Antologia Documental

PEREGRINAÇÃO*

Fernão Mendes Pinto

Fernão Mendes Pinto será talvez o mais célebre escritor e viajante português do século xvI. Nascido por volta de 1514, embarcou para a Índia em 1537, em busca de honra e de fortuna, e nas duas décadas seguintes deambulou incessantemente por todo o Oriente, com particular destaque para as regiões situadas para leste do Ceilão. Frequentou regularmente a faixa marítima das províncias meridionais da China, e terá sido um dos primeiros portugueses a visitar o Japão. Durante a sua agitada e inverosímil carreira ultramarina foi soldado e mercador, embaixador e missionário, náufrago e escra-vo, contando entre as suas relações pessoais eminentes personalidades europeias e asiáticas, das quais caberia destacar o padre Francisco Xavier, com quem se cru-zou repetidamente nas rotas do Extremo Oriente. Em 1558 regressou a Portugal, na posse de considerável fortuna, dedi-cando-se, a partir de então, à redacção de uma prolixa rela-ção de "memórias", que se baseava não só nas suas próprias vivências, mas também em notícias colhidas num vasto con-junto de obras impressas sobre as "coisas orientais", que co-leccionou com cuidados de especialista.

Frontispício da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, 1614.

A Peregrinação estaria basicamente concluída por volta de 1576, tendo a fama do manuscrito trazido reputação de consagrado orientalista ao seu autor; contudo, a obra não chegou a ser impressa antes da morte de Fernão Mendes Pin-to, ocorrida em 1583. O volumoso tratado apenas seria pu-blicado em 1614, numa altura em que muitas das informa-ções por ele veiculadas já estariam irremediavelmente ultra-passadas. Contudo, a obra constituiu um verdadeiro sucesso editorial, não só pela empolgante trama narrativa, mas tam-bém porque dedicava uma especial atenção às regiões extre-mo-orientais onde nunca chegara a expansão portuguesa ofi-cial, por onde pululavam pequenas comunidades de merca-dores e de aventureiros lusitanos. E essas regiões, logicamente, haviam sido algo descuradas pelos grandes cronistas portugueses, que privilegiavam so-bretudo a história dos estabelecimentos do Estado da Índia, situados no Índico ocidental.

A matéria chinesa ocupa aproximadamente um terço das páginas da Peregrinação, constituindo um dos núcleos fundamentais da obra. Fernão Mendes Pinto relata com verosimilhança muitas das suas andanças pelos caminhos do litoral sínico entre 1540 e cerca de 1550; mas apresenta também, com recurso a diversificadas fontes, um largo e fantasioso périplo pelo interior do Celeste Império, onde alegadamente teria estado prisioneiro. A verdadeira extensão das suas andanças chinesas ainda hoje está por apurar com rigor; mas a Peregrinação apresenta-nos uma extraordinária descrição da China quinhentista, que é sublinhada por uma atitude de enorme simpatia e abertura antropológica para com os chineses. Macau nunca é referida na obra de Mendes Pinto. Contudo, o autor introduz a determinada altura uma descrição da "cidade portuguesa de Liampó" que se deverá ter baseado em notícias oriundas do estabelecimento macaense, fundado numa altura em que Mendes Pinto estava já na Índia, preparan-do o regresso ao Reino.

Fonte utilizada: PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação, edição de Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988, pp. 187-202. Transcrição parcial. O texto foi modernizado, acrescentando-se entre parênteses rectos determinadas palavras que ajudam a interpretar passagens menos claras.

Carta de Luís Jorge de Barbuda, c. 1575, incluída no Theatrum Orbis Terrarum, de Abraão Ortelius, Antuérpia, 1584; in Macau: Cartografia do Encontro Ocidente-Oriente, coordenação de Luís Filipe Barreto, Macau, Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, s. d., p. 150.

PEREGRINAÇÃO

[...]

E navegando nós desta maneira, chegámos dali a seis dias às portas de Liampó,1 que são duas ilhas [a] três léguas donde naquele tempo os portugue-ses faziam o trato de sua fazenda, que era uma po-voação que eles tinham feito em terra, de mais de mil casas, com governança de vereadores e ouvidor e alcaides, e outras seis ou sete varas de justiça e oficiais da república, onde os escrivães, no fim das escrituras públicas que faziam, punham: "E eu, Foão, público tabelião das notas e judicial nesta ci-dade de Liampó, por El-Rei nosso senhor", como se ela estivera situada entre Santarém e Lisboa.2 E isto com tanta confiança e ufania, que havia já ca-sas de três e quatro mil cruzados de custo, as quais todas, assim grandes como pequenas, por nossos pecados foram depois de todo destruídas e postas por terra pelos chineses, sem ficar delas coisa em que se pudesse pôr os olhos, como mais largamen-te contarei em seu lugar.3 E então se verá quão in-certas são as coisas da China, de que nesta terra [de Portugal] se trata com tanta curiosidade, e de que alguns enganados fazem tanta conta, porque cada hora estão arriscados a muitos desastres e desven-turas.

CAPÍTULO 67

DO QUE FEZ ANTÓNIO DE FARIA

CHEGANDO ÀS PORTAS DE LIAMPÓ,

E DAS NOVAS QUE AÍ TEVE DO

QUE SE PASSAVA NO REINO DA CHINA

Por entre estas duas ilhas a que os naturais da ter-ra e os que navegam aquela costa chamam as por-tas de Liampó, vai um canal de pouco mais de dois tiros de espingarda de largo, com fundo de vinte até vinte e cinco braças, e em partes tem angras de bom surgidouro e ribeiras frescas de água doce, que descem do cume da serra por entre bosques de ar-voredo muito basto de cedros, carvalhos e pinhei-ros mansos e bravos, de que muitos navios se pro-vêem de vergas, mastros, tabuado e outras madei-ras, sem lhe[s] custarem nada.

Surgindo António de Faria4 nestas ilhas [a] uma quarta-feira pela manhã, Mem Taborda e António Henriques lhe pediram licença para irem adiante dar recado à povoação de como ele era chegado, e saber as novas que havia na terra, e se se dizia ou soava por lá alguma coisa do que ele fizera em Noudai, 5 porque se a sua ida lá prejudicasse em alguma coisa a segurança e quietação dos portu-gueses, se iria invernar à ilha de Pulo Hinhor, 6 como levava determinado, e que de tudo o mandariam avisar com muita brevidade. Ao que ele respondeu que lhe parecia muito bem e lhes deu a licença que pediam, e escreveu também por eles algumas car-tas aos mais honrados que então governavam a ter-ra, em que lhes dava relação de todo o sucesso da viagem, e lhes pedia por mercê que o quisessem aconselhar, e lhe mandassem [dizer] o que queriam que fizesse, porque ele estava muito prestes para lhes obedecer em tudo, e outras palavras a este modo, que sem nenhum custo resultam às vezes em muito proveito. António Henriques e Mem Taborda se partiram aquele mesmo dia à tarde, e António de Faria se deixou ali ficar surto até ver que recado lhe mandavam.

Chegados os dois à povoação, já com duas horas de noite, tanto que a gente dela os viu e soube deles as novas que traziam e todo o sucesso da sua via-gem, ficaram tão espantados quanto a novidade do caso o requeria. E juntando-se a som de sino tangi-do na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que era a matriz de seis ou sete que havia mais na terra, trataram entre si sobre o que aqueles dois homens lhe[s] tinham dito; e vendo a liberalidade que António de Faria usara com eles e com todos os mais que tinham sua parte no junco, assentaram de lhe satisfazerem [essa liberalidade] em parte, com mostras de amor e agradecimento, o que por sua pouca possibilidade em todo não podiam.

E respondendo-lhe às suas cartas com uma geral, em que todos assinaram como consulta de câmara, lha mandaram com duas lanteias7 de muito refres-co, por um [tal] Jerónimo do Rego, homem fidalgo e com cãs, e de muito saber e autoridade, na qual lhe relataram com palavras, e de grande agradeci-mento, a muita obrigação em que todos lhe esta-vam, assim pela mercê que lhes fizera em lhes li- vrar suas fazendas das mãos dos inimigos, como pelo muito amor que lhes mostrara na liberalidade que usara com eles, a qual esperavam que Deus Nosso Senhor lhe pagaria com abundantíssimos bens na sua glória. E que quanto a se temer de invernar ali pelo que fizera em Noudai, estivesse nisso muito descansado, porque não andava a terra ao presente tão quieta que isso pudesse lembrar para nada, assim pela morte do rei da China,8 como pe-las dissensões que havia em todo o reino em treze opositores que pretendiam o ceptro dele, os quais todos estavam já postos em armas com seus exérci-tos em campo, para com força averiguarem o que se não podia determinar por justiça. E que o tutão9Nay, que era a suprema pessoa depois do rei em todo o governo, com mero e místico império da majestade real, estava cercado na cidade de Quoansi, 10 pelo Prechá Muão,11 imperador dos cochins, em cujo favor se tinha por certo que vinha o rei da Tartária, com um exército de 900 mil ho-mens. Assim, que a coisa andava tão baralhada e dividida entre eles, que ainda que Sua Mercê12 as-solara a cidade de Cantão, se não faria caso disso, quanto mais a cidade de Noudai, que na China, em comparação de outras muitas, era muito menos do que em Portugal pode ser Oeiras com [relação a] Lisboa. E que, pela certeza de tão boa nova, pedi-am todos a Sua Mercê alvíssaras, que se deixasse ali estar surto seis dias, para que dentro neles tives-sem eles tempo de lhe negociarem umas casas em que se agasalhasse, já que [eles] não prestavam para mais, nem por então podiam mostrar o muito que lhe deviam, conforme o desejo que todos tinham disso, e outras palavras de cumprimentos muito copiosos.

A que ele respondeu como entendeu que era ra-zão, e lhes quis fazer a vontade no que lhe pediam. E nas duas lanteias em que lhe trouxeram o refres-co, mandou os feridos e os doentes que havia na armada, os quais os de Liampó agasalharam com muita caridade, e os repartiram pelas casas dos mais abastados, onde foram curados e providos de tudo o necessário muito cumpridamente, sem lhes faltar nada. E em todos estes seis dias que António de Faria aqui esteve, não ficou homem de nome na povoação ou cidade, como todos lhe chamavam, que o não viesse visitar com muitos presentes de muitas invenções de manjares e refrescos e frutas, em tanta abundância que todos pasmávamos do que víamos, e principalmente do grande concerto e apa-rato que estas coisas traziam consigo.

CAPÍTULO 68

DO RECEBIMENTO

QUE OS PORTUGUESES FIZERAM

A ANTÓNIO DE FARIA NA POVOAÇÃO

DE LIAMPÓ

Todos estes seis dias que António de Faria aqui se deteve, como lhe tinham pedido os de Liampó, esteve surto nestas ilhas. No fim do qual tempo, um domingo antemanhã, que era o tempo aprazado para entrar no porto, lhe deram uma boa alvorada com uma música de muito excelentes falas, ao som de muitos instrumentos suaves, que dava muito gosto a quem a ouvia, e no cabo, por desfeita portu-guesa, veio uma folia dobrada de tambores e pan-deiros e sistros, que, por ser natural, pareceu muito bem. E sendo pouco mais de duas horas antemanhã, com noite quieta e de grande luar, se fez à vela com toda a armada, com muitas bandeiras e toldos de seda, e as gáveas e sobregáveas guarnecidas de telilha de prata e estandartes do mesmo, muito com-pridos, acompanhado de muitas barcaças de remo, em que havia muitas trombetas, charamelas, flau-tas, pífaros, tambores e outros muitos instrumen-tos, assim portugueses como chineses, de maneira que todas as embarcações iam com suas invenções diferentes, [cad]a qual melhor. E sendo já manhã clara, acalmou o vento [a] pouco mais de meia lé-gua do porto, a que logo acudiram vinte lanteias de remo muito bem equipadas, e dando toa a toda a armada, em menos de uma hora a levaram ao surgidouro.

Porém, antes que ela lá chegasse, vieram a bordo [do navio] de António de Faria mais de sessenta batéis e balões13 e manchuas,14 com toldos e ban-deiras de seda, e alcatifas ricas, nas quais viriam mais de trezentos homens vestidos todos de festa, com muitos colares e cadeias de ouro, e suas espa-das, guarnecidas do mesmo, em tiracolos, ao uso de África, e todas estas coisas vinham feitas com tanto primor e perfeição que davam muito gosto e não menos espanto a quem as via. Desta maneira chegou António de Faria ao porto, no qual estavam surtos, por ordem, vinte e seis naus e oitenta jun-cos, e outra muito maior soma de bancões15 e bar-caças, amarrados uns ante outros, que em duas alas faziam uma rua muito comprida, enramados todos de pinho, louro e canas verdes, com muitos arcos cobertos de ginjas, peras, limões e laranjas, e de outra muita verdura, e de ervas cheirosas, de que também os mastros e as enxárcias estavam cober-tos.

António de Faria, depois de estar surto junto de terra no lugar que para isso lhe estava aparelhado, fez sua salva de muita e muito boa artilharia, a que todas as naus e juncos, e as mais embarcações que atrás disse, responderam por sua ordem, que foi coisa muito para ver, de que os mercadores chine-ses estavam pasmados, e perguntavam se era aque-le homem, a que[m] se fazia tamanho recebimento, irmão ou parente do nosso rei, ou que razão tinha com ele, a que alguns cortesãos respondiam que não, mas que verdade era que seu pai ferrava os cavalos em que El-Rei de Portugal andava, e que por isso era tão honrado que todos os que ali estavam podi-am muito bem ser seus criados e servi-lo como es-cravos.

Os chineses, parecendo-lhes que podia ser aquilo assim, olhavam uns para os outros à maneira de espanto, e diziam: "[É] certo que muito grandes reis há no mundo de que os nossos antigos escritores não tiveram nenhuma notícia, para fazerem men-ção deles nas suas escrituras, e um destes reis, de que mais caso se deveria fazer, parece que deve ser o destes homens, porque segundo o que dele temos ouvido, é mais rico e mais poderoso e senhor de muito maior terra que o Tártaro nem o Cauchim,16 e quase que se pudera dizer, se não fora pecado, que emparelhava com o Filho do Sol,17 leão coroa-do no trono do mundo." O que todos os outros que estavam à roda lhes confirmavam e diziam: "Isso bem claro está, e bem se vê pelas muitas riquezas que esta nação barbada geralmente possui em toda a terra, por força de braço armado, em afronta de todas as outras nações."

Acabadas estas salvas de uma parte e da outra, chegou a bordo do junco de António de Faria uma lanteia muito bem remada, toda coberta de um fresco bosque de castanheiros, com seus ouriços assim como a natureza os criara neles, guarnecidos pelos troços dos ramos com muita soma de rosas e cra-vos, entressachados com outra verdura muito mais fresca e de melhor cheiro que esta, a que os natu-rais da terra chamam lechias, e a rama de tudo isto era tão basta que se não viam os que remavam, por-que também vinham cobertos da mesma libré. Em cima do toldo desta embarcação, vinha armada so-bre seis perchas uma rica tribuna forrada de broca-do, com uma cadeira de prata, e ao redor dela seis moças de doze até quinze anos, muito formosas, tangendo em seus instrumentos musicais, e cantan-do com muito boas falas, que por dinheiro se trou-xeram da cidade de Liampó, que era dali a sete lé-guas. Porque isto e muitas outras coisas se acham alugadas por dinheiro cada vez que se houverem mister, tanto que muitos mercadores são ricos só dos alugueres destas coisas, de que eles lá usam muito para seus passatempos e recreações.

Nesta lanteia se embarcou António de Faria, e chegando ao cais com grande estrondo de trombe-tas, charamelas, atabales, pífaros, tambores, outros muitos tangeres de chineses, malaios, champas, si-ameses, bornéus, léquios e outras nações que ali no porto estavam à sombra dos portugueses, por medo dos corsários de que o mar andava cheio, o desembarcaram dela em uma rica cadeira de esta-do, como se fosse chaém18 do governo dos vinte e quatro supremos que há neste império,19 a qual le-vavam oito homens vestidos de telilha, com doze porteiros de maças de prata e sessenta alabardeiros com panouras e alabardas atauxiadas de ouro, que também vieram alugadas da cidade, e oito homens a cavalo com bandeiras de damasco branco, e ou-tros tantos com sombreiros de cetim verde e car-mesim, que de quando em quando bradavam à charachina, 20 para que a gente se afastasse das ruas.

Depois de [António de Faria] ser desembarcado em terra e lhe serem dados os parabéns da sua che-gada, o vieram ali visitar os mais nobres e ricos, os quais por cortesia se prostravam por terra, em que houve alguma detença. E feito isto se chegaram a ele dois homens fidalgos e velhos residentes na mesma terra, um chamado Tristão de Gá e o outro Jerónimo do Rego, e lhe fizeram uma fala em nome de todos, de muitos louvores seus, com termos as-saz eloquentes e elegantes, em que na liberalidade o punham acima de Alexandre, e o provavam com razões muito vivas e verdadeiras, e no esforço o avantajavam de Cipião, Aníbal, Pompeu e Júlio César,21 e outras muitas coisas a este modo.

Daqui o levaram para a igreja por uma rua muito comprida, fechada toda de pinheiros e louros, e toda juncada, e por cima toldada de muitas peças de cetins e damascos, e em muitas partes havia mesas em que estavam caçoulas de prata com muitos cheiros e per-fumes, e entremeses de invenções, muito custosos. E já quase no cabo desta rua estava uma torre de madei-ra de pinho, toda pintada a modo de pedraria, que no mais alto tinha três coruchéus, e em cada um uma grim-pa dourada com uma bandeira de damasco branco e as armas reais iluminadas nela com ouro. E numa ja-nela da mesma torre estavam dois meninos e uma mulher já de dias chorando, e em baixo ao pé dela estava um homem feito em quartos muito ao natural, que dez ou doze castelhanos estavam matando, todos armados, e com suas chuças e alabardas tintas em san-gue. A qual coisa, pelo grande fausto e aparato com que estava feita, era muito para folgar de ver, e a razão disto dizem que foi porque dizem que desta maneira ganhara um Foão, de quem os verdadeiros Farias des-cendem, as armas da sua nobreza, nas guerras que antigamente houve entre Portugal e Castela.22

Neste tempo, um sino que estava no mais alto desta torre, como de vigia, deu três pancadas, ao qual sinal se aquietou o tumulto da gente, que era muito grande, e ficando tudo calado, saiu de dentro um homem ve-lho vestido em uma opa de damasco roxo, acompa-nhado de quatro porteiros com maças de prata. E fa-zendo um grande acatamento a António de Faria, lhe disse com palavras muito discretas quão obrigados todos lhe estavam pela grande liberalidade que usara com eles, e pela grande mercê que lhes fizera em lhes restituir suas fazendas, pelo qual todos lhe ficavam dali por diante por súbditos e vassalos, com menagem dada de seus tributários enquanto vivessem.23 E que pusesse os olhos naquela figura que tinha junto de si, e nela, como em espelho claro, veria com quanta leal dade os seus antecessores de quem ele descendia ga-nharam o honroso nome da sua progénie, como era notório a todos os povos de Espanha, donde também veria quão próprio lhe era a ele o que tinha feito, as-sim no esforço que mostrara, como em tudo o mais que usara com eles. Pelo qual lhe pedia em nome de todos que em começo do tributo a que por razão de vassalagem lhe estavam obrigados, aceitasse por en-tão aquele pequeno serviço que lhe oferecia para morrões dos soldados, porque a mais dívida protesta-vam de lha satisfazerem a seu tempo. E com isto lhe apresentou cinco caixões de barras de prata, em que vinham dez mil taéis.

António de Faria lhe agradeceu com muitas pala-vras as honras que até então lhe tinham feito, e o pre-sente que lhe ofereciam, porém, por nenhum caso lho quis aceitar, por muito que todos nisso insistiram.

CAPÍTULO 69

DE QUE MANEIRA ANTÓNIO DE FARIA FOI

LEVADO À IGREJA, E DO QUE SE PASSOU

NELA ATÉ A MISSA SER ACABADA

Abalando-se daqui António de Faria, o quiseram levar debaixo de um rico pálio que seis homens dos mais principais lhe tinham prestes, porém, ele não o quis aceitar, dizendo que não nascera para tama-nha honra como aquela que lhe queriam fazer, e seguiu seu caminho sem mais fausto que o primei-ro, que era acompanhá-lo muita gente, assim por-tuguesa como da terra, e de outras muitas nações que ali por trato de mercancia estava junta, por ser este o melhor e o mais rico porto que então se sabia em todas aquelas partes. E levava diante de si mui-tas danças, pélas, folias, jogos e entremeses de muitas maneiras, que a gente da terra que connosco tratava, uns por rogos e outros forçados das penas que lhes punham, também faziam como os portu-gueses, e tudo isto acompanhado de muitas trom-betas, chamarelas, flautas, orlos, doçainas, harpas, violas de arco e juntamente pífaros e tambores, com um labirinto de vozes à charachina, de tamanho estrondo que parecia coisa sonhada.

Chegando à porta da igreja, o saíram a receber oito padres revestidos em capas de brocado e telas ricas, com procissão, cantando "Te Deum Laudamus", a que outra soma de cantores, com muito boas falas, respondia em canto de órgão tão concertado quanto se pudera ver na capela de qual-quer grande príncipe. Com este aparato foi muito devagar até à capela-mor da igreja, onde estava ar-mado um dossel de damasco branco, e junto dele uma cadeira de veludo carmesim com uma almofa-da aos pés, do mesmo veludo. E assentando-se nes-ta cadeira ouviu missa cantada oficiada com gran-de concerto, assim de falas como de instrumentos musicais, na qual pregou um tal Estêvão Nogueira, que aí era vigário, homem já de dias e muito honra-do. Mas como ele, pelo descostume, andava mal corrente na prática do púlpito, e de si era fraco ofi-cial e pouco ou nada letrado, e sobre isto vão e pre-sunçoso de quase fidalgo, querendo então, por ser dia assinalado, mostrar quanto sabia e quão retórico era, fundou todo o sermão em louvores somente de António de Faria, com umas palavras tão desatadas e por uns termos tanto sem concerto que, enxer-gando os ouvintes em António de Faria que estava corrido e quase afrontado, lhe puxaram alguns seus amigos pela sobrepeliz três ou quatro vezes, para que se calasse. E caindo ele no que era, como ho-mem acordado na briga, disse [tão] alto que todos o ouviram, fingindo que respondia aos amigos:

"Eu falo verdade no que digo, pelos Santos Evan-gelhos, e por isso deixai-me, que faço voto a Deus de dar com cabeça pelas paredes por quem me sal-vou sete mil de cruz[ados] que mandava de empre-go no junco, os quais o perro de Coja Acém me tinha já levado pelo pau do canto, como jogador de bola, que mau inferno lhe dê Deus na alma lá onde jaz, e dizei todos 'Amén'."

E com esta desfeita foi tamanha a risada na gente que não havia quem se ouvisse na igreja. Depois que o tumulto foi calado e a gente quieta, vieram seis meninos da sacristia, em trajos de anjos com seus instrumentos de música todos dourados, e pon-do-se o mesmo padre em joelhos diante do altar de Nossa Senhora da Conceição, olhando para a ima-gem com as mãos levantadas e os olhos cheios de água, disse chorando em voz entoada e sentida, como se falasse com a imagem: "Vós sois a rosa, Senhora". Ao que os seis meninos respondiam: "Se nhora, vós sois a rosa" descantando tão suavemen-te com os instrumentos que tangiam, que a gente estava toda pasmada e fora de si, sem haver quem pudesse [con]ter as lágrimas nascidas da muita de-voção que isto causou em todos. Após isto, tocan-do o vigário uma viola grande ao modo antigo, que tinha nas mãos, disse com a mesma voz entoada algumas voltas a este vilancete, muito devotas e conformes ao tempo, e no cabo de cada uma delas respondiam os meninos: "Senhora, vós sois a rosa". O que a todos geralmente pareceu muito bem, as-sim pelo concerto grande da música com que foi feito, como pela muita devoção que causou em toda a gente, com o que em toda a igreja se derramaram muitas lágrimas.

CAPÍTULO 70

DO BANQUETE QUE NESTE DIA

SE DEU A ANTÓNIO DE FARIA

E A SEUS COMPANHEIROS

Acabada a missa, se chegaram a António de Fa-ria os quatro principais do governo daquela povoa-ção ou cidade de Liampó, como os nossos lhe cha-mavam, os quais eram Mateus de Brito, Lançarote Pereira, Jerónimo do Rego e Tristão de Gá, e to-mando-o entre si, acompanhado de toda a gente portuguesa, que seriam mais de mil homens, o le-varam a um grande terreiro que estava na frontaria das suas casas, todo cercado de um espesso bosque de castanheiros, assim como vieram do mato, car-regado de ouriços, ornado por cima de muitos es-tandartes e bandeiras de seda, e por baixo juncado de muita espadana, hortelã e rosas vermelhas e bran-cas, de que na China há grandíssima quantidade. Neste bosque estavam postas três mesas muito com-pridas ao longo de umas latadas de murta, com que todo o terreiro estava cerrado, onde havia muitos esguichos de água, que por cantimploras corria de uns aos outros, por uns modos e invenções que os chineses ordenaram, tão subtis e artificiosas que nunca ninguém pôde entender o segredo deles, por-que com a fúria do sopro de um fole, como de ór-gão, a que todos tinham sua correspondência, es-guichavam tão alto que, quando tornava a água a cair para baixo, vinha tão miúda que não molhava mais que só como orvalho, de maneira que com um só pote de água se borrifava todo o terreiro, que era como uma grande praça. Defronte destas três me-sas estavam três aparadores da mesma maneira, com grande soma de porcelanas muito finas e seis gomis de ouro muito grandes, que os mercadores chine-ses trouxeram da cidade de Liampó,24 que lá pedi-ram emprestados aos mandarins, porque todo o ser-viço destes é com baixelas de ouro, porque a prata é de gente mais baixa e de menos qualidade, e trou-xeram mais outras muitas peças, como foram pra-tos grandes, saleiros e copos também de ouro, com que a vista se deleitava muito, se de quando em quando lhe não causara inveja.

Despedidos logo os que não eram do banquete, ficaram só os convidados, que seriam setenta ou oitenta, afora os soldados de António de Faria, que passavam de cinquenta, e sentados à mesa foram servidos por moças muito formosas e ricamente vestidas ao modo dos mandarins, que a cada igua-ria que punham cantavam ao som dos instrumentos que outras tangiam. E a pessoa de António de Faria foi servida por oito moças muito alvas e gentis mulheres, filhas de mercadores honrados, que seus pais, por amor de Mateus de Brito e de Tristão de Gá, trouxeram da cidade, as quais todas vinham vestidas como sereias, que a modo de dança faziam o serviço da mesa ao som de instrumentos musi-cais, que davam muito contentamento a quem os ouvia, de que todos os portugueses estavam assaz pasmados, mas gabando muito a ordem, concerto e perfeição do que viam e ouviam, e quando havia de beber, então se tocavam as charamelas e trombetas e atabales.

E com esta ordem duraria este banquete perto de duas horas, nas quais houve também seus entremeses de autos, um chinês e outro português. Da perfeição e abastança das iguarias não trato, porque seria processo infinito querer eu particula-rizar o que ali houve naquele dia, mas direi somen-te que ponho em muita dúvida que em muito pou-cas partes se pudesse dar banquete que em nenhu-ma coisa fizesse vantagem a este. Levantadas as mesas, o que seria já perto das duas horas depois do meio-dia, se foram para outro terreiro, tapado todo em roda com muitos palanques, em que havia infinidade de gente, no qual se correram dez touros e cinco cavalos bravos, que foi a mais regozijada festa que se pudera ver, acompanhada de muitas trombetas, atabales, pífaros, tambores, e de muitos entremeses de diversas invenções.

Depois de isto ser acabado, que era sobre a tarde, querendo-se António de Faria tornar a embarcar, lho não consentiram, mas Tristão de Gá e Mateus de Brito lhe deram as suas casas, que já para isso estavam concertadas, com seus passadiços de umas a outras, onde ele ficou muito bem aposentado por tempo de cinco meses que ali esteve, nos quais sem-pre houve muitos desenfadamentos de pescarias, e caças de altanaria de falcões e açores, e montarias de veados, porcos, touros, e cavalos bravos, de que nesta ilha há muita quantidade, e muitos jogos e passatempos de autos e entremeses de muitas ma-neiras, com banquetes esplêndidos todos os domin-gos e dias santos, e muita parte dos da semana. De maneira que todos estes cinco meses que aqui esti-vemos nos não pareceram [mais que] cinco dias. No fim do qual tempo se fez António de Faria pres-tes de embarcações e gente para ir às minas de Quoãogeparu.

E porque neste meio tempo falecera Quiai Panjão, o que ele muito sentiu, foi aconselhado a que as não acometesse, porque se soava por nova certa que andava lá a terra muito inquieta, por cau-sa das guerras que o Prechá Muão tinha com o rei do Chian-mai25 e com os pafuás e com o rei do Champa. Mas inculcaram-lhe aí um corsário mui-to afamado, que se chamava o Similau, de que ele lançou mão e houve logo fala dele, o qual lhe con-tou muito grandes coisas de uma ilha por nome Calemplui, 26 na qual estavam dezassete jazigos dos reis da China, em uns presbitérios de ouro, com muito grande quantidade de ídolos do mesmo, em que dizia que não havia mais dificuldade nem tra-balho que só carregar os navios. E também lhe dis-se outras muitas coisas de tamanha majestade e riqueza que deixo aqui de as contar, porque temo que façam dúvida a quem as ler. E como António de Faria era naturalmente muito curioso, e não lhe faltava também cobiça, se abraçou logo tanto com [o] parecer deste chinês, que só por este seu dito, sem outro mais testemunho, determinou de se pôr a todo o risco e fazer esta viagem, sem nesta parte querer tomar outro conselho de ninguém, de que alguns seus amigos se escandalizaram algum tan-to, e não sem razão.

Planta de Macau de Manuel Godinho de Herédia, c. 1615-1622, in Macau: Cartografia do Encontro Ocidente-Oriente, coordenação de Luís Filipe Barreto, Macau, Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, s. d., p. 112.

NOTAS

* la edição: Lisboa, 1614.

1 O estabelecimento de Liampó, que está também documenta-do em fontes chinesas, situava-se nas ilhas de Shuangyu, no arquipélago de Zhoushan, nas proximidades da cidade chi-nesa de Nimpó.

2 Esta descrição de Liampó pecará talvez por algum exagero; não é improvável que o autor se tivesse inspirado em descri-ções da povoação de Macau a que teria tido acesso após o seu regresso a Portugal.

3 O estabelecimento de Liampó foi destruído pelas forças chi-nesas em 1548-1549, por ocasião de uma violenta campanha contra a navegação estrangeira levada a cabo nas províncias de Fuquiém e Chequião.

4 António de Faria, capitão de um bando de corsários portu-gueses, é um dos personagens centrais da Peregrinação, cuja historicidade tem sido contestada. Mas conhece-se hoje o seu testamento, testemunhado pelo padre Francisco Xavier, no qual se comprovam demoradas e turbulentas andanças pelo Extremo Oriente.

5 Topónimo não identificado. Fernão Mendes refere-se aqui ao episódio do saque feito pelos portugueses de António de Faria à cidade chinesa de Noudai, que fora relatado em capí-tulos anteriores da sua obra.

6 Topónimo não identificado.

7 Lanteia: espécie de lancha chinesa, com seis ou sete remos, usada no transporte de mercadoria.

8 O autor comete aqui um evidente anacronismo, já que por estes anos, cerca de 1541, não se registou o falecimento de qualquer imperador. O imperador Jiajing morreu mais tarde, em 1567. Este anacronismo teria explicação se aceitássemos que Fernão Mendes redigiu esta passagem por volta deste último ano, misturando no seu livro memórias do passado com acontecimentos recentemente ocorridos.

9 Tutão (chinês dutang): vice-rei ou governador geral de uma província.

10 Poderia tratar-se aqui de uma referência a Wuzhou, na pro-víncia de Guangxi.

11 Prechau" parece ser uma palavra de origem siamesa, utili-zada como título honorífico. Esta personagem, que não foi ainda identificada, poderia inspirar-se em P'rajai Xaja-Thirât, monarca siamês que reinou entre 1534 e 1547, mas que nun-ca desencadeou campanhas militares contra a China. Mais uma vez na Peregrinação, a ficção mistura-se com a realida-de.

12 Isto é, António de Faria.

13 Balão: pequena embarcação de remos, cujo fundo é feito de uma única peça.

14 Manchua: pequena embarcação a remos, que também podia armar uma vela quadrangular.

15 Bancão: embarcação pequena, cujos remos são manobrados por dois homens em pé.

16 Tratar-se-ia de um inexistente imperador da Indochina.

17 Filho do Sol: um dos títulos tradicionalmente atribuídos ao imperador chinês.

18 Chaém (chinês chayuan): censor investido em funções de comissário imperial.

19 Esta definição não parece corresponder a qualquer órgão de governo chinês. Tratar-se-á de uma influência da Casa dos Vinte e Quatro, que existia em Lisboa.

20 Expressão que significa "ao modo da China".

21 Personagens célebres da história greco-latina.

22 Referência ao conflito luso-castelhano de 1383-1385.

23 António de Faria, durante o seu cruzeiro pelo litoral da Chi-na, recuperara bens que haviam sido perdidos pelos portu-gueses de Liampó.

24 Isto é, Nimpó.

25 Antigo reino da Indochina, que foi depois anexado pela Birmânia.

26 Misteriosa região asiática, que por vezes tem sido identificada com a Coreia.

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