Ficção

JOGOS URBANOS

Fernanda Dias*

Recebera um presente dos deuses: um presente duro e cintilante como um diamante. Isto era, que vivia com o homem amado. Sim, viver com o homem amado é um fulgurante, intranquilo presente dos deuses. A cada momento constatava estarrecida que vivia com o homem que amava. E se expunha em toda a crueza e fragilidade nos gestos do quotidiano.

Ele vivia leve como um dia de sol, dando vida e graça às horas, movendo por entre as coisas inertes o admirável corpo, a um tempo poderoso e delicado. Da concha das axilas ela lhe colhia a fragância resinosa de uma inaudita floresta de cedros. Ele vivia denso e alheio, presença imponente feltrada pelos dias sem história. Saía muito com os amigos. Tarde ou cedo, voltava sempre. No banho ordenava com aquela voz que tinha o timbre do violoncelo: lava-me as costas. Absorta ela fazia escorrer a espuma na pele lisa e tensa. Contidamente admirava aquela pele quase fria, seca e suave como uma pétala recente. Ele cantarolava gozan-do a água. Tinha a emoção fácil e ríspida e nunca agradecia nada. De joe-lhos ela secava-lhe os pés na toalha imaculada. O dia tinha os seus momentos de muda adoração.

Ela pertencia-lhe. Ele possuía-a com aquele apaixonado rigor com que usufruia de todas as suas coisas: o carro, a colecção de relógios, e as lindas armas de plástico e aço com as quais nas tardes de sábado brincava às guerras na fábrica de panchões abandona-da, lá para a estrada da Taipa.

Ele sabia-se adorado, mas nunca pensava nela.

Ela tecia a rotina diária. Para não cair na pleni-tude. O êxtase mata. A plenitude corrói. Nos fins de se-mana, sozinha, passeava urdindo itinerários ao acaso. A cidade redonda e cheia como um ovo ajudava-a a ser anónima. Caminhava na multidão procurando sentir o fôlego dos muitos outros. Respirar ao ritmo dos pas--santes é um exaltante jogo urbano. Assim como adivi-nhar o desejo nos olhos dos que se dão as mãos. Ou soletrar ternamente o português errado dos anúncios, como que escritos por um menino cábula e traquinas: "LOVO DE PORCELANA E LOUCA DE SENG LONG"; "CENTRO DE CORAÇAO DESIGN";"COBERTORES DE SEDE PURA"; LOJA DOS PAS-SARINHOS QUADRUPEDES"; — um mar de con-sentidos erros, luminosos de absurdo e néon. Sem que soubesse porquê, nesta escrita sem normas lia uma mensagem apaziguadora: pode-se errar. A cidade não cairá por isso. "BRINQUETOS E BICECRETAS";"ARTIGOS DE VESTIARIU REUNIAO E CIAL". Lia, respirava fundo, e contente seguia.

Um dos seus percursos mais queridos é descer a escadaria das ruínas de S. Paulo, e, pelos becos, chegar à rua dos Tim-tins. Entre o adro de pedra e a fortaleza do Monte, as crianças rebentam estalinhos e soltam as suas bolas de sabão. Cheira a erva recém-cortada. Um velho adivinho lê a sina debaixo da acácia. A fachada é um mistério, levantada no ar sem mais paredes. Pétala alta de pedra. Porta de catedral invisível, construída por um fogo sábio que fez cinza das talhas doiradas e entul-ho das paredes de taipa. Outrora multidões de monges e fiéis desceram piamente os degraus polidos, mas há muito que os tufões desgarraram os últimos ecos dos murmúrios dos cultos. As velhas lendas das catacumbas esculpidas de mil carrancas, de tesouros sacros escon-didos, correm fundas, subterrâneas, por baixo da esca-daria. E nos contos dos velhos. Alguma coisa há-de estar escrita algures. Algures na pele da cidade. Na ver-dade tudo o que mexe, vibra, oscila, caminha, rola, e se expande sobre a tensa pele ur-bana desenha e traça uma monumental, imperecível escrita.

Acocorada em plena rua a mulher remexia nas quinquilharias dos tim-tins. Lia sinais de prata fosca: dedais minúsculos, finos ganchos esmaltados para os cabelos, delicadas hastes rapa-línguas. Um dia achou um crucifixo; comprou-o por seis patacas. Um outro dia achou mais dois, um deles com a cruz partida. Comprou os dois. No sábado seguinte voltou, havia mais; comprou-os. Passou a tarde de Domingo a lavá-los, escová-los, a poli-los com limpa-metais. Embru-lhou-os todos num quadrado de seda. Absorta, pro-curou uma caixa onde coubessem aqueles e talvez ou-tros mais.

Recolho um a um os Cristos numa caixa de laca cor de olho-de-tigre, sem sombra de dúvida são cruci-fixos de rosários ou terços perdidos, este aqui devia ter sido de um grosso rosário, um frágil terço não podia com a madeira preta deste lenho, e a figura do Cristo deve ser de chumbo, vê-se o brilho plúmbeo por baixo da casquinha acobreada gasta, nos joelhos e no suave peito, e no sítio dos ausentes espinhos, limados e poli-dos sabe-se lá por que devotas mãos.

Já tenho dezoito Cristos, uns maiores, outros menores, até um minúsculo de prata lavrada e rosada, deve ter liga de cobre, porém não estava oxidado quan-do o tirei do meio dos pechisbeques de dentro de uma malga rachada, no chão da rua dos tim-tins. Retirado o véu de poeira com a ponta do dedo, já brilhava, até hoje não deixou de brilhar, delicado como um pedacinho de renda, talvez fosse de um terço de menina, talvez, quem sabe. Um dos mais belos e misteriosos parece ser de bronze, a cruz tem madeira embutida, segura pelos grandes pregos que espalmam e furam as mãos do Se-nhor. Atrás da cabeça tem um resplendor triangular, ainda são visíveis os quase apagados raios da luz que emanava da divina face, mas que face, o que resta dela é uma oval delicada e feminina, olhando sem olhos para a mão direita, o colo polido parece eternizar uma pro-fundíssima inspiração, o que acontecerá quando o Se-nhor descansar e esvasiar o peito no suspiro mais fundo que alguém já deu. A cintura fina move-se um tudo-nada, levando para a direita — ó mistério — uma anca opulenta como que de mãe, eu bem sei que a ilusão se deve a terem os rezadores tocado, acariciado, roçagado até ao desgaste as pregas finas da faixa que protegia a nudez humana do salvador divino aqui representado. Mas a imagem me perturba e irresistivelmente me lem-bra este Cristo feminino que Deus é Pai e Mãe, e Cristo e a Madre Igreja não são senão Uma, amém.

De onde vêm pois estas cruzes caídas, de S. Lá-zaro ou de Santo Agostinho, do cemitério de S. Miguel ou das obras das Ruínas, não sei, só sei que os compro na rua, revolvo a tralha espalhada no plático estendido no chão, sapecas, broches sem alfinete, relógios sem pulseira, brincos sem par, amuletos, cromos, carimbos, almanaques de anos idos. E por vezes, crucifixos. Quei-tó, t'chin-á? — Sap man. — Sap man? Hou quai. Peng-ti, tac, m'tac? — Tac-lá! Leong kó sap-i man.

Estes dois parecem ter sido moldados pelas mesmas mãos, só que num o resplendor é circular e não tem a fita a dizer INRI. Alguns têm as pontas da cruz em forma de flor de liz; a enciclopédia diz ser a Cruz de S. Tiago. Este outro, esticado como um ícone numa cruz espalmada, mede apenas três centímetros, tem os dedos separados dois a dois, os finos músculos dos braços e dos ombros perfeitamente modelados. As cos-telas podem-se contar e no arco cavo do ventre os abdominais tensos dão testemunho de uma imensa dor. As rótulas crispadas, as pálpebras descidas, a linha do nariz, a curva do lábio, de uma infinita tristeza, com tanto rigor e precisão foram cinzelados, que visto de frente ou de perfil, é sempre a mesma a comovente expressão. Acima e abaixo da linha dos braços pode ler-se: STAT CRUX DUM VOLVITUR ORBIS.

Em nenhum deles pude ver: "made in qualquer-sítio". Nenhum ostenta punção de oficina ou cunho de artífice. Numa qualquer cidade europeia seriam apenas velhos objectos pios. Nesta que se chama do Nome de Deus, proclamam o mágico fascínio do martírio. E o assombroso mistério da sagrada nudez.

Ana! — chamou ele no limiar do quarto. Res-pondeu-lhe um silêncio que lhe soou como uma peque-na traição, um amuo injusto.

Filtradas pela distância chegavam-lhe as vozes dos jogadores, treinando lá em baixo no campo do Tap-Seac, e o gorgear das crianças nos páteos das escolas vizinhas.

Ana-Luísa! — voltou a chamar já sem con-vicção. Aprumou-se ao encontrar o próprio olhar no espelho. Despiu-se absorto e enfiou-se no roupão de banho. Praguejou sorrindo uma inofensiva praga em cantonen-se, mas logo crispou a boca dura num grosso palavrão português. Largou o roupão e entrou no duche. Prague-jou de novo: não estava quem lhe esten-deria a toalha limpa. Onde poderia ter ido, pensou atónito. Limpou-se à toalha da manhã. Sem saber porquê, sentia-se levemente culpado. Ultimamente des-cuidara-se um pouco de testar a eficácia do seu poder. Do macio poder da sedução. Olhou no espelho a sua nudez sem mácula. Como um calhau rolado, como um cristal. A nudez inocente na intimidade do quarto deser-to. A nudez inútil, sem a muda admiração dos olhos da mulher. Achou-se pueril e vestiu-se num ápice.

Deu-lhe na fantasia vagabundear. — Justificou em voz alta, intimamente atento a não ser isto senão parte da verdade. De súbito intrigado, rodou no quarto um olhar inquiridor. Abriu duas gavetas, apalpou a im-pecável ordem da roupa branca. Abriu um armário, sor--riu às perfeitas linhas das suas armas de brinquedo. De súbito, com mão involuntária colheu do alto do armário a caixa de laca amarela. Parou suspenso no acto de abrir. Sentiu-lhe o peso e deu por si a pensar; se fossem relógios, já se ouviria o palpitar dos maquinismos escondidos. Saiu com a caixa na mão para a penumbra do corredor.

Empilhados uns sobre os outros, polidos e sole-nes, no fundo da caixa forrada com um retalho de seda, alinhados sem nenhuma ordem compreensível, ali esta-vam os velhos crucifixos.

Jesus! — Praguejou de novo, desta vez em in-glês. — Where this comefrom? Querem ver que deu em beata e eu sem saber?

Foi até à varanda, olhou sem ver o casario, os barcos quietos nas águas de cobre fosco. Caía o cre-púsculo sobre as montanhas da China. Vagamente in-quieto acendeu um cigarro. Perguntou-se se deveria ir jantar fora ou esperar que ela voltasse. Ou simples-mente não comer.

Durou-lhe a perplexidade o tempo de um cigar-ro. Embora os amigos só o esperassem daí a duas horas, pegou no telefone móvel, na carteira, nas chaves do carro, no painel do rádio, e saiu para a noite.

*Publicou Horas de Papel na colecção "Poesia em Papel de Arroz", da editora Livros do Oriente; obteve o primeiro e terceiro prémios do concurso Prémios Macau de Conto, 1992, com os con-tos Dias do Beco da Prosperidade e Rompimento, promovido pela mesma editora e publicados na revista "Macau", Out. e Dez. 1992. Publicou ainda Devaneio em Hac-Sá na revista "Face", (2) Jul. 1993.

desde a p. 185
até a p.