-nam com o mar, nomeadamente (usarei os pró-prios nomes chineses) Coantum, Foquien, Chequiam, Nanquin, Xantum, Paquim.11 As ou-tras nove são províncias interiores, nomeadamen-te Quiansi, Hunquam, Honan, Xiensi, Xansi, Suchuon, Queicheu, Junan e Coansi.12

Entre todas as referidas províncias, duas são de-signadas para assento da corte do rei e do trono real, quer dizer, Pequim para sua corte do norte e Nanquim para a sua corte do sul. Os reis da Chi-na costumavam residir sempre na corte meridio-nal, mas depois, em virtude das diversas e cruéis guerras desencadeadas pelos tártaros, foram for-çados a fixar o seu assento e moradia régias na mais longínqua província do norte.13 Por isso, esses confins setentrionais do reino têm grande abundância de fortalezas, máquinas de guerra e guarnições de soldados.

Leão

Ouvi falar, entre esses equipamentos militares, de uma estranha e admirável muralha, com a qual o povo da China reprime e repele as tentativas dos tártaros para invadirem os seus territórios.

Miguel

Na verdade, essa muralha de que ouvistes falar é digna da maior admiração, pois corre ao longo das fronteiras de três províncias setentrionais, Xiensi, Xansi e Pequim. E dizem que se estende por quase trezentas léguas de comprimento.14 E [dizem tam-bém] que é construída de tal modo que não impede os cursos ou correntes de nenhuns rios, pois os seus leitos são atravessados e fortificados com magnífi-cas pontes e outras defesas. Não é no entanto im-provável que a dita muralha seja construída de modo a proteger e rodear apenas as passagens baixas e fáceis, pois as montanhas entre essas passagens baixas são, pela sua própria resistência natural e altura inacessível, uma fortificação suficiente con-tra o inimigo.

Lino

Dizei-nos (Miguel) se o reino da China é, ou não, tão povoado de gente como tão frequentemente te-mos sido informados?

Miguel

É de facto (Lino) um reino muito populoso, como me certificaram os padres da Companhia, os quais, não obstante terem visto várias províncias da Eu-ropa reputadas pela grande quantidade dos seus habitantes, admiram enormemente as infinitas multidões de gente da China. Contudo, estas mul-tidões não estão desordenada e confusamente dis-persas pela terra, mas muito conveniente e ordei-ramente distribuídas pelas suas vilas e famosas cidades.

Existem, aliás, diversos tipos de aglomerados destes entre os chineses, pois têm determinadas cidades principais a que chamamfu, 15 outras ci-dades, mais pequenas, chamadas cheu, 16e um ter-ceiro tipo, chamado hien, 17 que são na verdade vilas fortificadas, mas que não são privilegiadas com as dignidades e prerrogativas das cidades. A estas podem acrescentar-se dois outros tipos de vilas mais pequenas, que são parte aldeias e parte guarnições de soldados. Ao primeiro e prin-cipal tipo pertence essa nobre cidade situada perto do porto de Macau, chamada pelos chineses Coanchefu, mas que os portugueses vulgarmen te designam por Cantão, que é antes o nome co-mum da província e foi uma palavra por eles im-posta.18 Ao terceiro tipo pertence uma vila, que é ainda mais próxima do porto de Macau, a que os portugueses chamam Anção, mas os chineses Hiansanhien. 19

Todas as referidas províncias, portanto, têm as suas cidades maiores, chamadas fu, e as ci-dades menores, chamadas cheu, às quais se po-dem acrescentar as outras vilas. Além disso, em cada província há uma determinada cidade ca-pital, a que chamam Metrópole Provincial, na qual residem os principais mandarins, como a cidade capital que há pouco mencionei, que é a cabeça de toda a província chamada Cantão. O número de cidades maiores por todo o reino é superior a 150, e há tantas, ou antes, uma quan-tidade maior de cidades inferiores. Quanto a vi-las fortificadas não dotadas de privilégios mu-nicipais, há mais de 1120. As aldeias e guarni-ções não têm conta. Para além das ditas locali-dades, há um número incrível de quintas e gran-jas, pois não é fácil encontrar em toda a terra um lugar deserto e despovoado.20

Agora no mar e nos rios há uma tal abundância de gente e família completas habitando em bar-cas, que mesmo os próprios europeus ficam ma-ravilhados; tanto que alguns, embora injustificadamente, ficaram persuadidos que há tanta gente a viver na água como na terra.21 Mas não foram induzidos a pensar assim sem moti-vos, pois como o reino da China é todo cruzado por amplos rios e tem em muitos lugares grandes extensões de água, sendo as barcas e os barcos muito comuns por toda a parte, poderia facilmente supor-se que o número de gente aquática era igual ao dos habitantes da terra. Isto deve ser, pois, en-tendido como um exagero, ao passo que, de fac-to, as cidades enxameiam de cidadãos e o campo de camponeses.

Leão

A abundância de gente de que nos falais parece muito estranha, pelo que presumo que o solo deve ser muito fértil, os ares devem ser salubres e todo o reino deve estar em paz. Revista de Cultura, 1997

Miguel

Presumis, amigo Leão, muito acertadamente es-sas três características, pois todas se distinguem de tal maneira, que não é fácil discernir qual delas três será mais excelente neste reino. E daqui se veio a formar entre os portugueses a ideia de que o reino da China nunca teria sido visitado por es-ses três grandes e tristes flagelos da humanidade que são a guerra, a fome e a peste. Mas essa opi-nião é mais vulgar do que verdadeira, já que tem havido terríveis guerras intestinas e civis, como está registado em muitas e muito fidedignas his-tórias,22 e já que, igualmente, algumas províncias deste reino, mesmo nos nossos dias, têm sido afli-gidas por pestilências e doenças contagiosas, e também pela fome. Porém, não pode ser negado que as três referidas vantagens florescem e abun-dam enormemente na China.23

Pois, falando em primeiro lugar da salubridade dos ares, os próprios padres da Companhia [de Je-sus] são testemunhas de que é raro encontrar em qualquer outro reino tanta gente que viva até uma idade tão decrépita e avançada, tal é a multidão que ali existe de graves e idosas personagens. E nem sequer usam tantos preparados e mezinhas, nem tantos e tão variados métodos de curar doen-ças como nós vimos ser habitual na Europa, pois entre eles não praticam a flebotomia ou sangria.24 Mas todas as suas curas, como as nossas no Ja-pão, se conseguem por meio de jejuns, infusões de ervas e poções ligeiras ou suaves. A este res-peito, porém, deixemos cada nação seguir os seus próprios costumes.25

Agora, no que respeita à fertilidade do solo, este reino certamente se distingue, ultrapassando todos os outros reinos do Oriente. Contudo, isto não é nada, comparado com a fartura e abundância da Europa, como já referi largamente nos tratados an-teriores.26 Mas o reino da China é, neste aspecto, tão encarecidamente exaltado, porque não há outra região nas partes do Oriente que tenha tanta abun-dância de mercadorias e de onde se faça tanto tráfi-co para o exterior. Como este grande reino está re-pleto de rios navegáveis, de modo que as mercado-rias podem ser facilmente transportadas de uma província para a outra, os portugueses encontram tal abundância de produtos numa mesma cidade,27 que é talvez o maior mercado de todo o reino, que estão convencidos de que esta mesma região, de entre todas as outras regiões orientais, é a que mais abunda em mercadorias.

Há, de facto, vários tipos de mercadorias em que a terra da China está mais bem provida do que qual-quer outro reino. Esta região fornece especialmen-te vários tipos de metais, dos quais o principal, tan-to em excelência como em abundância, é o ouro. Do qual se trazem tantas peças da China para a Ín-dia e para a nossa terra do Japão, que ouvi dizer que num mesmo e único navio, no presente ano,28 foram levadas para a nossa terra, como mercado-ria, 2000 dessas peças de ouro maciço, às quais os portugueses vulgarmente chamam pães de ouro. E um desses pães vale quase 100 ducados.29Por isso é que no reino da China tantas coisas são decoradas com ouro, como por exemplo camas, mesas, gra-vuras, imagens, liteiras, nas quais formosas e deli-cadas damas são transportadas às costas dos seus servos. Os portugueses não compram apenas estes pães de ouro, mas também grande quantidade de fio de ouro e de folhas de ouro, pois os chineses conseguem muito habilmente bater e moldar o ouro em placas e folhas. Há também grande reserva de prata, do que, para abreviar a minha argumentação, serve de demonstração o facto de os mercadores portugueses trazerem anualmente para a cidade cha-mada Cantão, para comprarem mercadorias, pelo menos 400 sestércios dela, e nenhuma ser de novo levada para fora do reino da China. Porque os chi-neses, como têm abundância de todas as coisas ne-cessárias, não são muito curiosos ou desejosos de quaisquer mercadorias de outros reinos. Faço aqui omissão das minas de prata, as quais existem em grande número na China, embora haja grande se-gredo na extracção da prata, pois o rei teme muito que isto provoque o despertar da ambição e da ga-nância em muitos. A prata que usam é, na sua mai-or parte, razoavelmente fina e limpa de impurezas, pois ao purificá-la usam de grande diligência. O que dizer do seu ferro, cobre, chumbo, estanho e outros metais, e também do seu azougue? De todos eles há grande abundância no reino da China, e dali são transportados para diversos países. A isto se pode acrescentar a maravilhosa quantidade de pérolas que na ilha de Hainão se extraem de conchas recolhidas muito habilmente por certos mergulhadores, e que muito aumentam as rendas do rei.

Mas agora, porém, tratemos da seda ou dos filamentos do bombice, de que há grande fartura na China, de modo que, tal como o agricultor trabalha no adubo das terras e na sementeira do arroz, assim as mulheres empregam uma grande parte do seu tempo a cuidar dos bichos-da-seda e a fiar e a tecer a seda. Por isso, todos os anos o rei e a rainha vêm com grande solenidade a uma praça pública, tocan-do ele no arado e ela na amoreira, com as folhas da qual se alimentam os bichos-da-seda; e ambos, com esta cerimónia, exaltam os homens e as mulheres para as respectivas actividades e trabalhos. De ou-tro modo, durante o ano inteiro, ninguém para além dos principais mandarins consegue ver o rei. Esta seda ou filamento de bombice existe em tal abun-dância, que com ela se carregam anualmente três navios vindos da Índia para Macau, e pelo menos um para a nossa terra,30 a qual não é só usada na Índia, mas também levada para Portugal. E não é só a seda em bruto que é transportada para lá, mas também diversos e variados materiais com ela teci-dos, pois os chineses distinguem-se na arte da tece-lagem e assemelham-se enormemente aos nossos tecelões da Europa.31

O reino da China tem igualmente grande abun-dância de especiarias e de essências muito raras, e especialmente de canela (embora não se compare à canela de Ceilão),32de cânfora33 e também de almíscar, o qual é muito bom e abundante.34 O almíscar deriva o seu nome de um animal com o mesmo nome, o qual se assemelha a um castor, das partes do qual, depois de batidas e putrificadas, se liberta um cheiro extremamente delicado e fragran-te, que os portugueses muito apreciam. Chamam vulgarmente papos àquelas partes dos ditos animais, por serem semelhantes a papos de aves, e levam grande quantidade deles para a Índia, e para nós, no Japão. Mas quem acreditaria que existe tanta quantidade de gossipina35 ou algodão-em-rama na China? Com ela se fabrica uma grande variedade de peças de roupa, semelhantes às de linho; as quais nós próprios usamos frequentemente, e que tam-bém são transportadas por mar para muitas regi-ões.

Tratemos agora dessa substância barrenta ou moldável a que vulgarmente se chama porcelana, que é completamente branca e que deve ser consi-derada como o melhor material do género que há no mundo, com a qual se fabricam muito engenho-samente vasilhas de todos os géneros. Digo que é o melhor barro do mundo por três razões, a saber: a sua pureza, a sua beleza e a sua resistência. Existe na verdade um outro material mais esplêndido e mais precioso, mas não tão isento de impurezas nem tão duradouro, que é o vidro, o qual na verdade é imaculado e limpo, mas se parte facilmente. Esta substância não é extraída em toda a China, mas apenas numa das quinze províncias, em Quiansi, onde muitos trabalhadores são empregados conti-nuamente nessa tarefa. Não fabricam com ela ape-nas peças pequenas, como taças, pratos, saleiros, jarros e outros que tais, mas também vasilhas e jarrões enormes em grande quantidade, muito fina e habilidosamente lavrados, os quais, em virtude do perigo e dificuldades envolvidos no seu manuseamento, não são transportados para fora do reino, mas são usados apenas no interior dele, e es-pecialmente na corte do rei. A beleza deste materi-al é muito realçada pela variedade de pinturas, as quais são feitas com certas cores, aplicadas logo após o fabrico, às quais se mistura ouro, o que faz as ditas vasilhas parecerem ainda mais belas. É ad-mirável o apreço que os portugueses têm por estas peças, uma vez que, com enormes dificuldades, as transportam não só para o Japão e para a Índia, mas também para vários países da Europa.

Às mercadorias acima referidas podem acrescen-tar-se diversas e variadas plantas, cujas raízes são muito saudáveis para o corpo dos homens e muito medicinais, as quais são levadas para as nossas ilhas do Japão, e também para muitas outras ilhas. Entre estas encontra-se aquela raiz a que, por uma sinédoque, chamam raiz-da-china, a qual tem a no-tável propriedade de expelir dos corpos dos homens os humores capazes de gerarem doenças contagio-sas.36 A estas podem acrescentar-se as canas-de-açúcar, pois no reino da China existem grandes re-servas de excelente açúcar, as quais são carregadas em grande quantidade pelos portugueses, tanto para o nosso país como para a Índia.

O que acabei de dizer refere-se apenas às merca-dorias, das quais beneficiam, além deste reino, muitas outras nações. No que diz respeito aos fru-tos que fazem parte do sustento diário e da alimentaçao comum, dificilmente se poderiam enu-merar. Contudo, a terra da China não é propícia ao cultivo de três produtos a que na Europa se dá tanta importância, a saber: cereais, vinhas e oliveiras;37 e os chineses nem sequer sabem o nome da olivei-ra, do fruto da qual se extrai o azeite, nem o da vinha. A província de Pequim não é totalmente des-tituída de vinho, mas se é trazido de outros lugares ou se ali é fabricado, não o posso afirmar. Tem abun-dância, porém, de muitos outros licores, que não são desagradáveis e que podem substituir o vinho. Agora, no que toca aos cereais, existe na verdade trigo semeado em todas as províncias [chinesas], embora o arroz seja de longe mais usado e solicita-do que ele. Assim, no que respeita a estas duas coi-sas úteis à vida do homem, a saber, vinho e cereais, o reino da China pode ser comparado ao Japão

planta de Macau incluída na Ásia Portuguesa, de Manuel de Faria e Sousa, Lisboa,1649; in Du Tageà la Mer de Chine, coordenação de Simonetta Luz Afonso e Jean-Paul Desroches, Paris, Réunion des Musées Nationaux,1992, p.151.

NOTAS

* 1.a edição: Macau, 1590.

1 Por volta de 1590, de facto, corriam em Portugal numerosas descrições da China, algumas delas impressas em obras de grande circulação. A mais célebre de todas essas descrições seria decerto o Tratado das Cousas da China de Frei Gaspar da Cruz (cf. supra, pp. 75 - 87).

2 Os jesuítas italianos Mateus Ricci e Miguel Ruggieri, que foram os primeiros missionários católicos dos tempos mo-dernos a obterem autorização das autoridades chinesas para se estabelecerem no interior do Celeste Império, fundaram a missão de Zhaoqing, na província de Guangdong, em 1583.

3 O continente euro-asiático.

4 O diálogo, supostamente, desenrola-se entre jovens japone-ses.

5 Isto é, a ilha de Luzón (ou Lução), nas Filipinas.

6 O paralelo 20 toca a costa norte de Ainão ou Hainan.

7 Ningbo, na província de Chequião.

8 Esta observação poderia referir-se tanto ao desconhecimento pelos europeus do interior da China, como à impossibilidade técnica de na altura se medir com exactidão a longitude. De qualquer forma, vale a pena mencionar que não eram invulgar os padres jesuítas possuírem apurados conhecimentos de cosmografia e astronomia.

9 A desmesurada extensão da China, quando medida em pa-drões europeus, nunca deixou de surpreender os observado-res portugueses.

10 Referência a uma anterior secção da obra.

11 Estas seis "províncias" podem ser respectivamente identifi-cadas com Guangdong, Fuquiém, Chequião, área metropoli-tana de Nanzhili (que compreendia as modernas províncias de Anhui e Jiangsu), Xantum e área metropolitana de Pe-quim (moderna província de Hebei).

12 Estas nove "províncias" podem ser respectivamente identi-ficadas com Jiangxi, Huguang (que inclui as actuais provín-cias de Hunan e Hubei), Henan, Shaanxi, Shanxi, Sejuão, Guizhou, Iunão e Guangxi.

13 A capital dos Ming, com efeito, deslocou-se de Nanquim para Pequim por volta de 1420, como resposta às crescentes ameaças tártaras nos confins setentrionais do império.

14 A Grande Muralha da China corre hoje desde a actual pro-víncia de Gansu até ao golfo de Bohai, numa extensão apro-ximada de 2700 km.

15 “Fu” é um termo chinês que designa um distrito ou prefeitu-ra, bem como a respectiva cidade principal. As grandes cida-des chineses ultrapassavam frequentemente a dimensão das suas congéneres europeias.

16 “Cheu” (zhou) é o termo chinês que designa a subprefeitura, dependente de “fu”, assim como a respectiva localidade prin-cipal.

17 Xian é o mesmo que comarca.

18 Os portugueses, desde os seus primeiros contactos com a China, em 1513, chamaram “Cantão” à cidade de Guangzhou, confundindo o nome da cidade com o da província de Guang-dong, onde a mesma se situa. Este equívoco acabou por se generalizar, difundindo-se depois pelas outras línguas europeias. Esta parece ter sido a primeira denúncia impressa de tal erro.

19 Os portugueses chamavam Anção à cidade de Xiangshan, da qual dependia administrativamente o estabelecimento de Macau.

20 Fontes chinesas coetâneas indicam para a fase final da di-nastia Ming os seguintes números: 159 prefeituras (fu), 240 subprefeituras (zhou) e 1144 comarcas (xian), dados que se aproximam bastante destes.

21 Os primeiros portugueses chegados a Cantão mencionam com surpresa a incrível quantidade de gente que vive cons-tantemente sobre as águas, fazendo das embarcações a sua morada permanente.

22 O autor estaria decerto a ecoar leituras de fontes chinesas feitas pelos missionários jesuítas, de entre os quais se desta-cava Mateus Ricci, pela profundidade e pela extensão dos seus conhecimentos de língua e cultura chinesas.

23 Duarte de Sande parece ter sido o primeiro autor europeu a tentar relativizar a imagem incrivelmente positiva das coisas da China que tinha sido difundida pelos viajantes e escritores portugueses do século xvI.

24 A sangria era, na antiga medicina europeia, uma terapia muito frequente, da qual se usava e abusava aos primei-ros sintomas de qualquer doença.

25 É importante sublinhar, pela sua relativa invulgaridade na época, esta atitude de franca tolerância face a determinados valores e práticas de outros povos e civilizações.

26 Referência a outras secções da obra.

27 Isto é, Cantão.

28 1589, certamente.

29 O comércio entre a China e o Japão, que desde 1549, e praticamente durante um século, esteve nas mãos de inter-mediários portugueses, consistia sobretudo no intercâmbio de seda e ouro chineses, muito apreciados no Japão, por prata nipónica, altamente cotada nos mercados do Celeste Império.

30 Isto é, para o Japão.

31 O autor fala aqui como um europeu, talvez por lapso, aban-donando momentaneamente a personagem de príncipe japo-nês.

32 A China, com efeito, produzia uma variedade de canela in-ferior à do Ceilão. Alguns autores sugeriram mesmo que o nome de "cinamomo" significaria "amomo da China".

33 A China era então o grande produtor asiático de cânfora de botica.

34 O almíscar é uma substância muito aromática, de origem animal, que era utilizada na composição de perfumes e de fármacos. O gato almiscareiro encontrava-se quase exclusi-vamente nos altos planaltos do Tibete.

35 Fibra semelhante ao algodão.

36 A raiz-da-china, a que os portugueses também chama-vam pau-da-china, é um rizoma muito vulgar naquelas partes, ao qual se atribuíam inúmeras propriedades tera-pêuticas, nomeadamente no combate às doenças de ori-gem venérea.

37 É significativa a importância que o autor atribui à trilogia alimentar fundamental dos povos mediterrânicos: pão, vi-nho e azeite.

desde a p. 121
até a p.