Goa-Macau

GALERIA DE MULHERES ILUSTRES EM MACAU

Manuel Teixeira*

Cena doméstica [detalhe]-Mou Yi. As servas preparam as vestimentas sob a supervisão da senhora. Tinta da china sobtre papel,27,1? á266,4cm, Séc. XIII. In GOEPPER, Roger, La Chine ancienne: l'histoire et la culture de lÉmpire du Milieu, [Paris], Bordas,1988, p.129.

HARRIET LOW

Nasceu em Salem, estado de Massachusetts, E. U. A., a 24 de Maio de 1809; com 20 anos de idade veio para Macau, no navio Sumatra, sob o comando do Cap. Roundy, que aqui aportou em Setembro de 1829, após 4 ou 5 meses de viagem. Em Janeiro de 1834, re-gressou à sua terra natal a bordo do Waterloo.

Em Macau escreveu o seu diário, que ainda se encontra inédito em Washington e cobre sete volumes. Em 1900, sua filha, Catherine Hillard, publicou, sob o título de My mother's journal, excertos deste diário em Boston.

Harriet Low — George Chinnery. Colecção R. J. F. Brothers — Peabody Museum, Salem, Massachusetts. In CONNER, Patrick, George Chinnery: 1774-1852: artist of India and the China coast, Woodbridge, Suffolk, Antique Collectors' Club, 1993, p. 193.

Viveu em casa de seu tio, William Henry Low, proprietário da firma Russel & Co., de 1829 a 1833. A casa ainda existe e duas descendentes da famosa escrito-ra que, recentemente, estiveram em Macau — duas ir-mãs: Susana, de 27 anos, e Linda, de 23 —, ficaram comovidíssimas ao visitá-la, tirando inúmeras fotogra-fias do exterior e do interior, de todos os ângulos e posi-ções. Mas saíram de lá tristíssimas, porque os inquilinos lhes deram a má nova de que a casa ia ser demolida.

Dizem-nos que parte do antigo muro do Colégio de Sta Rosa de Lima, construído em 1634, vai ser tam-bém demolido para dar lugar a uma via pública. Com as demolições de tantas relíquias históricas, não sabemos o que Macau poderá mostrar amanhã aos turistas e aos his-toriadores.

Estas duas irmãs manifestaram o grande desejo de que lhes cedessem alguns ladrilhos dessa casa conde-nada a desaparecer. Susana é assistente do Director de Comunicações, Ofício da Imprensa, da Casa Branca e, em 1969, tomou parte na campanha eleitoral que levou Nixon a Presidente da República. Linda é pintora. Fica-ram encantadas com Macau.

No alto da Calçada de S. João, no prédio n° 22 do Pátio da Sé, ficava a residência do proprietário da firma americana Russel & Co. Esta firma formara-se pela associação de duas companhias comerciais — Perkins and Co. e Samuel Russel. Thomas H. Perkins, de Bos-ton, fundou a sua firma na China, em 1803; Samuel Rus--sel veio para a China em 1818 como representante dos interesses de Hoppin Brothers, de Providence, Rhode Island.

A associação destas duas firmas, em 1824, sob o nome de Russel & Co., foi um passo gigantesco para a expansão do comércio americano na China. Esta Com-panhia representa a Baring Brothers and Co. de Londres, e Jamsetjee, Jejebhoy, and Sons de Calcutá. William C. Hunter, que veio para a China em 1825, ficou sócio desta firma (1837-1842) e escreveu dois livros sobre a vida e as actividades dos comerciantes estrangeiros em Macau e Cantão, que hoje são muito raros e apreciados: The fan kwae at Canton e Bits of old China.

Quando os ingleses se estabeleceram em Hong Kong, para lá passou a firma Russel & Co., a qual, em 1846, abriu uma sucursal em Xangai, vindo a ser ali a mais importante firma comercial. A Russel & Co. foi uma das mais influentes no Extremo Oriente até 1891.

Harriet Low descreve assim a mansão de Russel:"Macau vista do mar é linda, com alguns sítios muito românticos. Chegámos às dez horas, metemo-nos em ca-deirinhas e fomos para a nossa casa, de cujo aspecto gostámos muito. As ruas de Macau são estreitas e irregu-lares, mas temos um jardim, do qual espero, antecipada-mente, grande prazer. De facto, são dois, um sobre o ou-tro. Todas as varandas são de pedra polida, tão lisa como o soalho. Sobem-se cinco lanços de degraus e chega-se a um mirante donde desfrutamos uma bela vista da baía e do porto, podendo ver toda a cidade. Em volta do mi-rante há um terraço, onde se encontram muitas e lindas plantas. Com este lugarzinho e alguns pássaros deverei passar os dias muito confortavelmente. Não fazia ideia alguma de que existisse aqui um sítio tão lindo, mas des-ejava que alguém o compartilhasse comigo."

A 2 de Abril de 1830 regista no seu Diário: "De-pois do jantar olhando pela janela, vi um dos barcos da Companhia (East India Company) com o sol brilhando sobre as suas bem enfunadas velas.

Como desejei possuir o talento para a pintura do Sr. Chinnery, a fim de poder esboçar para ti a linda vista que tinha diante de mim, a grande e elegante igreja, bran-ca de leite, como uma esplêndida escadaria de pedra e cercada de árvores e arbustos (Igreja do Convento de S. Francisco). Pouco além, a fortaleza (de S. Francisco), e a baía alongando-se. Ainda mais além, podem ver-se os bar-quinhos resvalando sobre a superfície das águas do rio.

À distância, podem-se discernir duas elevadas ilhas e um lindo barco, demandando a sua tão almejada pátria.

Um pouco mais longe, está um pequeno barco europeu, navegando a toda a vela e, à vista, uma quanti-dade de barcos chineses.

Não poderás agora imaginar a agradável vista que gozamos do nosso terraço?"

A 23 e 24 de Setembro de 1831 descreveu o tufão que desabou sobre a cidade: "Destruiu completamente a Praia Grande; arrancou pedaços de granito de dez pés, projectando-os contra os vestíbulos das casas...

Nada mais que uma cena de destruição esta manhã!

A nossa varanda está bastante destelhada, as nos--sas esteiras desapareceram todas.

Onde está o cais? Foi-se. Ficou completamente demolida a Casa (Garden) sem telhados; um grande pe-daço arrancado do telhado da casa da Companhia no chão e imensas massas de granito projectadas no solo.

Muitas casas chinesas no extremo do cais foram ar--rancadas e a ermida da Penha encontra-se muito danificada.

No outro lado, no sítio perto da Igreja de S. Francisco, jaz um grande barco de pesca, uma ruína completa.

Na avenida está a quilha de um grande barco, que ainda há poucos dias eu vi com as velas pandas nos seus altos mastros e que agora estão niveladas sem a quilha, não ficando um único pau de pé."

A 18 de Maio de 1833, regista: "Às 19 h. fomos à ópera. Ia à cena Os italianos na Argélia.

Os trajos eram muito ricos e a maior parte das personagens representou bem. Foi muito engraçada."

A 30 de Maio: "Fomos à ópera às 20 h. A casa estava completamente à cunha. Todas as beldades e a última moda de Macau estavam ali."

ISABEL REIGOTA

Era natural do Japão, donde foi expulsa para Ma-cau pelos perseguidores da Fé Católica, que ela profes--sava. Aqui casou com Francisco Rombo de Carvalho, natural de Lisboa, de quem teve um filho, Manuel, que casou com Maria de Vasconcelos, natural de Macau, filha de Domingos Craveiro da Rosa e de Maria de Vas-concelos, também naturais de Macau.

Manuel de Carvalho teve de sua esposa, Maria de Vasconcelos, três filhos: 1) Francisco, baptizado a 11 de Fevereiro de 1669, o qual se ordenou sacerdote em Ju-nho de 1713; 2) uma filha, que casou com Francisco de Moura e Bastos; 3) um filho que casou com Francisca Leite Pereira.

Isabel Reigota e seu marido foram os fundadores de uma residência da Companhia de Jesus na China, cuja construção ela pagou com o seu dinheiro.

O já citado documento sobre os Benfeitores do Colégio de Macau enumera as suas esmolas à Companhia de Jesus: "Isabel Rugota deu ao Pe. Visita-dor, Antonio Rubino, e companheiros que foram a Japão, 1.200 taeis; a outro Padre, 700 taeis para se concluir sua embaixada de Camboja; para (este Colégio) em várias esmolas, 500 taeis, e outros 500 para a Missão da China e Tonquim, de mais de ser com seu marido Francisco Rombo já defuncto, fundadora de uma residencia na China, e tudo isto depois da quebra do comércio do Ja-pão; deixando outras miudezas que por espaço de dez anos chegaram a outros 200 taeis."

Note-se que o P. Rubino, visitador de 15-X-1639 até 1643, partiu ocultamente para o Japão em 1642 e ali foi martirizado a 22 de Março de 1643.

Isabel Reigota (ou Regouta, ou Rugota) faleceu em 21 de Janeiro de 1697, sendo sepultada na Igreja de S. Paulo, perto da coluna, em frente do púlpito.

Daqui se vê que eram os leigos que sustentavam as Missões da China, Vietname, Camboja e Japão, fun-dando residências e pagando as viagens dos missio-nários.

LAURA MARIA NOLASCO GUIMARÃES LOBATO

Genealogia

Nasceu em Macau a 25 de Janeiro de 1880, sen-do filha de Pedro Nolasco da Silva e de Edite Maria An-gier e faleceu há pouco em Lisboa.

Pedro Nolasco nasceu em Macau a 6 de Maio de 1842, sendo filho de Pedro Nolasco da Silva, nasceu a 31 de Janeiro de 1803, e de Severina Angélica Baptista (ca-sados a 23-11-1831), neto paterno de Joaquim José da Silva, e de Antónia Maria da Silva Aires (casados a 23-1-1794) e materno de Vicente Francisco Baptista e de Mariana da Silva.

Laura Maria Nolasco da Silva casou em Macau a 29 de Novembro de 1901, com o então alferes de infan-taria do exército metropolitano, António Júlio Guima-rães Lobato, que nasceu em Vila Real de Trás-os-Mon-tes, a 3 de Agosto de 1868, e faleceu em Macau, a 2 de Setembro de 1933, no posto de tenente-coronel, sendo filho de Sebastião Cândido Lobato e de Maria das Dores Guimarães Lobato.

Tiveram 5 filhos:

1 — Pedro, nasceu a 2-9-1902, licenciado em Direito, advogado; casou a 6-4-1940, com Maria Helena Meneses Ribeiro, nasceu em Lisboa, a 22-10-1915, filha do oficial de armada Alberto Teófilo Ribeiro e de Maria Celeste Meneses Ribeiro. Divorciou-se em Outubro de 1950.

2 — Maria Adelaide, nasceu a 29-12-1903, fale-cida.

3 — Laura Maria, nasceu a 9-8-1905, casou a 12-4-1931, com o capitão de artilharia Alexandre dos San-tos Majer, viúvo, nasceu a 20-6-1894, na freguesia de S. Pedro, concelho de Torres Vedras, falecido no posto de coronel, filho de Carlos Majer e de Teodolinda dos San-tos Majer, de quem teve uma filha, Maria do Carmo, a 13-12-1935, que casou com o major Fernando Baptista.

4 — António Maria, nasceu a 29-6-1909, faleceu a 14-7-1910.

5 — Luís Maria, nasceu a 13-5-1915, engenheiro civil, casou a 19-11-1949, com Maria Teresa Palma Leal, filha de Dr. Manuel Tavares da Silva Leal e de Maria Emília Palma Leal, de quem teve 5 filhos.

Dados Biográficos

Laura Maria Nolasco Guimarães Lobato nasceu em Macau a 25 de Janeiro de 1880, e foi a continuadora das tradições religiosas dos seus progenitores.

Ainda menina, frequentou o Colégio da Imacu-lada Conceição, dirigido pelas Religiosas francesas de S. Paulo de Chartres, onde adquiriu sólidos fundamentos da língua francesa, que lhe permitiram ensinar esta dis -ciplina durante muitos anos, com muita competência, na Escola Comercial, de que foi directora.

Fechado esse colégio pelo estrabismo tacanho dos chamados liberais, as Irmãs abandonaram Macau e foram continuar em Hong Kong a sua obra educadora.

Haviam fundado ali o grande Cólegio de S. Paulo de Chartres, que os ingleses sempre acalentaram e cujos benefícios ainda hoje usufruem.

Quando se abriu o Liceu, em 1894, no extinto Con-vento de St° Agostinho, foi Laura uma das primeiras alunas.

Casamento

Apaixonou-se por ela o alferes António JúlioGuimarães Lobato e, neste meio acanhado de Macau, a bisbilhotice invadiu as salas do Clube de Macau e extra-vasou para o grande público pelas tubas canoras da cha-mada imprensa liberal.

— Não, um oficial do Exército metropolitano não devia casar com uma macaísta...

E citavam-se casos de casamentos semelhantes que tinham naufragado.

Tudo isto lemos nós com verdadeiro nojo nos pa-péis liberais da época. Sempre os liberais a insurgir-se contra a liberdade alheia...

Mas o alferes Guimarães Lobato casou com ela em 29 de Novembro de 1901 e sua esposa mostrou-se sempre aquela "mulher forte", de que nos fala a Sagrada Escritura.

Durante a vida do seu marido, foi sempre esposa e mãe exemplar, ministrando a seus filhos esmerada edu-cação, sobretudo a educação religiosa.

Na Taipa

Joaquim Paço d'Arcos, que esteve em Macau de 1919a 1922, diz em Memórias da minha vida e do meu tempo, p.212:

"A família mais influente do meio português era a família Nolasco, a que se ligara pelo casamento um ofi-cial transmontano, o major Guimarães Lobato, elevado no nosso tempo (1919-1922) a tenente-coronel, que exercia a administração e o comando militar das Ilhas da Taipa e Coloane."

O coronel Lobato vivia na Fortaleza da Taipa com sua mulher e filhos, e sendo D. Laura muito sociá-vel e simpática, convidava as famílias das suas relações para almoços em sua casa.

Uma vez convidou, entre outras, as famílias do Governador Paço d'Arcos e do Almirante Luís de Maga-lhães Correia, Chefe dos Serviços de Marinha.

Paço d'Arcos, p. 262, referindo-se à família de Magalhães Correia, diz: "Foi num dia da Primavera de 1920, tenho ideia no começo de Abril, que conheci sua mulher e filhas, a bordo dum 'gasolina' que conduzia à ilha da Taipa bando numeroso de convidados da família Lobato, para um almoço na fortaleza, residência oficial do comandante militar da Taipa e Coloane.

A filha mais nova, Maria Cândida, tinha onze anos quase completados.

Eu fazia doze anos dentro de dois meses.

Éramos duas crianças que, por acaso da amizade entre os nossos pais, haviam bebido, sem que na altura em que nos conhecemos o soubéssemos, o leite da mes-ma ama mercenária.

Mas nesse dia, no instante em que pela primeira vez nos vimos, uma atracção mútua extraordinária nos aproximou.

Por fantasioso que pareça, nunca mais o destino da garota que conheci nesse passeio, da rapariga formosa de alma e de feições, da mulher perfeita que viria a ser, deixou de estar ligado ao meu, até que vinte e um anos decorridos, ainda na flor da vida, partiu para donde não há regresso."

De facto a 8-12-1932, Paço d'Arcos casou com Maria Cândida, que veio a falecer a 14 de Agosto de 1945.

Tudo devido a um pequenique na Taipa, a convite da família Lobato.

Em S. Lourenço

Após a morte do seu marido, ocorrida a 2 de Se-tembro de 1933, D. Laura Lobato entrou em cheio no apos-tolado. Em 1934, tomou a seu cuidado a limpeza e orna-mentação da Igreja de S. Lourenço; todos os sábados, lá es-tava ela, sua irmã Angelina e sua filha Marie a varrer a igre-ja, a mudar as flores dos altares, a esfregar os castiçais, etc.

Como o pároco (que era o autor destas linhas) só admitia flores naturais, foi D. Laura que desbastou o ma-tagal que era a cerca de S. Lourenço, cimentou a orla em volta da igreja, levantou o gradeamento, construiu a casa do sacristão, plantou as palmeiras que hoje se erguem es-guias acima da igreja e ajardinou aquilo tudo. Nesta obra foi coadjuvada pelo homem que em Macau mais amava as plantas e as flores e que transformou a Flora num jardim de sonho — o falecido Alfredo de Almeida, cuja paixão pela floricultura levou consigo para a sepultura.

D. Laura vibrava com tudo aquilo: era aquele o seu jardim, era aquela a sua igreja, era a sua obra.

Não parou aqui a sua actividade. Um dia, o Sr. D. José da Costa Nunes, então bispo de Macau, vai a casa da D. Laura e manifesta-lhe o desejo de organizar uma biblioteca católica.

Ela, com um entusiasmo verdadeiramente juve-nil, lança mãos à obra e a Biblioteca Católica é instala-da, a 19 de Setembro de 1937, no rés-do-chão da re-sidência paroquial da Sé, lugar central, onde tanta gente acorria para as solenidades da Sé. Todos os domingos lá estavam a servir o público algumas das senhoras mais distintas da terra, tendo à frente D. Laura: D. Joana Te-mudo, esposa do brigadeiro Temudo, gerente do Banco Nacional Ultramarino (cuja morte ainda hoje é um mis-tério), D. Amália Pacheco Jorge, D. Maria Luísa Garcia, e D. Vera Temudo, filha do mesmo brigadeiro.

D. José foi quem doou a primeira colecção de livros. Depois vieram outros benfeitores: o governador Tamagnini Barbosa, com $ 200,00; o Dr. Pedro Lobo com $ 500,00; Fu Tak Yam, com $ 100,00; uma récita rendeu $ 400,00, etc.

Ao partir para Goa, D. José deu mais mil patacas para livros. A biblioteca ocupava a casa do Cabido anexa à residência paroquial. Centenas de livros circulavam semanalmente pelas mãos do povo de Macau, sobretudo dos jovens: de Setembro de 1937 a Dezembro de 1939 foram requisitados 4.764 livros pelos leitores.

Como as nossas coisas pouco duram, essa biblio-teca fechou e os livros dispersaram-se, indo primeira-mente para a sede das Congregações de jovens, em S. Domingos, e depois para as bibliotecas do Seminário de S. José e do externato do mesmo seminário. E foi pena porque o local era central e ali acorriam muitos dos que, aos domingos, frequentavam as missas da Sé. Foi esta a grande obra e a menina dos olhos de D. Laura.

Outra obra a que D. Laura dedicou todas as suas energias foi a Acção Católica, quer como simples mem-bro da Liga Independente Católica Feminina, quer como presidente do mesmo organismo.

Macau em Fátima

Durante a II Guerra Mundial, Macau viu-se inun-dado de refugiados e ameaçados da invasão japonesa.

A Acção Católica Portuguesa, especialmente a Liga Independente Católica Feminina, de que era Presi-dente D. Laura Lobato, voltou-se para Nossa Senhora de Fátima a pedir o seu auxílio.

Nessa época a Acção Católica Chinesa alcançava resultados espectaculares: grupos de baptismos de cente-nas de adultos várias vezes ao ano. A Acção Católica Portuguesa, actuando no meio português, tinha um cam-po mais restrito: baptismos, catequeses, visitas aos doen-tes, campanhas da família e da Comunhão Pascal, dis-tribuição de vestuário aos pobres, etc.

Importa, no entanto, salientar uma iniciativa to-mada pela Acção Católica e que foi coroada de sucesso. Durante a Guerra no Pacífico, pensou-se em organizar uma peregrinação a Fátima e oferecer à Basílica de N. Sra do Rosário um lampadário de prata.

A Acção Católica Portuguesa e Chinesa fez uma subscrição que rendeu 30 contos e de que D. Laura Ma--ria Guimarães Lobato foi alma.

Como o lampadário custava 150 contos, o arqui-tecto da Basílica de Fátima sugeriu que Macau ofere-cesse uma capela, mas o dinheiro era insuficiente. Resol-veu-se então entregar os 30 contos ao Sr. Bispo de Leiria para a Capela da Agonia do Senhor.

A 13 de Maio de 1949, foi a Fátima o Cap. Eduardo José Teixeira Bastos de Abreu, hoje coronel, que se fez acompanhar do venerando octogenário Pe. Manuel Fernandes Ferreira, S. J., ex-director da "Reli-gião e Pátria" de Macau, a fim de fazer a oferta ao Sr. Bispo de Leiria, que agradeceu muito comovido.

O altar fez-se e ao lado uma inscrição diz-nos que é oferta dos católicos de Macau. Se em Macau a D. Laura Lobato foi a alma da subscrição, a justiça manda dizer que, se não fosse o coronel Abreu, essa iniciativa nunca se teria materializa-do. Foi ele que levou o dinheiro, que contactou o arqui-tecto da Basílica e o Sr. Bispo de Leiria e levou tudo a bom termo, quando já todos ou quase todos se haviam desinteressado da obra.

Piedade

Quando fui de licença graciosa a Portugal, em1963, passei quatro meses em Lisboa, onde se achava D. Laura, retida no leito, sofrendo horrivelmente da boca. Pois bem, D. Laura, não podendo ir à missa, queria rece-ber a Sagrada Comunhão em casa; e lá ia eu de táxi da Basílica da Estrela à Avenida António José de Almeida onde ela morava, levar-lhe N. Senhor; para isso ela paga-va 50 escudos do aluguel do táxi.

Tal era a sua piedade!

Foi assim em vida, foi assim na morte!

MADRE LEONOR DE S. FRANCISCO

Era espanhola, sendo ela a fundadora do Conven-to de Sta Clara de Macau.

Frei Jacinto da Madre de Deus, O. F. M., no seu Vergel de plantas e flores, informa:

"A madre Leonor, que mamou o leite da refor-mação do Convento de Toledo em companhia da madre Jerónima da Ascensão, fundou este convento na devoção da Conceição da Virgem Mãe de Deus, em altíssima po-breza, sem possessão alguma, em grande reformação, muita oração, rigorosa abstinência e ásperas disciplinas, não se admitindo servidoras na clausura; sendo as pró-prias senhoras cozinheiras, fazem os mais ofícios da humildade; matinas à meia noite, e duas horas e meia de oração cada dia, com outros exercícios de rigor conve-nientes a freiras capuchas da primeira regra, que nosso seráfico padre deu à mui aclarecida virgem Sta Clara, e sujeitas à província capucha, com igual reformação, qual é a nossa da Madre de Deus."

As negociações preparatórias para a vinda das clarissas para Macau começaram em 1626 e o instru-mento de que Deus se serviu foi António Fialho Ferreira, capitalista e proprietário de navios.

Sendo ele muito devoto de S. Francisco, tratou de obter as licenças necessárias.

A abadessa do Convento das Clarissas de Manila escreveu a frei António da Conceição, Provincial dos Franciscanos da Madre de Deus em Goa, pedindo licen-ça para esta fundação; ele concedeu-a logo, com grande contentamento do vice-rei D. Miguel de Noronha, conde de Linhares (1629-1635).

Fialho Ferreira foi a Manila em 1630 e obteve também licença do Provincial da província de S. Gregório de Manila, mas achou grandes oposições ao seu intento, segundo ele refere em carta para o Provincial de Goa, escrita em Macau a 18 de Novembro de 1635:

"Três vezes fui a Manila movido destes desejos, e sempre achei contradições; mas como me animaram as palavras da S. Madre Jerónima (fundadora do convento de Manila), não afrouxei, pospondo a torrente de difi-culdades, que de contínuo se me representavam, e dizen-do em breve, tudo remato com afirmar que os mesmos religiosos do seráfico Padre S. Francisco eram o maior estorvo, e impugnaram esta missão os anos passados, e neste os mesmos deram calor e favor."

Os superiores de Manila reuniram-se cinco vezes em definitório; nas quatro primeiras opuseram-se e só na quinta cederam.

Surgiu o governador que se opôs à saída das reli-giosas; mas, observa Ferreira, "a diligência tudo vence e a despesa facilita; e venci este obstáculo".

Arregimentaram-se então contra a saída das reli-giosas os regedores da cidade e os ouvidores da real audiência, mas Ferreira venceu também este último escolho.

"Em conclusão as embarquei na minha capitania, que com essa obrigação mas entregaram para as não fiar de outrem."

Em carta de 1 de Janeiro de 1634 para o Provincial de Goa, informava a superiora, M. Leonor:"Chegámos a esta cidade de Macau, Quinta-feira, quatro de Novembro do ano precedente, e fomos recebidas com grande demonstração de amor e vontade, que o povo tem à sagrada religião de nosso seráfico padre S. Francisco."

Começou-se a construir o Convento de Sta Clara para onde passaram a 30 de Abril de 1634, Domingo do Bom Pastor, em que houve missa celebrada por Fr. Francisco de Sena, O. P, governador do Bispado, pre-gando Fr. Jerónimo, O. F. M., que de Manila viera por confessor das freiras.

Uma das primeiras a entrar no convento foi Leogarda, filha de Fialho Ferreira, "tão ornada de for-mosura e gentileza, que não só levou após si os olhos detodos, mas os do divino Esposo".

A Madre Leonor faleceu em Macau em odor de santidade.

MADRE TERESA LUCIAN

Vocação

Um dia, no Colégio de Bassano, na Itália, uma Irmã Canossiana descrevia com vivas cores a miserável condição das criancinhas chinesas quando, de repente, o religioso silêncio em que estava mergulhado o auditório juvenil foi interrompido pelo característico rumor dum pranto desfeito.

No fundo da sala, encontrava-se uma jovem edu-canda que seguira, com o mais vivo interesse a dolorosa descrição. Logo se lhe inflamou o coração que alberga-va uma alma cândida e tão branca como os Alpes de Trento; desejaria correr imediatamente, voar mesmo, através do espaço que se interpunha entre a sua Itália e a China, para socorrer e salvar aquelas infelizes crianci-nhas... Ser-lhe-ia possível realizar esse ideal? Poderia abandonar a mãe e o pai, os irmãos, a terra natal? Senti-mentos e afectos jorram em borbotão, agitam-se e emba-tem-se... Sem saber que fazer, nesse momento, chora convulsivamente.

Quem era essa jovem ardente de alma tão pro-fundamente sensível e cristã?

Nem mais nem menos do que Teresa Lucian, nascida em Primeiro, Trento, a 6 de Setembro de 1845, e que, tendo sido a primeira Superiora regular de Macau, aqui viveu 33 anos e aqui faleceu a 27 de Agosto de 1909.

Na Missão

Passados 10 anos, essa jovem, já Canossiana, en-controu-se num ambiente de Missão, rodeada de nu-merosas criancinhas. Realizara-se o seu sonho doirado: sente-se a mais feliz das criaturas. É-lhe indiferente que, em vez duma cátedra, lhe hajam oferecido uma cadeira rústica: vê-se rodeada das suas chinesinhas. Por elas batia-lhe o coração, já quando se encontrava, lá muito longe, na Itália distante, que lhe servira de berço.

Chegou a Hong Kong, e a obediência reteve-a ali durante sete anos. Estudou línguas ao mesmo tempo que se ocupava do externato e do orfanotrófio das meninas portuguesas.

Em 1876, chega a Macau, e três anos depois, em 1879, é designada Superiora da Comunidade. Quanto mais se escondia a si mesma e a toda a sua actividade, tanto mais Deus a exaltava qual astro de bênção sobre Macau e suas redondezas, e estendia a sua actividade sobre as plagas da Oceania e da Malásia.

Em 1895, a terrível cólera-morbo atacou feroz-mente a comunidade das órfãs portuguesas e chinesas e dispersou-a como medida profilática. Macau admirou então a sua tranquila resignação e o heroísmo da sua ver-dadeira caridade, perante os desígnios de Deus.

O pessoal ficara reduzido, e a obediência impu-nha-lhe a reabertura do Colégio, dum Catecumenato, dum asilo para jovens em perigo e da Santa Infância para as criancinhas abandonadas. Faltavam-lhe os meios. Mas, sempre confiante no Céu, não encontra dificuldades. Obedece e caminha...

Certa noite, a altas horas, um grito a desperta:"Vem depressa, Madre; ela está a morrer." Logo com-preendeu e lá voou. Jazia, na via pública, nas vizi-nhanças do Hospital chinês, uma pobre velhinha, gentia ainda. Um cancro horrendo transformava esse corpo numa horripilante e fétida chaga. A boa Madre abraça-a, cola-se a ela e assim, apertada a si, condu-la a casa; ins-trui-a e... ela recebe conscientemente o Santo Baptismo. O prémio dessa generosidade não se fez esperar.

Durante quinze anos, a doença fê-la suportar lon-gas dores, em consequência desse esforço superior às suas forças. Pouco depois a morte veio recolher tanta ge-nerosidade e tamanha abnegação.

Antes, porém, que o Céu a transplantasse, não obstante a saúde precária, deixou ainda um rasto de luz.

A perseguição dos boxers lança uma nuvem de morte sobre toda a China. Uma família de Cantão: mãe, quatro filhos e uma filha — o pai ficara naquela cidade— fugiram à bárbara perseguição e foram bater à porta de Madre Teresinha, pedindo refúgio. Que fazer? Negar hospitalidade aos que sofrem pela Fé? Não o concebe a Superiora das Canossianas de Macau e logo manda cons-truir uma barraca no pátio da Casa de Beneficência, on-de hospeda os infelizes foragidos.

Dos quatros rapazes, dois ordenaram-se: os Pa-dres Filipe Lau, que morreu em Xangai em 1926, e o Cónego Jacob Lau que, desde a sua ordenação, foi, quase ininterruptamente, Capelão da Casa de Benefe-ciência até à morte, ocorrida em 26 de Maio de 1951. Este foi sempre grato para com a sua devotada benfeito-ra, de quem em várias circusntâncias teceu os mais ras-gados elogios.

Certo dia, a M. Teresinha dirigia-se a Coloane. O transbordo é perigoso e, não obstante os cuidados doutra Religiosa, mais jovem e desembaraçada, ela cai ao mar e... desaparece. Momento de angústia. Pouco depois, volta à flor da água e alguns chineses apanham-na pelo amplo hábito e conseguem salvá-la. Dirigindo-se-lhe um pagão, companheiro de viagem, exclamou: "Ah, deves ser qualquer coisa de grande; deves ter feito muito bem para te salvares de tão grande perigo."

Tantos merecimentos, nem aos olhos do mundo podiam ficar ocultos. Por isso, a 30 de Julho de 1897, por ordem de S. Majestade o Rei de Portugal, foi con-decorada com a medalha de prata, ofertada em reco-nhecimento dos grandes serviços que, ajudada pelas suas irmãs, prestara, sobretudo por ocasião das grandes epi-demias que assolaram esta cidade.

O seu zelo não era apenas limitado a esta cidade. Como Superiora da Casa de Beneficiência, o viveiro donde deveriam partir obreiras evangélicas para toda esta Diocese, enviou Irmãs suas que abriram três Casas em Timor, uma em Singapura e outra em Macau, e três na ilha de Ainão, sem descurar as seis Comunidades que mantinha em Macau e nos seus arredores.

Durante o largo período em que foi Superiora das Canossianas de Macau, foram internadas em números redondos, aquém da realidade:

a) — Portuguesas: meninas 600

velhas 90

meninos 45

b)—Chinesas: criancinhas 16000

meninas 800

velhas 600

A juntar a esta tão numerosa lista de internadas, que só por si nos diz da caridade do peito materno e cristão da Madre Teresinha, temos mais de 15 000 bap-tismos que, por suas próprias mãos, administrou, regenerando para o Céu outros tantos anjinhos que for-marão certamente, na Pátria bem-aventurada, esplen-dorosa coroa de glória, cingindo a fronte de tão insigne apostolado da Madre Lucian.

Apesar de tanto querer a Macau, sempre desejou morrer muito longe para evitar honras fúnebres que foram, de facto, um triunfo consagrador das suas excel-sas virtudes. Como estas obras boas serviam melhor a glória de Deus, o Senhor quis honrar-se na sua humilde serva e ela faleceu em Macau. O seu funeral foi, na ver-dade, a glorificação daquela que tão bem soube dedicar-se ao bem do próximo e à maior glória de Deus. Nada de ilustre, do melhor que havia em Macau, faltou a essa der-radeira prova do muito que era estimada e da grande lacuna que deixava em aberto.

O apostolado da Madre Teresa Lucian consagra o Instituto das Filhas da Caridade Canossianas, e Macau honra-se e honrar-se-á de a ter possuído.

A Câmara honrou a sua memória dando o seu nome à "Rua da Madre Terezinha" a 20 de Outubro de 1934.

D. MARIA ANA ACCIAIOLI TAMAGNINI BARBOSA

O Marido

Propondo-nos escrever sobre a saudosa e distinta poetisa que foi D. Maria Ana Acciaioli Tamagnini Bar-bosa, lógico nos parece que tentemos primeiro coligir alguns dados biográficos sobre seu marido, razão essen-cial da forte ligação do nome daquela encantadora se-nhora a Macau, pois que o governador Artur Tamagnini Barbosa, para além do muito que a província lhe ficou devendo, veio a falecer, em pleno exercício de funções, ao fim da sua terceira comissão de serviço, em Macau. Sendo o único governador não militar a morrer no de-sempenho do seu cargo, nesta nossa província do Extre-mo Oriente.

Assim, sabemos que Artur Tamagnini de Sousa Barbosa nasceu em Lisboa, a 31 de Agosto de 1881. Fi-lho do conselheiro Dr. Artur Tamagnini Barbosa e de D. Fátima Carolina Correia de Sousa. Vindo com seus pais e irmãos para Macau no transporte África, chegou aqui a 21 de Janeiro de 1882. Frequentou primeiro o Seminário e, mais tarde, o Liceu, regressando, aos 17 anos, a Portu-gal, para iniciação dos seus estudos universitários.

Começou a sua carreira pública como funcio-nário do então Ministério das Colónias e, já secretario de seu pai, acompanhou-o numa inspecção que o Conse-lheiro Tamagnini Barbosa efectuou às províncias de África. Exerceu, depois, cargos nos serviços da Direc-ção-Geral da Fazenda das Colónias, na do Pessoal desse Ministério, nos da Índia, Macau e Timor e dos Negócios Políticos, ascendendo a Director-Geral da Administra-ção Política e Civil, cargo esse em que estava substituí-do interinamente, em virtude da sua nomeação para o Governo de Macau, quando faleceu. Foi esta, como já dissemos, a última das suas três comissões de serviço como governador desta província, sendo a 1a de Junho de 1918 a Julho de 1919; a 2a de 8 de Dezembro de 1926 até 1929, interrompida para ir sobraçar o cargo de Di-rector-Geral do Ministério das Colónias, e a 3a de 12-12-1936, no exercício da qual adoeceu e veio extin-guir-se, apenas com 59 anos, em 10-7-1940.

Do seu primeiro matrimónio teve uma filha, Ma-ria Amália, que o acompanhou a Macau, na sua 2a co-missão, e onde conheceu o que viria a ser seu marido, o oficial de marinha Joaquim Maria Pereira da Fonseca, recentemente falecido no alto posto de Almirante. Maria Amália da Fonseca é hoje escritora e romancista muito apreciada.

Por morte de sua primeira mulher, Artur Tamag-nini Barbosa casou, em segundas núpcias, com D. Ma-ria Ana de Magalhães Colaço Acciaioli, filha do juiz Dr. Manuel de Barros da Fonseca Acciaioli Coutinho, natu- ral de Portalegre, e de D. Lia de Magalhães Colaço, na-tural de Lisboa.

Do segundo matrimónio nasceram 5 filhos: Artur Manuel, Mariano Alberto, Miguel Ângelo, Marco António e, por fim, Alberto Manuel; este último nasceu de um parto que causou o tão prematuro e trágico faleci-mento desta gentil e extremosa mãe, em 5 de Julho de 1933, a poucos dias apenas dos seus 33 anos de idade.

Flor de Lótus — Maria Ana Acciaioli Tamagnini. In TAMAGNINI, Maria Anna Acciaioli, Lin tchi fá: flor de lótus, Macau, ICM, 1991, p. [12].

A Poetisa

Poetisa por muitos desconhecida, mas de real valor, Maria Ana foi uma senhora duma fina sensibili-dade artística, dotada de natural intuição e servida por uma emocionalidade que em tudo a deixava encontrar inspiração para a sua imaginação criadora. Como ela própria escreveu: "A arte não será flor tão rara que não a possamos encontrar, no nosso caminho, e até dentro de nós mesmos, se Deus nos houver concedido o sentido de a descobrir. Mas como flor que é, torna-se, também, necessário consagrar-lhe cuidados, cultiva-la!"

E era o que ela fazia. Chegada a Macau, as suas qualidades artísticas grangearam-lhe logo muito prestí-gio e simpatia, tanto no meio europeu como na comu-nidade chinesa, que ela tanto procurava e acarinhava. De personalidade extremamente afável, irradiava natural bondade e o seu fino trato fazia com que todos se sentis-sem bem no seu convívio.

Dotada de valiosa cultura humanística e de escla-recida inteligência, diligenciava por suavizar, com esses seus predicados, não só as mais ingratas tarefas do difí-cil cargo da responsabilidade de seu marido, dando encantamento ao ambiente social que rodeava o Palácio do Governo, mas também fazendo sentir a sua discreta caridade junto dos mais modestos e infelizes necessita-dos. Por isso, a cidade atribuiu o seu nome ao Asilo de Mendicidade, que já foi destruído, razão que nos leva agora a pedir que noutra instituição similar fique evoca-do o nome de tão ilustre senhora, que patrocinou e pro-moveu tantas festas de caridade, para as quais compu-nha poesias e dava o melhor do seu sempre bondoso cora-ção. Nessas cristãs tarefas eram seus auxiliares o grupo categorizado dos Artistas Amadores de Teatro e Música, que ela chamava ao Palacete de Sta Sancha, para assistir aos ensaios e encorajar os trabalhos na sua incansável missão de protectora, também, das Artes e das Letras. A obra de Sta Infância muito lhe ficou devendo e foi ainda ela própria que recitou uma inspirada poesia, de sua au-toria, no teatro D. Pedro V, peça literária que transcreve-mos no fim deste capítulo.

Distribuiu D. Maria Ana a sua colaboração por muitos jornais e revistas, tanto em prosa como em verso, e, de tão curta vida, nos fica a mágoa, ainda, do imenso que se poderia esperar do seu talento artístico e da sua requintada inspiração poética.

Quando seu marido veio, pela terceira vez, go-vernar Macau, já depois de ter ocorrido o falecimento de D. Maria Ana, era por demais evidente a saudade que essa senhora deixara na sua vida familiar, ao mesmo tempo que a sua falta se fazia sentir, e muito, na vida oficial.

Sem a dedicada e bondosa ajuda de sua mulher, o Governador Tamagnini Barbosa bem cedo se extin-guiria também, pelas canseiras e vigílias das horas difí-ceis que Macau teve de enfrentar, naqueles tempos críti-cos em que a História da Humanidade se decidia na Eu-ropa como em todo o Oriente.

Lin tchi fá —flor de Lótus: poesias do Extremo Oriente, por Maria Ana Acciaioli Tamagnini, Lisboa, 1925

O exemplar deste livro de versos que possuímos foi-nos oferecido, com amável dedicatória, pelo marido da saudosa poetisa. Em cada página e em cada pensa-mento a alma feminina de Maria Ana vibra, exaltando o misterioso Oriente, que ela canta, nos lagos onde cres-cem lótus e a lua se reflecte, nos pavilhões do chá, da música e da poesia, essa melancolia dos poentes alaran-jados, na resignação do seu fatalismo búdico, nos sonhos doirados dos fumadores de ópio, no "tam-tam" monóto-no dos gongos, nos movimentos rítmicos e coleantes do dragão, enfim, no simbolismo dos seus jades, dos seus bailados, dos seus jardins e da sua arte.

Eis como ela descreve o ambiente duma casa de ópio:

"Nos kakimonos de papel pintado,

Os dragões saltam, riem as carrancas,

E entre as nuvens do fundo acobreado

Os deuses montam em cegonhas brancas.

Sobre as lacas polidas, luzidias,

Há figuras, marfim de alto relevo,

Finas silhuetas de mulheres esguias,

Sorrindo aos deuses n 'um profundo enlevo.

Na sua luz mortiça, vão ardendo

As lamparinas clássicas, chinesas,

Nos cachimbos o ópio vai fervendo

Ao contacto das lâmpadas, acesas."

Quem viu nas ruas de Macau a procissão do dra-gão, dessa longa serpente humana com a sua enorme bo-carra que pretende devorar uma bola, símbolo da Lua, não pode deixar de admirar o realismo destes versos:

Ao Som dos Gongos

"Há eclipse de lua, pelos sábios

Previsto para o fim d'esta semana,

Sinto voltar o meu sorriso aos lábios,

Compreendo agora: e a serpente humana.

Coberta de pano avermelhado,

Que se coleia e alonga pela rua.

A simular esse dragão irado,

Que tenta à força devorar a lua;

Enquanto estas pequenina bola,

Entregue a um china agil, saltitante,

Nas suas mãos esguias, brilha, rola,

Sem que a consiga esse dragão gigante.

E, ai de nos, se esse monstro do inferno

A conseguisse um dia devorar...

O eclipse seria eterno, eterno,

Nunca mais uma noite de luar!"

Termina o livro com chave de oiro, evocando a Lin tchifá dos lagos, a flor de Lótus:

"Lótus, flores da noite, flores sagradas

De folhas verdes, longas espalmadas.

Flores brancas e rosadas, flores de lago,

Que a lua beija e despe num afago.

À tona de água, pelas noites pálidas,

Lembrais-me virgens sonhadoras, pálidas,

Envoltas no véu branco de noivado."

O poeta Herculano Levy apreciou, no "Diário de Lisboa" de 13-7-1925, este livro e a sua autora: "Esta senhora, de alma lusitana, dir-se-ia, só por ter passado em terras de mandarins, que descende, pela subtil intoxicação do Oriente no seu espírito e pelo requinte da sua bizarria e luxuriante imaginação, duma das Cem Famí- lias que honraram e foram toda a aristocracia do Celeste Império!" E, mais adiante: "Mais subjectivo que o Can-cioneiro chinês, traduzido por Feijó, se não tem a opu-lência dos versos deste, possui, entretanto, muito mais, a poesia própria, a singularidade, o relevo, o carácter da China." No jornal "O Século", de 24-6-1925, escreveu o seu director Henrique Trindade Coelho: "No livro Flor de Lótus, a autora atinge frequentemente uma perfeição pictural tão sintética que o cenário nos lembra aqueles quadrozinhos de laca, com árvores anãs, pontes curvas, pagodes de tectos sucessivos, eriçados de bicos com campainhas de porcelana, em que vivem, incrustadas em marfim, figurinhas de geishas gentis, de chapéus de sol de papel, mandarins risonhos, que se abanam indolente-mente, vendedores ambulantes, de testas cortadas de ru-gas e curvados ao peso da mercadoria que pende dos extremos de um pau apoiado no dorso. Outras vezes ain-da, como nas 'Casas de ópio', o pincel finíssimo, mo-lhado em nankin, traça rapidamente na alvura do papel os dragões que saltam, as carrancas que riem, os deuses que montam em cegonhas brancas. E tudo aquilo é tão gracioso, tão infantil, tão espontâneo, tão sorridente!" No jornal "O Dia", de 10-6-1925, dirigido por J. A. Mo-reira de Almeida, podia ler-se: "Trata-se de uma ver-dadeira interpretação do Oriente por uma ocidental." E isto em oposição àqueles a quem poderia parecer um li-vro de mera poesia descritiva."

Amândio César, na revista "Permanência", Lis-boa, 1970, escreveu:

"No tempo afigura-se-me perfeitamente válida a presença de Maria Ana Acciaioli Tamagnini na panorâ-mica lírica da língua portuguesa, da língua lusíada. Ela foi uma parnasiana, sim, justificadamente e consciente par-nasiana. Até por isso o seu caso literário tem interesse. Por isso e, ainda, por ser a primeira escritora portuguesa que publicou um livro de poemas de temática extremo-orien-tal, tendo vivido, sonhado e sofrido no Extremo Oriente, em Macau. E isso é mais um valor a ter em consideração quando se julgue ou quando, apenas, se emita opinião."

Reconhecemos agora apenas ter conseguido dei-xar aqui uma débil imagem do valioso legado deixado pela apaixonada artista que foi a autora de Flor de Lótus. Temos, porém, de terminar e vamos fazê-lo com a poe-sia, já referida, da Sta Infância, a qual se liga ainda maisuma tocante história. Recitada inicialmente, como disse-mos, pela sua autora, em 1928, numa festa em benefício do Asilo da Sta Infância no Teatro D. Pedro V foi, dez anos mais tarde (já falecida D. Maria Ana), trazida de novo a evocação numa récita.

A 20 de Junho de 1937, realizou-se uma Acade-mia no pátio da Casa de Beneficência para celebrar a chegada de Artur Tamagnini Barbosa, que pela terceira vez vinha governar Macau.

Presentes: o Prelado, o Presidente do Senado, o Comissário da Polícia e a elite de Macau.

Hinos, músicas, discursos, saudações, cantos, poesias em português, chinês, inglês, francês, italiano, tudo aplaudido pela assistência.

Deram-se então dois episódios comoventes.

O primeiro, quando a pequena, que recitava com muita graça a poesia L'enfant et l'oiseau, devia abrir a gaiola para soltar o passarinho, não o conseguiu e estava quase a desfazer-se em lágrimas; o Sr. D. José da Costa Nunes chamou-a para junto de si e libertou o passarinho, provocando a hilariedade.

O segundo foi profundamente comovedor e pou-cos olhos ficaram enxutos.

O Governador Tamagnini Barbosa perdera a sua adorada esposa Maria Ana, ficando privado do seu cari-nho e amparo.

A poesia sobre a Sta Infância foi recitada nesta Academia em honra do Governador. A menina, que a recitou, tinha os seus problemas de família. Via-se afas-tada do lar paterno, pois seu pai, mais desgraçado do que culpado, ausentara-se devido ao egoísmo e vingança duma esposa infiel.

A pequena vibrou de comoção ao recitar a poesia e, ao ver as lágrimas assomarem aos olhos do Gover-nador, não se pode conter e desatou a chorar. Tamagnini Barbosa, a chorar também, levantou-se do seu lugar, foi abraçar a pequena e levá-la ao seu lugar. Fez-se um gran-de silêncio e poucos puderam conter as lágrimas.

Eis essa comovedora poesia:

Santa Infância

"Quebra o silêncio da noite

A sineta do convento:

Dlão... Dlão!

Como é triste o seu lamento!

Ouvem-se tímidos passos

E o ranger soturno e lento

De um portão.

Com um filhinho nos braços

Implora a voz da desgraça...

Responde-lhe uma oração:

'Ave Maria, cheia de Graças.'

Em míseros farrapos embrulhada

A criança, a arder em febre, debilmente,

Põe-se a chorar.

Pálida e calma, a dor já costumada,

A Irmã porteira embala-a docemente,

Para a calar.

Range de novo a porta do convento

E a mãe surge, a tremer, na noite escura,

Hirta de espanto...

Tem medo de si mesma, o sofrimento

Embruteceu-lhe o olhar; a desventura

Secou-lhe o pranto.

Corpo sem alma! Mulher inconsciente!

Que razão poderosa te levou

A abandonar

O filho pequenino e inocente

Que em teu seio dorido se gerou

Para te amar?

E o meu olhar fitou na noite escura

Uns olhos quietos, vagos, sem expressão

Olhar d'alguém

Que deixou de sentir, porque a amargura

Lhe esmagara no peito o coração!

Ó pobre Mãe,

Não olhes para mim tão desvairada!

Eu advinho a dor que te consome

E a razão forte...

Eu vejo-a na tua face macerada:

Abandonaste-o para evitar-lhe a fome,

Talvez, a Morte.

Um suspiro de mágoa ouve-se ainda,

E ela lá vai gemendo o seu tormento

Triste destino.

Nos Céus surgiu a lua branca e linda

A iluminar a rua; e no Convento

O pequenino,

Deitado num bercito de madeira,

A custo abre os olhitos, magoados,

Fitando a luz.

Sorri-lhe ternamente a Enfermeira

E enchendo-o de carinhos e cuidados

Reza a Jesus.

E quase todas as noites

Se ouve a sineta tocar:

Dlão... Dlão...

E há corações a velar

No velho e pobre convento.

Que abnegação!

São as Mães do Sentimento,

Que, pelo Divino Amor,

Dão fé a quem a não tem

E aconchego aos pobrezinhos,

Aos pequeninos sem mãe!"

MARIA ANA JOSEFA PEREIRA MARQUES

Nasceu em Macau a 21 de Abril de 1825 e aqui faleceu a 23 de Agosto de 1901. Era filha única de ter-ceiro matrimónio do Conselheiro Manuel Pereira e de Antónia Vicência Cortela Pereira.

O Conselheiro Manuel Pereira nasceu em Por-tugal, sendo filho de Manuel Pereira e de Maria Gui-marães. Tendo vindo para Macau, casou três vezes: 1) com Ana Pereira Viana, filha de Nicolau Pires Viana e de Mariana Pereira da Cunha; 2) com Esmeralda Laurência Baptista Cortela, nasceu a 3-8-1790, faleceu a 31-3-1807, filha de Inácio Baptista Cortela e de Mariana da Silva Faria, neta paterna de Lourenço Baptista Cortela e de Esmeralda Soares, e materna de José da Silva Faria e de Joana de Amaral; 3) com sua cunhada, Antónia Vicência Baptista Cortela, nasceu a 28-3-1789, faleceu a 11 -11 -1872, irmã de Esmeralda.

Deste terceiro matrimónio teve Maria Ana Josefa, que casou a 7-8-1838, com seu primo Lourenço Caetano Marques, nasceu a 7-8-1811, faleceu a 15-12-1902, filho do Comendador Domingos Pio Marques, nasceu a 6-5- 1783, em Macau, e de Inácia Francisca Baptista Cortela, nasceu a 13-6-1784, neta paterna de Domingos Marques, falecido a 12-7-1787, e de Maria Francisca dos Anjos Ribeiro Guimarães, e materna de Inácio Baptista Cortela e de Mariana da Silva Faria. Inácio Baptista tem em Macau uma rua e uma travessa com o seu nome que começa na Rua de S. Lourenço. Lourenço Marques tam-bém tem um pátio com o seu nome, o qual começa na Travessa do Cais e termina na Rua da Prainha.

Lourenço Marques teve de Maria Ana Josefa Pereira 10 filhos que faleceram todos solteiros:

1 — Élia Pulquéria, nasceu a 7-7-1839, faleceu a 22-8-1896.

2 — Ernesto José, baptizado a 7-11-1840.

3 — Leonilda, nasceu a 4-1-1842.

4 — Maria das Dores, nasceu a 12-1-1845.

5 — Francisco de Sales, nasceu a 3-11-1850.

6 — Lourenço Maria, nasceu a 27-9-1852, fale-ceu a 5-3-1911, médico.

7 — Francisco Maria, nasceu a 12-10-1853, fale-ceu a 12-9-1914.

8 —Teresa de Jesus, nasceu a 19-1-1855.

9 — António Maria, nasceu a 1-5-1859, faleceu a 21-7-1904.

10 —Maria Antónia, nasceu a 10-5-1863.

Maria Ana Josefa Pereira Marques, filha de Ma-nuel Pereira e de Mariana Marques e sobrinha do Co-mendador Domingos Pio Marques, casou com o comenda-dor Lourenço Caetano Marques, filho de Domingos Pio Marques. Teve 5 filhos e 5 filhas. Todos morreram solteiros!

A filha mais velha, Marica, morreu jovem; a se-gunda, Élia Pulquéria, viveu até largos anos, e a terceira aos trinta e mais anos de idade. O mais velho dos filhos, o Dr. Lourenço Pereira Marques (médico-cirurgião), e o mais jovem, António Pereira Marques, foram alunos dos RR. PP. Jesuítas em Campolide (Portugal). Ambos muito inteligentes e eruditos. O Dr. Marques estudou em Du-blim (Irlanda) e voltou médico-cirurgião trabalhando com o Governo inglês em Hong Kong e no Hospital St. Mary. O António voltou a Macau depois de seus estudos e viveu com os pais. Ambos prestaram bons serviços à Humani-dade, um como médico, o outro como professor particular.

O irmão-cadete, Francisco Pereira Marques, ficou sempre em Macau e fez-se sinólogo, mas trabalhou poucotempo ao serviço do Governo, residindo também com os pais. O Comendador Lourenço C. Marques foi presidente da Câmara Municipal (Senado), presidente da Confraria de N. S. dos Passos, presidente da Comissão do Colégio de Santa Rosa de Lima, e viveu até à idade de 92 anos, trabalhando sempre para o bem público. Era bom católi-co e muito caritativo. Era muito respeitado e estimado por todos que o conheceram, que afluíam a sua casa; eram sempre bem acolhidos até à sua mesa que estava aberta a todos sem excepção de ricos ou de pobres. Todos o con-sideravam e lhe chamavam tio Lourenço e até os chineses lhe davam o nome de Paka-pung,"o homem dos pom-bos", porque residia na casa da Gruta de Camões, que tinha a forma dum pombal. Era bem frequentada pelos estrangeiros que visitavam a Gruta de que ele era então proprietário e onde habitou até que a propriedade foi ven-dida ao Governo Português por um preço mui módico.

Lourenço Marques falava correntemente portu-guês, francês e inglês e interessava-se muitíssimo pela His-tória de Macau, e foi instrutor de Montalto de Jesus, rela-tando-lhe todos os acontecimentos do passado e de tudo que se passou durante os seus anos de administração civil.

Mariquita, sua mulher, foi uma senhora distinta e muito bem educada.

Aos 13 anos de idade, estudou português com o professor José Baptista de Miranda e Lima e o inglês com uma professora inglesa.

Falava bem o francês, alemão, italiano, assim como escrevia correctamente. Conhecia a música e era muito aplicada à literatura.

Foi bem formada nos estudos da religião e foi sempre muito boa católica.

Foi presidente das zeladoras do Apostolado da Oração erecto na Igreja de Santo António, de que a famí-lia Marques era paroquiana.

Foi grande benfeitora toda a sua vida, ajudando com as suas esmolas todas as Obras Pias.

Foi grande admiradora da Obra Salesiana, funda-da por D. Bosco, depois de ter lido com grande atenção e prazer o primeiro livro de vida deste grande santo e apóstolo. O livro foi-lhe passado pela Rev. Madre Teresa Lucian, Superiora da Casa de Beneficência, a quem Ma-riquita ajudava por todos os meios possíveis com esmo-las e pedidos ao estrangeiro por cartas suas, assim como ao Governo de Macau para sustentar o Asilo da Sta In-fância. Também ajudou a Obra Salesiana mandando esmolas a Turim e correspondia-se com o reitor-mor de então. Mariquita também ajudou muitíssimo os pobres de Macau, auxiliando as famílias e protegendo as viúvas e órfãos. Encarregava-se da Igreja de St° António e for-necia os ornamentos necessários ao culto.

Frequentava diariamente a igreja e assistia às fes-tas e celebrações das outras igrejas. Era conhecida como a primeira benfeitora de Macau. Os religiosos que vi-nham a Macau, de diferentes nações, encontravam nela uma pessoa amiga e dedicada. Foi uma verdadeira mis-sionária do seu tempo. Em casa foi um exemplo de gran-de piedade. Sempre digna no seu trato e humilde no fa-lar, ganhava os corações de todos que acolhia com bene-volência e paciência. Era muito compassiva para com os pobrezinhos e todos os que sofriam de qualquer maneira. Faleceu em 18 de Agosto de 1900 com a idade de 74 anos. O seu enterro foi um verdadeiro triunfo; parecia uma procissão, e foi um grande concurso do povo acom-panhando o féretro.

Conheceu bem o Pe. Rôndina, S. J., assim como o Pe. J. J. d'Afonseca Matos, S. J., ambos chegados a Macau em 1862. O último foi o director do "Mensageiro do Coração de Jesus", em Braga.

Mariquita correspondia-se com o Pe. Rôndina quando ele regressou a Itália, residindo na Cività Vecchia; sentiu imenso a perda dos bons padres jesuítas que fizeram tanto bem aos filhos de Macau.

Nos seus últimos anos, teve como confessor o R. Pe. João Gonçalves, S. J., que era reitor do Seminário de S. José. Conheceu todos os padres jesuítas que estavam cá naquele tempo, sobretudo o Pe. Sebastião Aparício da Silva e o Pe. António M. Alves, que foi o director das zeladoras do Apostolado da Oração.

D. MARIA DE GUADALUPE TOPETE ULHOA GARFIM

Viveu em Macau em fins do Século XVIII e era de tão rara beleza e de tão ilustre linhagem que Bocage,

que aqui chegou em 1789, lhe dedicou uma longa poe-sia, de que reproduzimos os seguintes versos:

"Aqui meus hinos a verdade entoa,

Aqui sobre mil flores

Aos atractivos da preclara Ulhoa

Forjo eternos louvores

Óptimo fruto de alterosa planta,

Vénus só na beleza,

Semi-deusa gentil, que enches de tanta

Vanglória a Natureza,

Menos brilhantes do que as graças tuas

Dançam entre os Amores

Lá nos cíprios jardins as graças nuas,

Calcando as tenras flores.

Não era, ó Ninfa, como tu formosa

A bela desgraçada

Que o lácteo seio penetrou saudosa

Com a troiana espada.

Se de frígia te visse o pastor loiro,

Que às divinas porfias

Pôs termo, ou teu seria o pomo de oiro,

Ou seu prémio serias.

De teus esclarecidos ascendentes

A veneranda história

Impressa vive, em Lâminas pendentes

Das aras na memória.

O fresco Tejo, o fresco Mançanares,

Lá noutra idade os viram

Obrar altas proezas singulares,

Epor eles suspiram.

Que direi da tua alma! Inda é mais bela

Que teu belo semblante;

Angélicas virtudes formam dela

O retrato brilhante.

Mas teus celestes dons serão manchados

Com meu tosco elogio;

Com versos, que talvez sejam lançados

No sonolento rio!

Novo Atlante, o sidério firmamento

Quero manter nos ombros,

Se da tua alma debuxar intento

As graças e os assombros!"

MARIA DE MOURA VASCONCELOS

Nasceu em 1699, sendo filha do comerciante Francisco de Moura e Bastos e de sua esposa, Isabel de Vasconcelos, neta de Manuel Rombo de Carvalho e de Maria Vasconcelos.

Francisco Bastos faleceu ai por 1702, deixando esta filha com 5 anos; sua esposa devia ter falecido pou-co depois, pois sendo a orfã confiada à sua avó Maria de Moura.

Manuel da Silva Mendes, num trabalho histórico sobre Macau antigo, ao falar de Maria de Moura, mistu-ra alhos com bugalhos e tece um enredo romanesco, que é pura fantasia. Escreve ele: "As claristas, pregadoras mudas, ensinavam meninas; e todas as meninas macaenses ricas iam lá beber o leite da sabedoria. Letras maiores — Latim, Retórica, o mais difícil do 'trivium' (excepto a Música) — eram franciscanos dali ao pé que ministravam.

As crónicas do convento não deixaram registados os nomes das meninas ali abeberadas: apesar disso, uma que deu grande conta de si e que falar, os livros men-cionam. Já disse o nome dela: Maria de Moura Vascon-celos. Era esta menina filha de um tal Vicente de Moura e Vasconcelos, homem que enriquecera no trato. Da mãe o nome ignora-se, sabendo-se apenas que, tendo-a cria-do a seus peitos com cuidados extremosos, a deixou orfã em ternos anos ao cuidado de sua sogra, senhora virtuo-sa e de avançada idade.

De nada se tendo alevantado este Vicente, chegou a ser pelo seu trabalho honrado, um dos ricaços de Ma-cau e a ocupar cargos de proeminência, como então era da regra e jus que ocupassem as pessoas pecuniosas, e hoje também é.

Doía a Vicente, porém, seu plebeísmo, principal-mente quando se via entre fidalgos que entroncavam suas linhagens uns em Carlos Magno, outros em ilustres patrícios romanos.

Não ignorava Moura quão bastardamente eram tais linhas emendadas: assim mesmo, porém, as inveja-va. O que frei Pedro de Jesus Manteles observando, um dia, em tom grave lhe afirmou:

'Descender de um santo, em minha estimação, e na consideração de toda a gente, muito mais é do que ser tataraneto de Carlos Martel ou de romano patrício; e o senhor Vicente de Moura é...

— O quê? Sou o quê?

— Também tataraneto paterno (respondeu frei Pedro) mas... de um santo'." (Colectânea de Artigos de Manuel da Silva Mendes, vol. IV, p. 97-8).

Ora aqui está em que dão os jornalistas quando se metem a fazer historia: — simples trapaceiros.

Não há sequer uma sombra de verdade nesta página de Silva Mendes.

As clarissas (e não claristas) pertenciam a uma Ordem contemplativa de clausura rigorosa, que nem o rosto podiam mostrar a ninguém.

Assim, nunca tiveram escola nem podiam ter. Durante três séculos, não houve em Macau uma única escola de meninas, pois estas, em geral, não aprendiam a ler.

Também nunca houve "trivium" nem "quatrivi-um" no Convento de S. Francisco, mas apenas no Colégio da Madre de Deus dos Jesuítas.

As crónicas das clarissas não chegaram até nós; mas, mesmo que chegassem, não registariam o nome de estudante alguma, visto estas não existirem.

Portanto, a menina Maria de Moura não foi nem podia ter sido educada lá.

O pai desta menina não era Vicente de Moura e Vasconcelos, mas sim Vicente de Moura e Bastos, tio de Maria de Moura.

Nunca existiu no Convento de S. Francisco ne-nhum Pedro de Jesus Manteles.

Tudo que o autor diz sobre Vicente de Moura é pura fantasia sem fundamento algum de realidade.

Este trecho de Silva Mendes é a continuação de vários capítulos sobre a historia de Macau. É por isso que queremos prevenir o leitor de que não há nesta pági-na uma única parcela de verdade.

Drama de Amor

Em 1706, chegou a Macau, na fragata Nossa Senhora das Neves, o capitão de infantaria António de Albuquerque Coelho, e logo se apaixonou por Maria de Moura, criança de 7 anos de idade, que era muito rica. Mas esta tinha outro pretendente, o fidalgo D. Henrique de Noronha, que estava determinado a desfazer-se do seu rival.

Coelho regressou a Goa na mesma fragata e dali apertou o cerco à pequena com cartas aos jesuítas e ao tutor da órfã. Voltou a Macau em 1708, e continuou o assalto à pequena de 9 anos, tendo por seu lado o tutor dela, e os jesuítas e o bispo D. João do Casal. Os adver-sários eram a avó da órfã, o Juiz dos Órfãos, Manuel Vicente Rosa, o Ouvidor, João Carneiro Zuzarte e os parentes da pequena.

Nesse tempo, estas questões resolviam-se a tiro e foi o que sei deu.

Indo Albuquerque Coelho a cavalo para S. Fran-cisco, um cafre, postado no Campo de S. Francisco, dispa-rou sobre ele um bacamarte, que não lhe acertou. Coelho correu sobre o cafre até à Rua Formosa sem o apanhar; ao voltar, D. Henrique de Noronha disparou sobre ele da ja-nela duma casa, onde hoje é o Centro Católico, e acertou--lhe no braço direito por cima do cotovelo. Ele foi recolher--se a S. Francisco; mas, ao chegar à escadaria do conven-to, outro cafre disparou-lhe um tiro que não lhe acertou.

Ao chegar à portaria, já não se pôde apear e foi preciso ajudarem-no. No convento, foi tratado pelo ci-rurgião de Macau, António da Silva, e por um cafre, cirurgias da fragata Nossa Senhora das Neves.

Dezanove dias depois, chegou a Macau um navio inglês, que tinha um cirurgião a bordo. Chamado este, examinou o ferido e, verificando que o braço estava gan-grenado, disse que era necessário cortá-lo para lhe salvar a vida.

Coelho mandou perguntar à noiva se casaria comele sem um braço; esta respondeu que o faria, ainda que lhe faltassem ambas as pernas.

O braço foi cortado imediatamente e ele resta-beleceu-se.

O Governador Diogo de Pinho Teixeira deu ordens para que fosse preso D. Henrique Noronha; mas este homiziou-se em casa do Patriarca de Antióquia, Charles Thomas Maillard de Tournon, para os lados da Barra, e assim se livrou.

Ficou na tradição de Macau uma cantiga acerca deste acidente:

Não he tão formosa

Nem tão bem parecida

Que por seu dinheiro

Maria arma tanta briga.

Casamento

A 30 de Junho de 1709, celebraram-se os espon-sais de Coelho e Maria; esta foi nesse dia retirada da casa da avó e depositada na casa de D. Maria Catarina de Noronha.

A Collecção de vários factos regista assim o casamento: "1770 — Agosto 22. Neste dia, à noite, casou-se António d'Albuquerque Coelho com Maria de Moura, filha de Vicente de Moura, na casa de Campo de S. Francisco (que hoje é de Francisco José de Paiva), onde assistia a Infantaria da Fragata de Goa com o seu Capitão, e nela o mesmo Albuquerque por ordem do Governo pelo julgar ali seguro. Julgando Francisco Leite que este casamento se fazia em St° António, foi esperar o noivo para o matar; porém, ficou logrado."

Note-se que Maria era filha de Francisco e não de Vicente de Moura.

Francisco Leite Pereira era amigo de D. Henrique de Noronha, que vivia em sua casa.

Luto

A 5 de Marco de 1712, morreu Inês, filha de Albuquerque Coelho e de Maria de Moura, recém-nasci-

da de 7 dias, sendo sepultada a 6 na igreja de S. Francisco com grande acompanhamento do povo e da tropa, que deu três descargas ao baixar a sepultura, enquanto que a Fortaleza de S. Paulo deu uma salva de nove tiros.

A 20 de Julho de 1714, Maria de Moura deu à luz um filho e a 23 houve comédias, correrias a cavalo e ou-tros divertimentos. Foi baptizado no dia 27 na igreja de St° António, com a assistência do Governador António Sequeira de Noronha e com duas companhias de solda-dos; à entrada da igreja, houve salva de 7 tiros da Fortaleza de S. Paulo, e à saída, onze tiros.

A 30 de Julho, faleceu Maria de Moura. A Colecção de vários factos diz:

"Que o que de manha foi mimo

He já lastima de tarde."

Com grande acompanhamento, ofício solene e dobres de sinos, foi enterrada na igreja do Convento de S. Francisco, na sepultura onde já estava a sua filhinha Inês e o braço do marido.

Coelho de Albuquerque regressou a Goa. Sendo depois nomeado Governador de Macau, aportou aqui a 29 de Maio de 1718 e governou até 9 de Setembro de 1719, em que chegou o seu sucessor António da Silva Telo de Meneses, irmão do Conde de Aveiras.

Regressando a Goa, foi nomeado Governador de Timor e passou por Macau. Em 1725, ao voltar de Ti-mor, mandou celebrar um ofício solene por alma de sua mulher, dobrando todos os sinos e salvando a Fortaleza; mandou abrir a cova e recolheu os ossos numa urna. Esta conserva-se na igreja de St° Agostinho, onde ainda se encontra encaixada na parede direita da capela-mor. A lápide tem esta inscrição:

"Nesta urna estão os ossos de D. Maria de Mou-ra e Vasconcelos e sua filha D. Inês e os do braço direi-to de seu marido António de Albuquerque Coelho que aqui a fez depositar vindo de Governador e Capitão Geral das Ilhas de Solor e Timor no ano de 1725."

Qual foi o fim de Albuquerque Coelho? Eis o que o Vice-Rei Marquês de Castelo Novo escrevia ao Rei, a 25 de Janeiro de 1746: "António de Albuquerque Coe-lho, filho de António de Albuquerque Coelho, que gover-nou Angola e as Minas, de 60 anos idade, viúvo sem su-cessão. Ocupou vários postos, com boa reputação e va-lor. Com patente de General, governou Timor, Macau e Paté (Zanzibar) com prudência e acerto. Ultimamente passou a General de Bardez, de que fez desistência para recolher aos franciscanos na Província da Madre de Deus onde actualmente faz vida beata. Tem grande en-tendimento, inteireza, e verdades. Ali faleceu alguns anos depois."

Uma nhonha (velha) de Macau comentava há uns 50 anos este episódio de amor, no patois local: "Amor de antigo san amor divera, nunca san comi di hoje." E ter-minava assim: "Amor nunca san brinco — olá, pegá, largá." Isto quer dizer: o amor não é uma brincadeira — olhar, pegar, largar.

MARIA NUNES

Era casada com Alexandre Taveira. Ambos vive-ram em Macau, nos princípios do Séc. XVII e aqui fale-ceram, sendo sepultados na Capela de Jesus da Igreja da Madre de Deus, vulgarmente chamada de S. Paulo.

Os documentos jesuíticos da época não se can-sam de encomiar a generosidade dos dois esposos Maria Nunes e Alexandre Taveira.

Assim no Título dos benfeitores principais deste Colégio de Macau diz-se que Alexandre Taveira e Maria Nunes, sua mulher, foram grandes benfeitores desta igre-ja e do Colégio de S. Paulo, sobretudo a mulher.

Basta dizer que a sua casa era para eles uma dis-pensa farta.

De facto, mandavam constantemente provisões de boca para o pessoal do Colégio e, ainda mais, para os doentes da enfermaria.

Estas iguarias eram levadas pelos numerosos escravos que possuía este casal.

A sua casa era como casa da Companhia, sendo ali todos sempre bem recebidos e bem tratados.

Muitas vezes, emprestaram ao Colégio dinheiro sem juros.

Alexandre Taveira alimentava as lâmpadas da Igreja da Madre de Deus, fornecendo-lhes muitos boiões de azeite; contribuiu com 300 taéis para a construção dessa igreja (1602-1603).

Para as despesas do Colégio deu 80 pardaus e, noutra ocasião, 70 taéis; deu à igreja várias alcatifas e uma peça de linho e 50 taéis para um frontal para o altar de N. Senhora.

Por sua morte, deixou aos jesuítas 150 taéis e às Confrarias de Jesus e de Sta Úrsula deixou 10 cruzados a cada para comprar cera.

Maria Nunes, ainda mais generosa que seu mari-do, deu o seguinte: para a construção da igreja, 600 taéis; para a construção da Capela de Jesus, 400 taéis; para a fabricação dos órgãos grandes da igreja, 50 taéis; para uma capa de veludo preto, 50 taéis; para um ornamento de brocado, 500 xerafins.

Fornecia ainda a igreja com cera, toalhas, véus, cortinas e outras alfaias.

Por sua morte, deixou 100 cruzados para um ornamento de Jesus e para o altar do mesmo, uma alcati-fa grande e umas galhetas de prata, feitas em Portugal; para o acabamento da Capela de Jesus deixou o resto da sua terça e deu ao Colégio outras esmolas.

Alexandre Taveira tinha uma irmã, chamada Ma-ria Taveira, que rivalizava com seu irmão em generosi-dade.

Ela e seu marido, António ÁIvares Torres, deram 700 taéis para a construção da capela-mor de S. Paulo; seda no valor de 199 taéis para se forrar a igreja; quatro alcatifas para a capela-mor no valor de 130 pardaus, 233 pardaus para a fabricação da estátua de St° Inácio e corti-nas. Aceitou prata da igreja a risco de mar, tomando ele sobre si o risco e foi com essa prata que ajudou a cons-truir a igreja.

Por sua morte, Torres deixou à igreja um legado de 200 taéis e outras alfaias no valor de 21 taéis; deixou ainda à igreja o resto da sua terça.

É interessante notar que nesse tempo se fabri-cavam em Macau órgãos e estátuas, o que hoje não acon-tece.

Naturalmente, eram chineses os artistas, ou tal-vez os japoneses expulsos do seu país.

Foi com homens e mulheres desta têmpera que nos séculos de fé se construíram igrejas.

E porque esses e essas já desapareceram, não tem sido possível reconstruir S. Paulo, cujas ruínas aí estão a atestar o fervor, a fé e a generosidade dos portugueses de antanho.

D. MARIA DE SALDANHA NORONHA E MENESES

Esta senhora distintíssima viveu em Macau nos fins do Séc. XVIII, casada e com filhos.

Dotada não só de beleza física, mas também de beleza moral, era um modelo acabado de virtudes e com os seus exemplos e conselhos educava os seus filhos na prática da religião e da virtude, conduzindo-os pelo "es-telífero caminho". Bocage, que aqui chegou em 1789, foi-lhe apresentado e ficou todo encantado com ela. De-dicou-lhe uma linda poesia intitulada Esperança, em que lhe pedia que o ajudasse a regressar a Portugal. Eis al-guns desses versos a D. Maria de Saldanha, a quem ele chama Marília.

"Do chão, onde a lançaste, a lira apanha,

E seja em brando som por ti cantado

Um peito de virtudes adornado,

A piedosa, a magnânima Saldanha.

Louva os dons daquela alma excelsa e pura...

Depois, às lindas filhas melindrosas,

Rivais da mãe de Amor na formosura

Tece capelas e festões de rosas".

"A ti, dignos de ti, Marília, voam

A ti, bela heroína,

Cujas mil graças mil virtudes c´roam;

A ti, que enches de glória a fértil China, Enquanto a que te adora,

Mísera pátria, tua ausência chora.

As deidades, criando-te, exauriram

O seu cofre divino;

A teus encantos para sempre uniram

Em áureo laço o mais feliz destino;

E eis os dons com que brilhas

Reproduzidos nas mimosas filhas.

Esses tenros, lindíssimos pedaços

da tua alma preciosa,

O ledo par gentil, que nos teus braços

Das doces, maternais carícias goza

Teus dias felicita

E nas amáveis perfeições te imita.

Com meiga voz, com eficaz exemplo,

Com saudáveis doutrinas

Ao que habita a Virtude, eterno templo,

O caminho estelífero lhe ensinas,

A mim, mortal profano,

a mim tão árduo, para ti tão plano.

Com suspiros, ó triste implora, implora,

De Marília a piedade;

Ela é justa, ela sente, ela deplora,

Os erros da feliz humanidade

Contra o fado inimigo

Na sua compaixão procura abrigo.

Roga, roga-lhe, enfim, que te destrua

As ânsias, os temores;

Que à Pátria, ao próprio lar te restitua.

Ah! já te disse que sim: não mais clamores;

Musa! Musa! descansa,

Cantemos o triunfo, ó Esperança!"

E Bocage regressou à Pátria, chegando a Lisboa em Agosto de 1790.

MARTA DA SILVA MEROP

É a protagonista dum romance de Austin Coates, intitulado City of broken promises — A cidade das pro-messas quebradas, ou seja, Macau.

Na introdução deste romance, que pretende serhistórico, lê-se: "Tendo por teatro a antiga colónia por-tuguesa de Macau na Costa da China do Sul, durante o período áureo da Companhia das Índias Orientais e do co-mércio do chá, City of broken promises conta a história duma das mais famosas mulheres nos anais de Macau.

Chinesa de nascimento, abandonada nos degraus duma igreja poucos dias depois de vir ao mundo, Marta Merop foi vendida para a prostituição com a idade de treze anos.

Analfabeta, sem nada de seu, e obrigada pelas rígidas convenções dos tempos a permanecer perpetua-mente amparada em casa do seu dono, tornou-se a mu-lher mais rica da costa da China e a maior benfeitora pública de Macau.

Como ela conseguiu isto, é o que nos conta esta autêntica novela dos primórdios do comércio ocidental com a China em que nenhuma europeia podia entrar na China e em que a Companhia das Índias Orientais proibia-os seus empregados de casar com mulheres indígenas.

Nas condições ambivalentes de Macau multi--racial, Austin Coates reconstrói vividamente os anos cruciantes da vida de Marta, de 1780 a 1795, durante os quais ela foi a amante dum oficial da Companhia das Índias Orientais de descendência anglo-holandesa, Thomas Kuyck Van Merop, primeiro filho do presidente da Companhia Lloyd e primo de Jeremias Bentham."

O livro de Coates é um romance empolgante; mas tudo o que diz acerca da sua heroína só tem de verda-de a sua existência. Acresce que ela não era aman-te, mas legítima esposa de Thomas Merop.

Grande Benfeitora

Marta declara no seu testamento que casara à fa-ce da Igreja com o inglês Merop. Este adoeceu grave-mente em Macau, embarcou num navio que o conduziu a Londres e ali faleceu.

Sendo riquíssimo, deixou grandes somas de di-nheiro às suas irmãs e a dois primos e a Mr. Rous, admi-nistrador do seu testamento. Neste diz Merop: "A minha querida esposa Marta Silva deixo a soma de dez mil li-bras e a minha casa na Rua do Hospital e toda a mobília. Se ela mudar da ideia de passar a vida em Macau e vier para a Europa, deve receber mais três mil libras."

Marta nunca mudou de ideias e passou toda a vi-da em Macau, onde faleceu na sua casa, na Rua do Hos-pital, a 8 de Março de 1828, sendo sepultada na capela-mor da Igreja do Convento de S. Francisco.

No seu testamento lacrado, a 3 do mesmo mês, diz:

"Declaro que sou moradora e natural desta Cidade do Nome de Deus na China, filha de Pai e Mãe gentios.

Item — Declaro que fui casada com Thomas Merop, ora defunto in facie a Santa Madre Igreja.

Item — Declaro que deste Matrimónio não tive filho algum."

Deixou o seguinte:$1 000 para 1 000 missas por sua alma; $400 para oficios solenes; $1 400 para pobres recolhidos; $400 pa-ra pobres de porta; $900 para fazer um depósito e com os juros celebrar festas anuais na Sé, assim como ela fizera sempre em vida;$20,000 à Sta Casa da Mi-sericórdia; $5,000 ao Mos-teiro de Sta Clara; $5,000 ao Convento de S. Francis-co; $20 000 às educandas do Recolhimento de Sta Rosa de Lima, devendo ca-da uma receber ainda $200 quando se casasse.

Deixou ainda váriassomas às suas numerosas afilhadas e escravas, que de-veriam ficar livres após a sua morte.

Marta Merop amava a sua terra de Macau, à qual legou toda a sua fortuna e amava também Portugal. Bas-ta dizer que quando, a 18 de Outubro de 1805, se fez em Macau uma subscrição para auxiliar o Governo Por-tuguês, o governador de Macau contribuiu com 500 pa-tacas ao passo que Marta deu mil.

A Sta Casa da Msericórdia quis manifestar o seu perpétuo reconhecimento a esta sua insigne benfeitora mandando colocar o seu re-trato a corpo inteiro na sala de sessões. Bom seria que o Colégio de Sta Rosa de Lima fizesse o mesmo.

José Tomás de Aquino, em carta dirigida à Mesa Direc-tora da Sta Casa, pede des-culpa quanto à demora dos retratos de Francisco Xavier Roquete que legou $62 000 a essa instituição e de Marta da Silva Merop; "os quais foram executados pelo re-tratista china Vo Qua, mas sob o meu contorno e direcção", diz ele.

Foi esta senhora uma das mais ricas que te-ve esta cidade e, sem dúvi-da, a sua mais generosa ben-feitora.

Ainda hoje a Sa Casa e o Colégio de Sta Rosa de Lima beneficiam da sua generosidade.

Bem merecia que o seu nome figurasse numa via pública, como figura o de Francisco Xavier Roquete na Travessa do Roquete.

Extraído de: TEIXEIRA, Manuel, Galeria de mulheres ilustres em Macau, Macau, Centro de Informação e Turismo, 1974; TEI-XEIRA, Manuel, Vultos marcantes em Macau, Macau, Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, 1982.

Maria Ana Acciaioli Tamagnini.

In TEIXEIRA, Manuel, Galeria de mulheres ilustres em Macau, p. 68.

Biblioteca Central de Macau

*Historiador de Macau, da presença portuguesa e da Igreja no Oriente, com mais de uma centena de títulos publicados. Membro de várias instituições internacionais, v. g. a Associação Internacional dos Historiadores da Ásia. Grande Colar e Sócio da Academia Portuguesa de História.

desde a p. 203
até a p.