Antologia Documental

TRATADO DA GLÓRIA*

D. Jerónimo Osório

D. Serónimo Osório (1514-1580) é um dos mais conhecidos humanistas portugueses do século XVI. Voltou a Portugal em 1542, após um prolongado período de estudos e viagens no estrangei- ro, e, depois de exercer diversos cargos laicos e eclesiásticos, viria a ser nomeado bispo de Silves em 1564. Preparou para os prelos uma extensa história em latim do reinado de D. Manuel I, os De Rebus Emmanuelis Regis Lusitaniae Invictissimi Virtute et Auspicio Gestis Libri Duodecim (Lisboa, 1571), baseada na Crónica do mesmo monarca da autoria de Damião de Góis (Lisboa, 1566-1567), e em outras fontes a que teve acesso. Entre os seus trabalhos anteriores conta-se o tratado De Gloria, publi- cado em Coimbra em 1549, onde Osório introduz uma breve, mas entusiástica, descrição da China, que tem a particularidade de ser a mais antiga notícia portuguesa impressa sobre aquele longínquo império asiático.

O nosso humanista parece ter ficado verdadeiramente impressionado com o relevante papel de- sempenhado pelos letrados chineses na administração do Celeste Império, tão distinto daquele que os poderes europeus atribuíam aos seus intelectuais. Nas palavras encomiásticas de Osório, a China, que começa então a ser descoberta pelos leitores europeus, assume características de uma verdadeira "república das letras". A única mancha neste quadro aparentemente idílico seria o desconhecimento pelos chineses da religião cristã. Os informadores de D. Jerónimo devem ter sido os padres da Companhia de Jesus sediados em Coimbra, que por esses anos estavam já a receber dos seus confrades em serviço no Oriente as primeiras notícias circunstanciadas sobre a realidade cultural e social chinesa (cf. supra, pp. 32 - 35).

Fonte utilizada: Latim Renascentista em Portugal, edição de Américo da Costa Ramalho, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985, pp. 175-177. Transcrição parcial. A pontuação foi ligeiramente modificada e acrescentaram-se palavras ou expressões entre parênteses rectos, para melhor compreensão do texto.

DESCRIÇÃO DA CHINA

"Expor-vos-ei uma coisa admirável e talvez não de- sagradável de ouvir. Os chineses, como sabeis, habi- tam um território imenso, situado no Extremo Oriente, de sul para norte, e tão contíguo à Cítia,1 que em mui- tos lugares os habitantes enregelam de neve e de gea- da. Mas os nossos, depois de atravessarem todos os mares, navegando ao longo de todas as costas com ar- mas invencíveis, indo além da Aurea Quersoneso2 e paragens mais longínquas da Índia, rumam ao norte e dirigem as naus para as regiões marítimas da China. Aí finalmente ficam, concluindo a sua navegação.3

Ora, de entre os nossos, aqueles que com os chineses tiveram algum contacto,4 afirmam que dificilmente exis- te algum povo que, em grandeza de cidades ou beleza de edifícios, ou nível de vida e civilização, ou no inte- resse vivíssimo pelas artes, se compare com o povo chinês. E no que diz respeito à impressão dos livros, os caracteres metálicos, que só há pouco entre nós estão em uso, eles os empregam há séculos quase infinitos.5

E contam que entre eles se dá tanta importância à instrução, que não é de qualquer forma lícito entregar o poder supremo senão àquele que tiver provado o seu domínio de toda a cultura.6 E, ao atribuir postos [na administração e no governo], não levam em conta a famÍlia ou a riqueza, mas apenas a instrução. P o r- tanto, todos os que ambicionam os primeiros lugares [na administração e no governo] se dedicam ao estudo. E quando crêem ter feito progressos que os não enver- gonhem, dirigem-se a certos juízes, indicados para esta função. Por sufrágio deles, ou são rejeitados por incul- tos ou, sendo doutos, recebem certas insígnias de hon- ra. É dentre estes que são escolhidos os que adminis- tram as jurisdições menores.

Quanto aos que desejam ficar mais tempo a estudar e [a] familiarizar-se com mais elevada cultura, depois de concluído certo curso, submetem-se a outro exame mui- to mais difícil. Na verdade, são julgados por homens de muito maior erudição e, se os satisfizerem, sobem a mais alto grau de honra. Deste modo, também aqueles que têm ambições de mais altos cargos podem gastar mais anos no estudo e, segundo uma escala, apresen- tar-se a sucessivos júris de homens doutos.7

Há várias classes de homens que julgam sobre talento e cultura. Mas poucos são aqueles que, através de todos os graus de instrução, chegam ao mais alto posto, por falta de condições naturais, na maioria, e de fortuna, em não poucos casos. Mas esse pequeno número ocupa os mais altos lugares da administração, colocados como es- tão no supremo galarim do poder."

Nesta altura, disse Metelo: "Se é verdade o que afir- ma Platão, a saber, que há-de ser feliz a República que confiar a sua direcção aos filósofos, os Chineses de- vem ser considerados felizes".

"Sê-lo-iam"— respondi eu—"se existisse entre eles uma filosofia bem elaborada. Mas, segundo é fama, cultivam um género de sabedoria complicado por mui- tos erros e superstições mágicas. Todavia, são dignos de admiração, em entregarem o poder supremo àque- les que consideram os que mais se distinguem pelo mé- rito da sabedoria".

NOTAS

* 1.aEdição: Coimbra, 1549.

1A Cítia havia sido colocada pelos antigos geógrafos gregos nas regiões setentrionais da Ásia central. D. Jerónimo, como bom humanista, recorre a referências clássicas para situar a China no mapa imaginário que desenha para os seus leitores.

2A Aurea Quersoneso, ou "península áurea", era a designa- ção atribuída pela geografia clássica europeia à Península Malaia. O ouro, na realidade, seria oriundo da ilha de Samatra.

3A navegação portuguesa, na verdade, demandava ainda regi- ões mais orientais, pois desde 1543 que os nossos navios ha- viam atingido o Japão, que começou desde então a ser regu- larmente visitado. Mas é provável que a notícia deste desco- brimento ainda não se tivesse difundido em Portugal nos anos que antecedem a publicação do Tratado de D. Jerónimo, isto é, por volta de 1547-1548.

4Os portugueses haviam começado a visitar o litoral chinês desde 1513. Teria D. Jerónimo entrevistado algum dos nos- sos viandantes com experiência no terreno?

5A tipografia com caracteres móveis é decididamente uma in- venção chinesa, que antecede em muitos séculos a reinvenção europeia. Porém, não está ainda apurado se a China exerceu alguma influência na inovação introduzida por Gutenberg.

6A administração e o governo da China estavam a cargo da classe mandarinal, à qual se acedia apenas depois de prolon- gados estudos literários, culminados por rigorosíssimos exa- mes escritos. Contudo, o poder supremo estava nas mãos do imperador chinês.

7Os sucessivos exames periódicos para a obtenção de graus mandarinais eram cada vez mais rigorosos, correspondendo basicamente ao bacharelato, licenciatura e doutoramento.

desde a p. 41
até a p.