Antologia Documental

LIVRO DAS CIDADES E FORTALEZAS*

Anónimo

O Livro das Cidades e Fortalezas que permaneceu manuscrito até há relativamente poucos anos, é um longo relatório sobre as possessões portuguesas no Oriente, elaborado por volta de 1582, por algum funcionário com vasta experiência das coisas ultramarinas. O autor, segundo se deduz, pretendia informar minuciosamente El-Rei Filipe II sobre a situação dos interesses portugueses naquelas longínquas paragens, numa altura em que o monarca espanhol acabava de assumir também o trono de Portugal. O anónimo relator, baseando-se em testemunhos escritos por conterrâneos seus sobre aquelas regiões, e também em "informações dos homens mais práticos de cada uma delas", elaborou uma síntese valiosíssima sobre a dispersa geografia dos estabelecimentos pertencentes à coroa lusitana e sobre a complexa orgânica do funcionalismo que assegurava a sobrevivência do Estado da Índia. Complementar-mente, o autor do Livro fornece ainda preciosos informes de carácter etnográfico, assim como indicações pormenorizadas sobre as mais importantes "viagens", ou seja, regulares rotas mercantis, controladas pe-los portugueses nos mares orientais. Assumindo-se um pouco como "arbitrista", muito ao modo do seu tempo, não se coíbe de tecer críticas de pormenor à gestão dos empreendimentos ultramarinos, propondo mesmo soluções alternativas para determinadas anomalias do sistema. A lógica da distribuição de cargos é um tema que lhe desperta especialmente a atenção.

A descrição de Macau é concisa, limitando-se a umas poucas observações elementares. Mais destaque merecem a orgânica administrativa da povoação e a rede mercantil que nela tem o seu epicentro. Repare--se na curiosa referência à "cidade de Machao" que aparece no título do capítulo, alguns anos antes daquele estabelecimento português ter adquirido esse estatuto. Esta parece ser a mais antiga descrição "oficial" de Macau que hoje se conserva.

Fonte utilizada: Livro das Cidades, e Fortalezas que a Coroa de Portugal Tem nas Partes da Índia, e das Capitanias, e mais Cargos que Nelas Há, e da Importância Deles, edição de Francisco Paulo Mendes da Luz, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960, pp. 157-161. O texto foi modernizado e os subtítulos são da responsabilidade do coordenador.

Frontispício do anónimo manuscrito do. Livro das Cidades, e Fortalezas, que a Coroa de Portugal Tem nas Partes da Índia (c. 1582), Biblioteca Nacional de Madrid.
Página do anónimo Livro das Cidades e Fortalezas, c. 1582 (Biblioteca Nacional de Madrid), in Macau: Cartografia do Encontro Ocidente-Oriente, coordenação de Luís Filipe Barreto, Macau, Comissão Territorial para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, s. d., p. 113.

DESCRIÇÃO DA ILHA E CIDADE DE MACAU.1

Na costa do grande reino da China, em vinte [e] três graus e meio da parte norte, está a cidade de Cantão,2 cabeça de uma das províncias que o dito reino tem.3 [Está] situada ao longo de um rio nave-gável, que à entrada da barra tem grande número de ilhas, povoadas de agricultores, entre as quais está a ilha de Macau,4 de que ora tratamos, dezoito léguas abaixo da dita cidade [de Cantão], a qual terá pouco mais ou menos sete léguas de compri-mento. E em uma ponta dela, no melhor porto que ela tem, se foi fazendo uma povoação grande de portugueses, que, depois de cansados dos trabalhos e serviço de guerra, se passaram a ela de vivenda, com suas mulheres e família, por causa da muita riqueza e abundância de todas as coisas que há nes-ta região da China.

E foi em breve tempo crescendo esta povoação, de maneira que tem hoje passante de dois mil vizi-nhos,5 havendo menos de vinte anos que se come-çou a povoar dos portugueses,6 por dantes os não consentirem os chineses, nem a outros estrangeiros alguns. E irá sempre pelo decurso do tempo aumen-tando-se cada vez mais, por ser esta ilha uma esca-la geral de todas as mercadorias que da Índia vão para a China e Japão e outras partes daquele Orien-te, e delas vêm para a Índia.7

Porque todos os navios estrangeiros que vão a esta província de Cantão hão-de ir surgir ao porto desta ilha de Macau, e dali fazem seus comércios com os da terra firme, por os não consentirem passar mais adiante, e por razão deste concurso de estrangeiros que aqui há, concorrem das outras províncias de dentro do sertão da China muitas mercadorias de toda [a] sorte. Do que tudo resulta ser esta povoa-ção de Macau muito célebre em trato, e haver nela grandíssimo concurso de várias mercadorias de todo o Oriente. Pelo que, assim por causa deste comér-cio que nela há, como por ser terra muito pacífica, se vai acrescentando por momentos em povo e gran-deza, de maneira que se espera que em muito breve tempo venha a ser uma das mais ricas e prósperas cidades daquelas partes.

Os moradores da qual são quase todos portugue ses, e outros cristãos mestiços e naturais da terra, os quais, posto que a terra seja d'el-rei da China, que nela tem seus oficiais que recebem os direitos que se ali pagam,8 são governados pelas leis e or-denações deste reino de Portugal,9 e têm os oficiais abaixo nomeados, que lhes administram justiça, que deste Reino vão providos, ou os vice-reis os man-dam da Índia.

E têm templos e igrejas muito bem ornamenta-das, em que publicamente celebram os divinos ofí-cios. E [têm] um bispo [a] que chamam da China, que deste Reino foi mandado com largos poderes apostólicos para a cristandade daquelas partes e do Japão, e reside ordinariamente neste lugar.10

CARGOS DE MACAU.

Nesta povoação não houve nunca capitão que re-sidisse ordinariamente nela, somente o capitão das viagens do Japão, que se fazem cada ano, como di-remos em seu lugar,11 serve de capitão da terra en-quanto nela está, e já quando se vai é vindo o outro capitão da outra viagem, de maneira que muito pou-co ou nenhum tempo está sem capitão. Há mais nela um ouvidor e um escrivão do público, judicial e notas, que também serve de escrivão dos defuntos e dos órfãos.

O ouvidor não tem ordenado algum à custa da fazenda d'EI-Rei, porém é muito bom cargo, e a melhor ouvidoria da Índia e [a] mais procurada de todos. Importará [em] mais ou menos segundo for sua indústria,12 mas tomado um [ouvidor] meio-honesto, poderá importar, em três anos, de três para quatro mil cruzados, pouco mais ou menos.13

O dito cargo de escrivão, em três anos, poderá render de dois mil e quinhentos até três mil cruza-dos forros,14 pouco mais ou menos. O qual [car-go] se costuma prover de três em três anos, e por mais, a diversas pessoas, o que acho ser muito pre-judicial ao serviço de Deus e bem da justiça, por ser ofício que tem cartório e papéis, que convém que ande provido em pessoas que a todo [o] tem-po dêem conta de si. Pelo que se não deveria pro-ver temporalmente, mas em vida.15 E por ser a po-voação grande e ir cada vez como temos dito, em crescimento, se deveria partir em dois, e poderia desta maneira prover[-se] em dois soldados de serviço, em suas vidas, que se sustentariam com eles honradamente.16

VIAGEM DA CHINA PARA O JAPÃO.

Os providos destas viagens da China para o Ja-pão partem de Goa com navios próprios seus, ar-mados à sua custa e despesa, para a China, e le-vam alguns fretes, ainda que poucos.17 E quando chegam à nossa cidade de Malaca, pagam de to-das as fazendas que levam a oito por cento de di-reitos na alfândega, e de saída não pagam coisa alguma. Mas porque dali para a China não podem levar drogas e especiarias, nem outras fazendas, por não prejudicarem com isso a "viagem das dro-gas" que os capitães daquela cidade [de Malaca] fazem para a China, por provisões dos vice-reis, de que diremos adiante,18 se concertam muitas vezes com os ditos capitães e lhes compram a dita "viagem das drogas", para as poderem levar para a China, por ser a principal mercadoria que lá tem mor valia.19

Antigamente iam de Malaca à Sunda,20 donde levavam muita pimenta e drogas para a China, pelo que escusavam de comprar a dita viagem. Porém, de alguns anos a esta parte, não vão à Sunda, e de Malaca partem direitos à China, e vão ter ao porto e ilha de Macau, de que tratámos atrás. E, enquan-to nele estão, são capitães, com jurisdição cível e crime da povoação que nela temos, e capitães-mores de todos os navios que estão no porto. Do qual [porto] para o Japão não pode ir outro algum navio ou nau, senão a do dito capitão-mor desta viagem. Pelo que todos os moradores do dito lu-gar de Macau, e assim qualquer outra pessoa que tem trato e comércio no Japão, carregam suas fa-zendas e mercadorias na dita nau do capitão-mor, pagando-lhe muito grandes fretes à ida e à vinda, que importam tanto que neles consiste o principal rendimento e proveito destas viagens.

Quando os capitães-mores têm cabedal próprio seu, vão eles mesmos na sua nau ao Japão para po-derem benificiar sua fazenda e se aproveitarem. Mas quando não têm cabedal, ou não querem ir, man-dam a nau com as mercadorias das partes, e eles ficam-se em Macau até à torna-viagem dela.

O porto do Japão a que mais comummente vão estes navios da carreira se chama Nagasáqui;21 algumas vezes vão também aos portos de Firando e Cochinocho.22 E levando da China muitas e vá-rias mercadorias, o principal que trazem do Ja-pão é prata em barras, de que há nele muita quan-tidade, e alguns brincos e sedas tecidas. O que tudo à torna-viagem se vende na China, e tornam a carregar ali doutras mercadorias para a Índia.

São os ditos capitães-mores juntamente prove-dores dos defuntos que morrem, assim na via-gem à ida e vinda, como em Macau, o qual cargo lhes importa um bom pedaço. E porque quando tratámos do dito Macau fizemos menção deste cargo e remetemos a declaração dele para este lugar, tratarei ora dele.

Nas patentes que se passam desta viagem se declara que [os capitães] serão também prove-dores dos defuntos; e quando não vai declara-do, os vice-reis lhes passam provisões na Índia para isso, o que é em muito prejuízo das partes, principalmente dos moradores de Macau. Por-que tomam a fazenda dos defuntos e depois de uma vez entregues dela, ou nunca vem à mão dos herdeiros, porque a metem em seus tratos e se tornam com ela para a Índia e se vêm para Portugal, de maneira que fica quase impossível a arrecadação dela. Pelo que se devia prover este cargo à parte, com declaração que se lhe fizesse receita de toda a fazenda que recebe dos defun-tos, e que por ela desse conta em Goa, tanto que acabasse de servir. E desta maneira se poderia prover em um homem nobre e de sã consciên-cia, e importar-lhe-á em três anos seis ou sete mil cruzados.

Tornando às viagens de que tratávamos, digo que são as melhores e mais proveitosas de todas as que se fazem nas partes da Índia, e assim se proverão sempre em fidalgos muito honrados e de serviços e merecimentos muito particulares. Importará cada uma de trinta e cinco mil cruzados para cima, pou-co mais ou menos, forros de todos os custos. E quan-do se vende, se dão por ela de compra ao redor de vinte mil cruzados em dinheiro, pagos a metade logo e a outra metade à torna-viagem.23

Carta do Extremo Oriente de Lázaro Luís, 1563 (Arquivo da Câmara de Lisboa), in MARQUES, Alfredo Pinheiro, A Cartografia Portuguesa do Japão (Séculos XVI-XVII), Lisboa, Fundação Oriente, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1996, p. 125.

NOTAS

1 O título desta secção do Livro das Cidades comete dois equí-vocos: Macau não era cidade, nem se situava numa ilha, mas antes numa península. Relativamente ao primeiro ponto, a questão ficaria resolvida se atribuíssemos uma datação mais tardia à obra (pós 1585); quanto ao segundo ponto, as fontes coetâneas referem com frequência a "ilha" de Macau.

2 Latitude de Cantão: 23° 5' N.

3 Cantão situa-se na província de Guangdong. Era muito invulgar a utilização por autores portugueses da designação "província"; os nossos textos, normalmente, falam de "rei-no" ou "governanças".

4 O original emprega sempre a forma "Machao".

5 Ou seja, entre oito e dez mil habitantes.

6 As primeiras referências a portugueses em Macau surgem em 1555.

7 Macau era de facto um dos mais importantes entrepostos mercantis no Mar do Sul da China.

8 O autor destaca a soberania chinesa sobre Macau, materiali-zada na existência de uma alfândega.

9 Esta passagem revela que o Livro das Cidades foi preparado em Portugal.

10 O primeiro bispo residente em Macau foi D. Melchior Car-neiro, que ali aportou em 1568. Mas o nosso anónimo autor deve estar a referir-se a D. Leonardo de Sá, que em 1579 foi o primeiro bispo expressamente nomeado para a diocese de Macau, onde terá chegado dois anos mais tarde. A povoação macaense era um importante ponto de escala para os missio-nários jesuítas que regularmente se dirigiam ao arquipélago do Japão, onde a cristianização dos japoneses avançava a bom ritmo, graças a um conjunto de circunstâncias políticas e cul-turais muito favoráveis.

11 O autor refere-se às viagens da China para o Japão numa outra secção do Livro das Cidades.

12 Isto é, os rendimentos da ouvidoria estavam dependentes da habilidade e (des)honestidade do detentor do cargo.

13 A título de comparação, refira-se que, segundo esta mesmafonte, o ouvidor-geral da Índia, residente em Goa, auferia um ordenado de cerca de oito mil cruzados num mandato de seis anos.

14 Isto é, "líquidos".

15 Isto é, "perpetuamente".

16 Não é impossível que o autor do Livro das Cidades fosse um antigo soldado da Índia, se tivermos em conta esta defesa acalorada de tal agrupamento social.

17 A Coroa portuguesa contemplava anualmente um seu servi-dor com a mercê da "viagem do Japão", que era considerada uma das mais rentáveis em todo o Oriente. Os beneficiados deveriam ser homens de posses, uma vez que teriam de ar-mar navio à sua própria custa, tal como explicita o nosso autor.

18 O autor do Livro das Cidades explica numa outra secção da obra que os capitães de Malaca tinham licença vice-real para mandarem realizar determinadas viagens durante o tempo da respectiva capitania. Uma delas era a "viagem das drogas", cuja mercê atribuía ao capitão de Malaca o monopólio do comércio de drogas e especiarias para a China.

19 A pimenta era a mercadoria mais importante no comércio entre Malaca e a China.

20 Sunda era um importante porto na parte ocidental da ilha deJava, onde os portugueses costumavam abastecer-se de pimenta.

21 O porto de Nagasáqui começou a ser demandado pelos na-vios portugueses por volta de 1571, já que desde então a po-voação havia sido entregue aos padres da Companhia de Je-sus pelo dáimio japonês Omura Sumitada, também conheci-do pelo nome cristão de D. Bartolomeu.

22 Os portos japoneses de Hirado e Kuchinotsu.

23 Não era invulgar o titular de uma determinada viagem vendê--la pela melhor oferta, evitando assim os riscos da jornada.

* Ms., Lisboa, c. 1582.

desde a p. 97
até a p.