Antologia Documental

ÁSIA: DÉCADA TERCEIRA*

João de Barros

João de Barros, que nasceu por volta de 1496, foi um dos mais conceituados homens de letras portugueses do século XVI. Paralelamente às suas actividades literárias, dedicou-se também a afazeres mais prosaicos, pois em 1533 era nomeado feitor das Casas da Guiné e Índia. Este importante posto deu-lhe acesso a um manancial inesgotável de informações sobre o Oriente, pois aquela instituição régia, para além de receber anualmente quantidades assombrosas de exóticas mercadorias asiáticas, era o ponto obrigatório de passagem para todos os homens que regressavam ao Reino, depois de uma temporada mais ou menos longa de serviço. Ali afluíam igualmente todas as cartas, informações e relatórios enviados por funcionários que serviam a Coroa em terras orientais e também por simples particulares. O cargo de feitor, assim, proporcionava a João de Barros um ponto de observação estratégico, que lhe permitiu reunir nos anos seguintes uma impressionante quantidade de materiais sobre os variadíssimos aspectos da presença portuguesa na Ásia.

O funcionário régio parece ter sido encorajado por El-Rei D. João III no sentido de escrever "as cousas da Índia" nos momentos de lazer, e ter-se-á abalançado de imediato à preparação da crónica dos feitos lusitanos, pois por volta de 1539 já completara um primeiro esboço das quatro Décadas da Ásia, que nos anos seguintes foi revendo e acrescentando constantemente, à medida que recebia novas informações do Oriente, pois estas obras apenas começariam a ser impressas em 1552. Ao narrar os encontros e desencontros dos portugueses com outros povos, João de Barros segue um método extremamente elaborado, pois não só descreve de forma circunstanciada as actividades dos seus conterrâneos, como tem a preocupação de as contextualizar devidamente. Os espaços físicos e humanos onde os nossos se movimentam — em viagens de exploração e de comércio, em combates navais e em embaixadas, em cercos e em conquistas — são descritos com o maior rigor. As Décadas surgem assim não só como uma síntese de acontecimentos protagonizados pela gente lusa em terras orientais, mas também como um documentado e actualizado compêndio sobre a geografia da Ásia litoral, sobre os principais usos e costumes dos povos que a habitavam, e mesmo sobre a história de alguns deles.

A partir da sua posição estratégica na Casa da Índia, João de Barros entrevistou muitos dos protagonistas da expansão portuguesa no Oriente, compulsando simultaneamente uma enorme massa de documentos oficiais e oficiosos sobre as navegações, o comércio e as conquistas ultramarinas. Porém, como se isso não bastasse, diligenciou no sentido de obter materiais adicionais de origem asiática, que lhe permitissem formar uma imagem mais clara do terreno onde se desenrolavam os acontecimentos. E ao longo dos anos foi recebendo dos seus correspondentes na Índia manuscritos, mapas e alguns livros impressos em diversas línguas orientais. Graças a estes esforços, foi adquirindo um vasto cabedal de conhecimentos que veio a aplicar na redacção das Décadas e também na preparação de um desaparecido tratado de Geografia, a que alude repe-tidamente.

Quase todas as regiões orientais visitadas pelos portugueses ao longo da primeira metade do século XVI mereceram as atenções de João de Barros. A China, contudo, mais do que qualquer outra potência, parece ter impressionado favoravelmente o historiador, que desenvolveu especiais esforços para sobre ela se documentar. Assim, o feitor da Casa da Índia conseguiu obter "um livro de Cosmografia dos chins impresso por eles", que continha "toda a situação da terra em modo de Itinerário", o qual fez traduzir por um escravo chinês expressamente comprado para a "interpretação destas coisas", o qual "sabia também ler e escrever nossa linguagem" (Décadas). As referências sínicas espalham-se pelas várias obras de Barros. Mas a Década III, pela primeira vez impressa em 1563, merece um especial destaque, já que inclui uma circunstanciada descrição do Celeste Império, onde o autor utilizou de forma diligente os diversos materiais recolhidos. A imagem da China apresentada por João de Barros é extraor-dinariamente positiva, já que o historiador não se cansa de louvar as maravilhas daquele remoto império, onde se encontram "todalas polícias que pode haver".

Fonte utilizada: BARROS, João, Da Ásia de João de Barros: Década Terceira, fac-símile da edição de 1777, Lisboa, Livraria Sam Carlos, 1973, liv. 2, cap. ° 7. Transcrição parcial. O texto foi modernizado, acrescentando-se entre parênteses rectos algumas palavras ou expressões destinadas a esclarecer eventuais dúvidas de leitura.

Frontispício da Ásia: Terceira Década, de João de Barros, Lisboa 1563.

EM QUE SE DESCREVE A TERRA DA CHINA E RELATA ALGUMAS COISAS QUE HÁ NELA.

A Grã Província (se este nome pode ter aquela parte da terra) a que nós chamamos China é a mais oriental que [a] Ásia tem, a maior parte da qual é lavada do grande Oceano,1 à maneira que é a nossa Europa oposta a ela, começando da ilha [de] Cádis.2 Porque como desta ilha ela vai torneada e cingida do mar Ocidental,3 e depois chega ao cabo de Finisterra, corre ao norte até chegar às regiões e reino [da] Dinamarca, e de si faz a grande enseada a que chamam mar Báltico, entre a Sarmácia e [a] Noruega, com o mais que se vai continuando com a terra Lapónia e a outra [en]regelada a nós incógnita.

Assim, esta região a que chamamos China, começando da ilha [de] Ainão, que é a mais ocidental que ela tem, vizinha ao reino [de] Cauchi,4 por nós chamado Cauchinchina, que é do seu estado, o mar a val cingindo pela parte do sul, e corre nesta continuação pelo rumo a que os mareantes chamam lés-nordeste, encolhendo-a quanto pode para o norte, até chegar a um cabo o mais oriental dela, onde está a cidade [de] Nimpó, a que os nossos corruptamente chamam Liampó. E daqui volta contra o noroeste e norte, e vai fazendo outra enseada muito penetrante, levando por cima de si outra costa oposta à de baixo, com que a terra de cima fica metida debaixo dos regelos do norte, onde habitam os tártaros, a que eles chamam tatas, com quem têm contínua guerra.5

A qual semelhança entre estes dois fins da terra habitada não está tanto em situação de graus quanto em modo de figura, porque a ilha [de] Cádis está em altura de trinta e sete graus escassos do nosso pólo árctico, e muita parte da terra desta Europa, quanto ao por nós sabido, acaba em altura de setenta e dois graus. E a ilha de Ainão está em dezanove graus, e a terra da China, a que ela está conjunta (à maneira que Cádis o está com a nossa Europa), a parte dela, de que temos notícia, acaba em cinquenta graus de altura, afora o mais que a ela vai continuada. Da qual distância podemos tirar a grandeza deste estado, pois que em largura (falando nas medidas geográficas) esta terra da China tem trinta e um graus e a nossa Europa trinta e cinco graus. E não falamos na longura, porque, por razão da diferença dos paralelos, os quais ainda não temos verificados pelo instrumento de que usamos na descrição das tábuas da nossa Geografia6 para este lugar, deixamos a sua distância.

Somente diremos aqui uma maravilhosa coisa que tem esta região da China na travessa da sua largura, que é a longura ao respeito de como contamos a graduação da terra: que entre quarenta e três e quarenta e cinco graus vai lançado um muro,7 que corre de poente, de uma cidade por nome o Chiói,8 que está situada entre duas altíssimas serras, quase como passo e porta daquela região, e vai correndo para o oriente, até fechar em outra grande serrania que está bebendo em aquele mar oriental em modo de cabo, cujo comprimento parece ser [de] mais de duzentas léguas. O qual muro dizem que os reis daquela região da China mandaram fazer por defensão contra os povos a que nós chamamos tártaros e eles tatas, ou tancas,9 segundo lhe outros chamam, posto que além do muro, contra o norte, ainda têm estado ganhado a estes tatas.

Este muro vem lançado em uma carta de geografia de toda aquela terra, feita pelos mesmos chineses, onde vêm situados todos os montes, rios, cidades, vilas, com seus nomes escritos na letra deles, a qual mandámos vir de lá, com um chinês para a interpretação dela, e de alguns livros seus que também houvemos. E antes desta carta tínhamos havido um livro de Cosmografia de pequeno volume, com tábuas da situação da terra e comentário sobre elas à maneira de itinerário.10 E ainda que nele não vinha este muro figurado, tínhamos informação dele, e o que sobre isto nos davam a entender era não ser por todo continuado, somente haver entre os chineses e os tatas uma corda de serras muito ásperas, e em alguns passos estava este muro feito. Mas, agora que por eles o vimos pintado [nesta carta], fez-nos grande admiração. A qual carta, posto que não vem graduada para demonstração, o livro das tábuas que de antes tínhamos responde a ela na medida itinerária de que eles usam, que são três, ao modo de estádio, milha e jornada, de que nós usamos.

A primeira e menor distância sua é li,11que tem tanto espaço quanto por terra chã, em dia quieto e sereno, se pode ouvir o brado de um homem; dez dos quais lis fazem um pu,12 que [cor]responde [a] pouco mais de uma légua das nossas espanholas, porque dez deles fazem [uma] jornada de um homem, a qual eles chamam ichão.13 E até agora não temos sabido que situem a distância da terra por graus correspondentes ao orbe celeste, posto que sabemos terem este uso nos seus horóscopos, quando usam da astrologia, de que são grandes homens. E não é muito não haver entre eles esta maneira de graduação terrestre, pois até ao tempo de Ptolomeu não era usada dos geógrafos.

Dentro desta terra que divisámos, a qual é toda de um príncipe gentio, como já atrás fizemos menção, se contêm quinze reinos, ou principados, a que eles chamam governanças, os nomes das quais [ag]ora tornaremos [a] repetir: Cantão, Foquiem, Chequeam, Xantom, Nanquim, Quinci, que são as [governanças] marítimas dele. E Quicheu, Junam, Quanci, Sujuam, Fuquam, Cansi, Xianxi, Honam e Sanci são do sertão.14 Em as quais, segundo mostra a carta da geografia que houvemos, [se] contêm duzentas [e] quarenta e quatro cidades notáveis, as quais todas acabam nesta sílaba fu,15 que quer dizer cidade, assim como Chincheu-fu, Nimpo-fu, pelas cidades [de] Chincheu e Nimpó, onde os nossos vão fazer seus comércios. No qual modo eles se conformam com os gregos, dizendo Constantinópolis, Adrianópolis, por as cidades que edificaram ou renovaram Constantino e Adriano, imperadores, e as mais das vilas também têm seu termo final, que denota vila, que é cheu,16 a qual ordem não guardam nas outras povoações, como são aldeias, posto que há muitas delas que passam de três mil vizinhos. Nem acerca deles fazem esta divisão de vila a aldeia, por razão de muitos ou poucos povoadores, somente porque as vilas são cercadas de muro, como as cidades, e mais têm suas insígnias, assim na administração de justiça como nas outras coisas do governo da terra e preeminência de honra.

Porque, como cada uma destas quinze governanças ou províncias tem uma cidade que é sua cabeça — a que acodem todas as cidades que nela há, assim as vilas acodem às cidades do seu termo, e as aldeias às vilas. Às quais cabeças vão todas as apelações de qualquer caso, ora seja do estado e justiça, ora da fazenda, ora da guerra —, onde residem os governadores principais que presidem aquela governança. O primeiro e principal, a que eles chamam tutão,17 este é governador das coisas que pertencem ao estado e administração da justiça; e o do regimento da fazenda se chama concão;18 e o capitão-geral da guerra, chumpim.19 E posto que cada um destes, debaixo de sua jurisdição, tenha grande número de oficiais, com que servem particularmente seus ofícios, com casas próprias, em uma, que é a principal da cidade para isso ordenada, cada mês em certos dias se ajuntam todos três a comunicar as coisas principais, que sobrevêm diante de cada um, isto em modo de consulta, para com mais maduro conselho determinarem as coisas. Os quais cargos naquela cidade não lhes duram mais que três anos, e ainda muitas vezes no meio tempo, sem o eles saberem, são sobressaltados, com que os tiram dos tais cargos e os mudam para outra parte, e isto quando as culpas são leves, porque nas graves severamente são punidos, até o castigo chegar à morte.

[E é] por esta maneira. O rei e príncipe deste grande império,20 dos homens que andam derredor dele, elege um de que muito confia e dá-lhe de beber três vezes do vinho que eles lá usam,21 isto em modo de juramento e menagem, e manda-o a uma cabeça destas províncias, ao qual dá tanta jurisdição e autoridade que segundo [a] qualidade do crime ele o possa castigar sem vir mais ele a el-rei. E isto com todo o segredo que pode ser, porque ainda que leva provisões assinadas pelo príncipe, falam geralmente que lhe obedeçam, mas não particularizam o lugar onde vai, por não ser sabido dos oficiais que fazem as provisões, somente [o sabendo] ele, que verbalmente lho diz el-rei.

Partido com estes poderes, chega à cidade onde é enviado e, desconhecido, vê e ouve como cada um daqueles oficiais serve seu cargo. E depois que tem informação das obras de cada um, o dia que os três governadores se ajuntam, vai diante deles como homem que quer requerer alguma coisa. E apresentando a provisão que traz d'el-rei, eles se descem da cadeira onde estavam e se põem ante ele, que sobe no seu lugar, esperando eles [para saber] que sentença ouvirão de si, a qual, por grave que seja, no culpado logo é executada. E este superior, a que eles chamam ceui,22 provê de outros novos oficiais, e aos que servem bem muda para outros ofícios de mais confiança na mesma província a que é enviado. Tem ainda o príncipe deste império outra ordem na maneira de o governar, que os oficiais do governo da justiça não hão-de ser naturais da terra, mas estrangeiros, à maneira que neste reino de Portugal se usam os juízes que chamam "de fora", e isto por administrarem justiça em toda [e qualquer] pessoa, sem afeição de parentesco ou amizade. E os capitães da guerra hão-de ser naturais da própria terra, que dizem eles que o amor da pátria lhes fará trabalhar mais por a defender[em].

E bem como os gregos em respeito de si todas as outras nações haviam por bárbaras, assim os chineses dizem que eles têm dois olhos de entendimento acerca de todas as coisas; e [dizem que] nós os da Europa, depois que nos comunicaram, temos um olho; e todas as [outras] nações são cegas. E verdadeiramente quem vir o modo de sua religião, os templos desta sua santidade, os religiosos que residem em conventos, o modo de rezar de dia e de noite, seu jejum, seus sacrifícios, os estudos gerais onde se aprende toda [a] ciência natural e moral, a maneira de dar os graus de cada uma ciência destas, e as cautelas que têm para não haver subornações, e terem impressão de letra muito mais antiga que nós, e sobre isto o governo de sua república, a mecânica de toda [a] obra de metal, de barro, de pau, de pano, de seda, haverá que neste gentio estão todas as coisas de que são louvados gregos e latinos.

A qual gente, por não perder nome de conquistador, já seguiu este modo, conquistando por dentro da terra, até vir ter ao reino de Pegu, no qual ainda hoje estão obras de suas mãos, com letras que o dizem, assim como sinos de metal de muito descompassada grandeza e bombardas da mesma sorte, donde parece que primeiro este uso se achou entre eles [do] que acerca de nós. E em um campo no reino [de] Ava,23 ao norte de Pegu, entre estas duas cidades, Piandá e Mirandu, se acham grandes ruínas de uma cidade que eles ali edificaram.24 E não somente estes reinos nomeados, mas quantos compreendem em si o grande reino [de] Sião, de que atrás escrevemos, com os reinos [de] Melitai, Bacam, Chalam, Varagu, que ficam ao norte de Pegu, com outros do interior da terra que com eles vizinham. Todos em alguma maneira observam e guardam parte da religião deles, chineses, e o conhecimento da ciência das coisas naturais, conta[ge]m do ano por meses da lua, doze signos do zodíaco e outras notícias do movimento dos corpos celestes. Porque no tempo que por eles foram conquistadas aquelas partes, deixaram semeada esta doutrina. E ainda em modo de reconhecimento que todos estes reinos foram conquistados daquele império da China, quase até nosso tempo, de três em três anos, os reis deles lhe mandavam seus embaixadores com algum presente.25 Os quais embaixadores sempre haviam de ser de quatro para cima, porque, primeiro que chegassem a este grande imperador [e] príncipe daquele estado era tamanha a distância do caminho e tardavam tanto tempo em serem ouvidos e despachados, que primeiro morriam um par deles; e quando a doença os não matava, em algum banquete lhe[s] davam coisa com que os enterravam. Ao qual ou quais faziam uma sumptuosa sepultura com letreiro, em que se continha quem era e por quem fora mandado, tudo por perpetuar a memória de seu império.

Porém, assim nesta conquista terrestre que tiveram, como na por mar, quando vieram à Índia, como já dissemos,26 tiveram maior prudência que os gregos, cartagineses e romanos, os quais, por causa de conquistar[em] terras alheias, tanto se alongaram da pátria que a vieram [a] perder. Peró27 os chineses não quiseram experimentar este total dano. Antes, vendo como a Índia lhe[s] consumia muita gente, muita substância de seu próprio reino e que eram avexados dos vizinhos, enquanto eles andavam derramados conquistando o alheio, havendo na sua terra ouro, prata e todo outro metal, e muita riqueza natural, e tão grande mecânica que todos tomavam deles e eles de ninguém, por decreto de um rei prudente que então governava, [a China] tornou-se [a] recolher nos termos do estado que tinha, fazendo [o dito rei] uma pragmática e defesa, sob pena de morte, [que] ninguém navegasse para aquelas partes.28

Da qual lei hoje se guardam estas duas coisas. [Primeiro, que nem] por terra nem por mar pode entrar um só homem no seu reino. E os que entram com algum negócio importante ao serviço d'el-rei é com nome de embaixador, e os passos destes são contados por olheiros a isso ordenados, [de modo] que se sabe quanto faz[em]. E até os mercadores que por terra querem ir a esta China ajuntam-se muitos e fazem um deles cabeça, com nome de embaixador, e com esta cautela compram e vendem. A segunda coisa é que nenhum natural pode navegar para fora, e sofre-se29 alguns que vivem nas ilhas pegadas na terra firme irem a parte que torne[m] aquele ano, e para esta tal ida pede licença aos regedores da terra e dá fiança de tomar em tal tempo, e não há-de levar navio que passe de cento e cinquenta toneladas; e se pede licença para maior, não lha querem dar, que dizem que quer ir longe do reino. E se alguns estrangeiros por mar lá vão e [aportam] a estas ilhas e ali [ficam] meio furtados, vêm os da terra comprar e vender, e por esta maneira o fazem hoje os nossos. Porque ainda que Fernão Peres de Andrade desta vez assentou paz e amizade com eles,30 foram depois outros [portugueses], que fizeram obras com que eles ficaram de guerra connosco.31

A gente desta província [de] Cantão onde ele esteve, em respeito da outra que vive mais vizinha ao norte, é como a gente de África aos alemães, assim no parecer, na alvura e trajo, como no tratamento de sua pessoa, de maneira que os de baixo parecem escravos dos de cima. Somente, por respeito do comércio nesta cidade [de] Cantão a gente se trata bem e é rica no seu modo, que por razão dele concorrem das outras províncias do sertão muitas mercadorias de toda [a] sorte, e assim de diversas nações deles, que já variam a língua natural de Cantão, posto que entre si se entendem quase ao modo dos gregos, contraindo os vocábulos uns mais que outros.32

Geralmente são homens delgados em todo [o] negócio, principalmente em o da mercadoria; e nos [negócios] da guerra muito astuciosos, e que em artifícios para a guerra naval, pela experiência que os nossos têm, não hão inveja aos da Europa, e já quando lá fomos tinham artilharia.33 Porém, depois que viram a forma da nossa, logo tomaram o modo, porque são tão excelentes fundidores que lavram o ferro em vasos do serviço de casa, como vemos o latão de Nuremberga, e é levado por mercadoria por todas aquelas ilhas do grande Oriente; mas por ser ferro pedrês quebra como vidro.

As mulheres são de bom parecer em seu modo, e tratam-se muito bem, e eles são tão ciosos delas que poucos lhas vêem; e quando hão-de ir fora, vão metidas em andas todas cobertas de seda,34 em colos de homens, rodeadas de servidores. E peró que todos geralmente têm duas ou três mulheres, uma só, que é a primeira, têm por legítima na estimação. Assim elas como eles são muito mimosos e deliciosos no trajo [e] no serviço de suas pessoas, e no comer dispendem tanta substância como tempo, porque tudo são banquetes, em que gastam dias e noites, de maneira que lhes não chegam flamengos nem alemães. Nos quais banquetes há todo [o] género de música, de volteadores, de comédias, de chocarreiros e toda outra deleitação que os pode alegrar. O serviço do qual comer é o mais limpo que pode ser, por ser tudo em porcelana muito fina, posto que também se servem de vasos de prata e ouro, e tudo comem com garfo feito a seu modo, sem pôr a mão no comer, por miúdo que seja. Peró têm uma diferença dos banquetes de cá, porque de dois em dois [comensais] têm uma mesa pequena, posto que na casa haja cinquenta convidados, e a cada sorte de iguarias há-de vir serviço novo de toalhas, pratos, facas, garfos e colheres. E de ciosos não comem as mulheres com eles, sendo logo servidos naqueles banquetes por mulheres solteiras, que ganham sua vida neste ofício, as quais são quase como chocarreiros, porque todo o serviço da mesa se passa com graças, assim delas como dos outros ministros alugados para isso. As mulheres próprias, posto que não este[ja]m nestes banquetes, com suas amigas no interior das casas fazem outro, onde não entra homem, somente alguns cegos, que tangem e cantam. Geralmente os homens nobres têm grandes aposentos, com pátios, alpendres cobertos, jardins, e tudo são casas térreas, ao menos na cidade [de] Cantão e todo o marítimo que os nossos viram; e de outiva dizem que nas províncias mais ao norte há edifícios sobradados.

Quase a maior parte destas províncias, ou governanças, como lhe eles chamam, principalmente as marítimas, todas são retalhadas com rios, deles de água doce e outros são esteiros de salgada, que entram muito pela terra; e por ser [terra] muito chã o marítimo dela, parece alagadiça, não o sendo; mas por indústria dos naturais trazem o habitado dela à maneira de um pomar regado. Donde vem que há tanta cópia de barcos de serventia destes rios, que parece habitar tanta gente na água como na terra; porque os barqueiros, como aquela é sua herança, ali trazem mulher [e] filhos, e sua fazenda a uma parte coberta à maneira de casa, e a outra parte também coberta, segundo o tempo do ano, para os passageiros. E como qualquer rio for grande e largo, por que umas possam ir e outras vir, quase todo está coalhado de outros barcos à maneira de vendas, onde se acham todas as polícias que pode haver nas cidades. Finalmente, é gente que por indústria de ganhar de comer não há coisa que não invente. Têm carretas à vela nos lugares de campina, as quais governam como podem fazer a um barco por um rio, onde a gente caminha ao modo dos carros de Flandres e Itália, posto que têm outros de cavalos.

A cidade de Cantão, onde Fernão Peres esteve, não somente pela informação que tivemos dele,35 e de outros que foram em sua companhia, mas por um debuxo do natural dela, que nos de lá trouxeram, sabemos estar situada ao longo de um destes rios navegáveis,36 que dissemos, o qual à entrada da barra tem algumas ilhas povoadas de agricultores, e dali até à cidade corre o rio em largura de duzentos passos e de altura de três até sete braças, todo pela margem povoado de lugares pequenos [e] viçosos. O assento da cidade é em campo chão e gracioso, com agricultura dele; somente quase no meio dela, dentro dos muros, está um teso alto, que parece uma teta, onde está situado um sumptuoso templo, que com seus coruchéus à maneira de pirâmide, de que eles usam do cimento até o cume, faz mostra da cidade muito formosa, além de outros templos que ela tem, que se não mostram tanto, e assim as casas, porque, como dissemos, todas são térreas.

O circuito do muro dela parece que será mais de três milhas, não tanto por estimação de vista quanto por conta, porque uma noite em que eles fazem festa solene de grandes iluminárias,37 ao modo que nós celebramos a véspera de S. João Baptista, um António Fernandes, homem curioso dos que levava Fernão Peres, estando neste tempo dentro na cidade, porque de dia não ousava de o fazer, correu por cima do muro toda a cidade e contou noventa torres, que eram ao modo de baluartes. Todo este muro é alomborado38 por fora, assentado sobre a face da terra sem outro alicerce, liado de cantaria e cal, e tão grosso no pé que quando vem a responder ao meio é três vezes menos em largura; e por cima, por onde se ele corre todo, será mais de vinte palmos, entulhado por dentro mais das duas partes da altura dele, que poderá ser de quarenta palmos, o qual entulho saiu de uma cava muito larga, que cheia de água torneia todo este muro, ficando entre ele e ela espaço tão largo que poderão ir a par seis homens a cavalo, e por dentro do muro outros tantos, de maneira que se possa todo ver e servir de dentro e de fora, sem algum edifício de casas lhe fazer nojo. Em cada uma das quais torres há uma maneira de guarita, ou guarida, que é mais português, coberta do sol e da chuva, onde por ordenança da cidade todas as noites estão velas que vigiam.

O que faz esta situação da cidade mais formosa na ordem das casas é ter duas ruas feitas em cruz, que tomam quatro portas da cidade, das sete que tem de serventia, e assim estão direitas e compassadas, que quem se põe em uma porta pode ver a outra defronte. Sobre as quais duas ruas todas as outras vão ordenadas, e à porta de cada casa está plantada uma árvore que tem todo [o] ano folha, somente para sombra e frescura, e assim postas em ordem, que pelo pé de uma se podem com a vista enfiar o de cada uma das outras. Nas sete portas por que se a cidade serve há sete pontes de pedra e cal, e cada porta tem uma torre com a entrada requestada por três portas, que passando uma fica defensão na outra; e se alguns barcos querem ir por debaixo da ponte, bem o podem fazer, que a cava tem altura para ser navegada, peró há-de ser indo eles desmastreados. Em cada uma das portas da entrada da cidade há um homem como capitão da guarda, que tem consigo ministros, sem deixar entrar senão homem natural e conhecido; e dos naturais nenhum pode levar armas, somente os que são ministros da guarda dela, como cá são os soldados, que por seu trajo são conhecidos. A gente estrangeira, que ali vem ter das outras províncias e de fora da China, pousa em um arrabalde que a cidade tem, e porém não há-de haver homem que se não saiba donde é [e] a que vem; e se é vadio, logo é preso.

Finalmente, é o governo e prudência desta terra tal que as mulheres solteiras vivem fora dos muros, por não corromper[em] a honestidade dos cidadãos, e não há homem do povo que não tenha ofício. Donde vem que não há pobre que peça esmola, porque todos, ou com os pés ou com as mãos ou com a vista, hão-de servir para ganhar de comer; e de cegos haverá dentro na cidade passante de quatro mil, e estes servem de moer nas atafonas em mós de braço, assim trigo como arroz. As outras coisas da grandeza desta terra e do seu governo e costumes, como dissemos, se guarda para os livros da Geografia;39 baste o dito para entendimento do que Fernão Peres aqui passou, de que queremos dar relação o mais breve que pudermos.40

Retrato de D. João III e Dona Catarina, meados do século XVI (Museu Nacional de Arte Antiga), in MOURA, Vasco Graça, O Tratado de Tordesilhas, Lisboa, Correios, Telégrafos e Telecomunicações, 1994, p. 89.

Garrafa de porcelana de Jorge Álvares,1552(Museu do Caramulo), in Reflexos: Símbolos e Imagens do Cristianismo na Porcelana Chinesa, coordenação de Pedro Dias, Lisboa, Santa Casa da Misericórdia, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,1996, p.37.

NOTAS

* l.a edição: Lisboa, 1563.

1 O oceano Pacífico.

2 No original "Cález". Mas Barros parece estar a referir-se à cidade do sul de Espanha, que se situa numa alongada península aproximadamente na latitude adiante referida.

3 O oceano Atlântico.

4 Original: "Cácho".

5 Os tártaros, com efeito, faziam frequentemente incursões depredadoras através da fronteira setentrional do Celeste Império.

6 Barros refere-se repetidamente, nas suas obras, a uma Geografia que teria composto, mas que até hoje nunca foi encontrada.

7 Referência à Grande Muralha da China.

8 No original aparece "Ochióy", que parece ser erro tipográfico por "o Chióy", transcrição aproximada de Jiayu, localidade chinesa situada no extremo ocidental da Grande Muralha, a qual, no tempo dos Ming, se estendia para leste até ao golfo de Zhili.

9 Barros parece aqui equivocar-se, pois "tancá" (danjia) era a designação atribuída em Cantão à "gente dos barcos", a parte da população da cidade que vivia em embarcações.

10 Este livro de Cosmografia poderia ter chegado às mãos de Barros por intermédio dos cativos portugueses de Cantão, Cristóvão Vieira e Vasco Calvo (cf. supra, pp. 32 - 35).

11 Medida de distância chinesa equivalente a cerca de 620 m.

12 Medida de distância chinesa equivalente a cerca de 6100 m.

13 Medida de distância subjectiva, utilizada na China, que equivalia a uma jornada.

14 Esta lista de províncias chinesas assemelha-se bastante à que poucos anos antes tinha sido apresentada por Cristóvão Vieira (cf. supra, pp. 30 - 31). A carta deste prisioneiro, aliás, foi uma das fontes utilizadas por Barros.

15 "Fu": distrito chinês.

16 "Cheu" (zhou): comarca.

17 Tutão (chinês dutang): vice-rei ou governador geral de uma província.

18 Conquão (chinês zongguan): chefe da fazenda provincial.

19 Chumpim (chinês zongbing): comandante do exército provincial.

20 João de Barros e Fernão Mendes Pinto são os únicos autores portugueses que no século XVI se referem à China como um "império".

21 Talvez se trate de chá.

22 Ceui (chinês yushi): censor investido das funções de comissário imperial itinerante.

23 O antigo reino de Ava situava-se nas margens do curso superior do Iravadi, ocupando territórios do interior do actual Miamar (Birmânia).

24 Barros refere-se provavelmente às ruínas de Pagam, antiga capital birmanesa, de que ainda hoje sobrevivem majestosos vestígios.

25 A civilização chinesa exerceu enorme influência na península da Indochina, mas João de Barros exagera a vastidão das conquistas territoriais levadas a cabo pelo Celeste Império. A China mantinha antes relações tributárias com muitos dos reinos daquelas partes, que se concretizavam no regular envio de embaixadas tributárias a Pequim.

26 João de Barros estava a referir-se às grandes viagens marítimas chinesas, levadas a cabo por poderosas armadas de centenas de juncos, que nos primeiros anos do século xv percorreram todo o oceano Índico, chegando a atingir o litoral oriental de África.

27 Isto é, "mas".

28 Esta passagem da Década Ⅲ tem sido interpretada como uma crítica implícita de João de Barros à expansão portuguesa, que por meados do século XⅥ atingira uma extensão verdadeiramente desmesurada. Mas outros trechos de obras do autor fazem supor que ele seria um ardente partidário da expansão oriental dos portugueses.

29 Isto é,"tolera-se".

30 Barros refere-se à expedição conduzida a Cantão em 1517-1518 por Fernão Peres de Andrade.

31 Referência aos confrontos luso-chineses ocorridos em 1521-1522 nas ilhas do estuário do rio das Pérolas.

32 Existem na China muitas dezenas de línguas e dialectos mutuamente incompreensíveis, recorrendo os chineses à chamada "língua mandarina", usada na região de Pequim, e aos caracteres escritos para se entenderem.

33 A artilharia existia desde longa data na China, muito embora tivesse um poder de fogo bastante inferior ao da europeia.

34 Isto é, "em liteiras".

35 Ao tempo em que Barros era feitor na Casa da Índia, Fernão Peres de Andrade desempenhava o cargo de provedor dos armazéns de Lisboa e das armadas, de forma que ambos se devem ter encontrrado regularmente, tendo assim o nosso autor oportunidade de se documentar junto dele sobre a primeira grande expedição portuguesa à China.

36 A cidade de Cantão situa-se nas margens do rio das Pérolas.

37 O Festival das Lanternas, que costuma encerrar as celebrações do Ano Novo chinês.

38 Isto é, "escarpado".

39 Mais uma vez Barros deixa os seus leitores suspensos, remetendo-os para a misteriosa Geografia.

40 O capítulo seguinte da Década Ⅲ é consagrado à estadia da armada de Fernão Peres de Andrade no litoral da China.

desde a p. 57
até a p.