Antologia Documental

RELAÇÃO ANUAL DAS COISAS QUE FIZERAM OS PADRES DA COMPANHIA DE JESUS TOMO 2*

P.e Fernão Guerreiro

Os missionários iesuítas chegaram pela primeira vez a Goa em 1542, desenvolvendo a partir de então uma intensa actividade evangelizadora em muitas regiões da Ásia marítima. Desde os primeiros dias, foi prática destes religiosos enviarem regularmente para a Europa longas cartas onde eram relatadas as principais actividades da respectiva missão e onde se recolhiam minuciosas informa-ções sobre as realidades ultramarinas. Os responsáveis da Companhia de Jesus, entendendo o extraor-dinário valor destas missivas, que constituíam uma poderosa arma de propaganda religiosa, ao mesmo tempo que alargavam desmesuradamente os conhecimentos geográficos europeus, desde cedo organi-zaram a publicação de colectâneas mais ou menos alargadas. Ao longo da segunda metade do século xvI, multiplicaram-se, um pouco por toda a Europa católica, as edições de cartas jesuítas, que manti-nham os leitores interessados ao corrente dos progressos das missões, revelando, de caminho, a geo-grafia e a etnografia de mundos anteriormente pouco ou nada conhecidos.

O P.e Fernão Guerreiro (1550-1617), superior da casa jesuíta de Lisboa, foi responsável pela publica-ção de uma das mais importantes colecções de cartas missionárias, que compilou nos cinco volumes da sua Relação Anual, publicados entre 1603 e 1611, em Évora e em Lisboa. O diligente editor, baseando--se nas missivas anualmente enviadas pelos seus confrades, apresenta um vasto e bem documentado panorama das regiões asiáticas onde os jesuítas desenvolviam actividades mais intensas, com especial destaque para a Índia, a China e o Japão. Mas os sucessivos tomos da Relação Anual não apresentavam apenas um sumário de assuntos religiosos, antes dedicavam um espaço considerável à situação políti-ca, ao ambiente geográfico e às mais relevantes práticas sociais e culturais das regiões onde missionavam os inacianos. O trecho a seguir transcrito descreve de forma breve a vida em Macau nos primeiros anos do século xvII.

Fonte utilizada: GUERREIRO, Fernão, Padre, Relação Anual das Coisas que Fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas suas Missões, edição de Artur Viegas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, tomo 2, pp. 235-237. O texto foi modernizado. As palavras entre parênteses rectos foram acres-centadas para clarificar determinadas passagens menos claras do texto.

Frontispício do tomo 2 da Relação Anual das Coisas que Fizeram os Padres da Companhia de Jesus, do P.e Fernão Guerreiro, Lisboa, 1605.

DO COLÉGIO DE MACAU NA CHINA.

No reino da China, e numa ponta da terra firme, que é como uma península da província de Can-tão, há uma cidade de portugueses, episcopal,1 que é a de Macau, onde a Companhia [de Jesus] tem um colégio2 em que ordinariamente residem trin-ta [religiosos], posto que neste ano [de 1601] hou-ve perto de sessenta, por invernarem aí os que iam para Japão no[s] ano[s] de 1600 e 1601. E como este colégio é seminário das duas tão grandes em-presas e missões, como são as do Japão e China, nele temos estudos de humanidade[s], artes e teo-logia, onde se aperfeiçoam em letras e espírito, os que hão-de trabalhar naquelas grandes vinhas.3 Conversão de gentios não a há neste colégio de ordinário, porque não há casa de catecúmenos onde se possam instruir, mas não deixam pelo discurso do ano de se baptizar alguns.

Visitou Nosso Senhor este ano este colégio com alguns trabalhos, e foi de um grande incêndio de fogo, que por desastre se ateou na nossa igreja.4 Porém, em se dando sinal, como toda esta cidade tem tanta devoção e amor aos padres, não somen-te os homens, mas até as mulheres e donas muito honradas, saíam de suas casas e vinham pelas ruas, juntamente com suas moças e escravas, carrega-das de vasilhas de água, que davam a seus mari-dos e moços para lançarem no incêndio, o qual foi tão bravo que escassamente deu lugar para se po-der tirar o sacrário do Santíssimo Sacramento. E se não fora a muito grande diligência que todos puseram, não ficara coisa em todo o colégio que não ardera, porque da igreja saltou o fogo e se começou a atear em três partes dele. E como a igre-ja ardeu de modo que não ficaram mais que as paredes, e essas estaladas e abertas com a quentu-ra, por ser[em] de taipa, nem houve comodidade para se tornarem a consertar, foi necessário aco-modar-se uma sala das escolas para servir por en-tretanto que outra se vai fazendo. E para isto, além das esmolas que muitas pessoas fizeram, com ser o tempo em que mais apertada e necessitada este-ve esta terra, por terem os homens perdido quase todo [o] seu cabedal na nau que vindo de Japão se perdera,5 todos os moradores desta cidade, movi dos de caridade e compaixão, fizeram uma junta em que, diante do capitão-mor, por consentimen-to universal, deram àquela casa meio por cento de tudo quanto tinham em Japão, trazendo Nosso Senhor a salvamento a nau que então lá estava, pela qual esperavam. E seguraram-na muito bem, porque Deus lha trouxe muito próspera. E não montou tão pouco esta esmola que não passasse de três mil cento e trinta pardaus de reales. 6

Houve este ano nestas partes grandíssimas tor-mentas, assim no mar como na terra. As da terra foram tão bravas que derrubavam as casas, e quando menos destelhavam as telhas. No nosso colégio, por estar em sítio alto, fizeram grande dano, derrubando parte dele, que por suceder depois de reparado do incêndio, não causou pe-quena perda. No mar, entre outros danos, deu à costa daqui a catorze léguas com uma das naus que vinham da Índia, na qual, além das drogas, se perderam só em reales quatrocentos mil pardaus, que era quase todo o cabedal da gente da Índia, de negócio. Morreu também muita gen-te afogada e outra lanceada e ferida com a pregadura e lanças que andavam sobre as ondas do mar. E antes que se perdesse a nau, algumas pessoas também foram mortas com um raio que sobre ela caiu. Outras duas naus, em uma das quais vinham dez padres nossos, chegaram aqui destroçadíssimas, principalmente a dos padres, a qual temos que Deus livrou milagrosamente, con-forme ao extremo de perigo a que chegou, pelos muitos serviços que os padres nela lhe tinham feito.

Um dia depois da chegada destas naus, apare-ceram ao mar outras três, que vinham tão segu-ras e com as velas tão estendidas como se não lhes tocara a tormenta passada.7 Eram duas de-las grandes e um patacho pequeno.8 Entendeu-se logo serem de inimigos, porque nenhumas [naus] se esperavam de parte alguma, por serem chega-das as da Índia e não haver monção para virem doutra parte. E porque esta cidade não tem mu-ros nem fortaleza nem presídio algum de artilha-ria e soldadesca, não se dando os da terra por se-guros em suas casas, recolheram toda [a] sua prata e mais fato neste colégio, pedindo juntamente ao padre reitor que em caso que os inimigos tentas-sem desembarcar, lhes desse licença para suas mulheres e famílias se recolherem da nossa cer-ca para dentro, porque, ganhando os inimigos a praia, determinavam retirar-se ao colégio, por estar mais alto e defensável; e se caso fosse que Deus os quisesse castigar, permitindo que os ini-migos prevalecessem, se consolavam [de] aca-bar entre os padres.

Estava aqui por capitão-mor D. Paulo de Por-tugal, que logo pôs com muita presteza em or-dem a gente que havia na terra, no melhor modo que a brevidade do tempo sofreu, e se foi pôr no posto para onde os inimigos [se] encaminhavam, os quais, surgindo bem perto de terra com gran-des bandeiras brancas por popa, lançaram um esquife9 da nau capitânia, que com onze homens se veio chegando a terra para a reconhecer e sa-ber onde estavam. Este foi logo tomado por uns barcos nossos, e trazidos dois deles diante do capitão, onde disseram ser holandeses que vinham buscar veniagas10 e assentar comércio naquelas terras. E porque alguns dos outros companheiros destes disseram que as naus traziam setecentos homens, estiveram os nossos toda a noite em vi-gia.

Ao outro dia pela manhã, vendo os inimigos que os seus do esquife não tornavam, lançaram o patacho, o qual vinha entrando pelo canal defron-te da cidade e sondando a entrada. Saíram-lhe três ou quatro embarcações nossas, que logo o toma-ram com nove homens, em que entravam o pilo-to e [o] feitor da nau capitânia, quatro peças de artilharia e outros apetrechos de guerra. As naus, vendo tomado seu patacho, se levantaram logo e foram surgir dali a dezoito ou vinte léguas, o que sabendo o capitão-mor armou seis navios de remo, e estando já prestes e embarcado para os ir buscar, lhe veio recado que eram idos. Dos que ficaram presos, morreram os mais deles por jus-tiça, mas foi Nosso Senhor servido que, por meio dos nossos, todos se reduziram e acabaram con-fessando a fé católica e obediência ao Sumo Pon-tífice. Confessaram-se sacramentalmente muitas vezes, e mostraram que morriam muito consola-dos, pedindo perdão a Deus e aos circunstantes.11

NOTAS

* l.a edição: Lisboa, 1605.

1 O primeiro bispo expressamente nomeado para Macau foi D. Leonardo de Sá, em 1579.

2 O Colégio de S. Paulo havia sido fundado em 1594.

3 Macau, com efeito, servia de base de apoio aos religiosos jesuítas que se dirigiam ao Japão, onde desde 1549 se havia desenvolvido uma próspera missão, e também à China, onde tinham conseguido entrada depois de 1583.

4 O Colégio de S. Paulo foi palco de mais do que um incêndio. A destruição final, contudo, que o reduziu às actuais "ruí-nas", foi causada pelo grande incêndio de 1835.

5 Em 1599 perdeu-se na viagem entre o Japão e Malaca o jun-co capitaneado por Nuno Medonça, que trazia uma carga es-timada em 400.000 cruzados. E nesse mesmo ano não se efec-tuou qualquer viagem mercantil entre a cidade portuguesa e o arquipélago nipónico.

6 O P.e Fernão Guerreiro refere-se aqui ao grande navio que em 1600 foi ao Japão, sob o comando de Horácio Nerete, representante do capitão-mor D. Pedro de Portugal, que fi-cou em Macau. A viagem foi concluída com sucesso. O pardau era uma moeda de ouro ou de prata, valendo neste último caso cerca de 300 réis. O "reale" era uma moeda espanhola, cunhada com prata americana, que se vulgarizou no Extremo Oriente depois do estabelecimento dos espanhóis nas Filipi-nas em 1565.

7 Tratava-se de uma armada holandesa de três navios, coman-dada por Jacob Van Neck, que vinha explorar as possibilida-des de comerciar no litoral da China. Em anos seguintes, os holandeses haveriam de hostilizar sistematicamente a nave-gação e os entrepostos orientais dos portugueses, a quem con-quistariam sucessivas posições.

8 Patacho: antigo navio de três mastros, semelhante à nau.

9 Esquife: embarcação pequena, de remos, usada em serviços correntes por navios de maior porte.

10 Isto é, "mercadorias".

11 Os holandeses foram sumariamente executados, com excep-ção de dois moços e do feitor, ao que parece a instâncias do ouvidor de Macau, que temia que a presença de estrangeiros na cidade pudesse prejudicar o bom relacionamento dos por-tugueses com as autoridades de Cantão.

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