Ensaios

A MULHER MACAENSE ESSA DESCONHECIDA

Ana Maria Amaro*

Quando das minhas mágoas a comprida

Maginação os olhos me adormece,

Em sonhos aquela alma me aparece,

Que pera mim foi sonho nesta vida.

Há ua soidade, onde estendida

A vista por o campo desfalece,

Corro após ela; e ela então parece

Que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: — Não me fujais, sombra benina! —

Ela, os olhos em mim em brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser,

Torna a fugir-me; tomo a bradar: Dina...

E antes que diga mene, acordo, e vejo

Que nem um breve engano posso ter.

Luís de Camões

Macau, anos 60. Era dia de rendição militar. No pontão de madeira do Porto Exterior alastrava uma man-cha ocre de fardas de caqui. O batelão de casco alcatroa-do oscilava ao capricho da maré, começando os "cules" a desfazer os nós das grossas amarras para a partida. Ao longe, onde o fundo do rio é mais profundo, envolto na bruma de todos os dias, destacava-se o barco que levaria para Moçambique e para Portugal os militares retoma-dos cuja missão de serviço se comprira. Azáfama e algu-ma confusão; sacos, malas, pacotes de última hora. Os cofiós vermelhos dos landins já tinham partido antes. Os gritos dos cules a sincronizar a manobra de descolagem do batelão cruzavam-se com as ordens dos graduados militares. De repente, no meio daquele barulho confuso feito de rumores, risos, abraços fortes, a que se juntava o som monótono da ondulação parda que se quebrava no molhe, soou um grito angustiado: — "Mammie!"

Sobre o ombro ocre manchado de listras doura-das dum sargento que quase corria em direcção ao bate-lão prestes a partir, emergia a cabeça alourada e o braci-to erguido descontrolado duma criança que se debatia e chorando repetia: — "Mammie!"

O som apagou-se tal como a visão se diluiu no meio do amontoado de fardas que ombreavam no barco que se ia afastando.

Pelo chão ficaram papéis amachucados e rasga-dos, detritos já sem nome, restos amarrotados de sau-dade, talvez.

As tábuas velhas do pontão-cais, mal unidas, dei-xavam ver agora as águas pardas do rio onde mais detri-tos flutuavam. Era o que ficava para trás dos que parti-am: detritos.

De pé, junto de mim, estava uma mulher jovem. Era uma euro-asiática de traços predominantemente oci-dentais, bonita, envergando um min-hap carmesim onde se perdiam as lágrimas que lhe banhavam o rosto, rosto que sorrira ainda até há pouco enquanto acenava, cora-josa, à filha pequenina que partia.

— "Mammie!" O eco daquele grito ainda me parece ouvi-lo hoje.

Foi então que eu reparei, pela primeira vez, na mulher macaense, euro-asiática, essa desconhecida por vezes tão desrespeitada por tão mal compreendida pelos homens de passagem vindos do Ocidente.

Se existem vários documentos onde é possível recolher dados sócio-antropológicos relativos à mulher portuguesa do Oriente, relativamente a Macau, estes são escassos e muitas vezes ambíguos. Os eclesiásticos que escreveram sobre ela falaram apenas dos Séculos XVII e XVIII, em escravas que era preciso expulsar da terra, "em homens que viviam em pecado", em órfãos, que era preciso proteger e casar.

Nos numeramentos, as mulheres são referidas globalmente, contrariamente aos homens que são regis-tados como filhos e netos de portugueses, nhons e natu-rais da terra.1As mulheres essas, porém, são apenas des-critas relativamente ao seu estado civil: mulheres casa-das ou donzelas, ou como res nulia.

Dois mandarins chineses mandados a Macau pa-ra averiguar qual o estado da Cidade e dos seus habi-tantes consideraram dois grupos de mulheres portugue-sas "de acordo com a cor da pele": brancas (as senhoras) e negras (as escravas e/ou criadas). Estes relatos datam do Séc. XVIII,2 quando a maioria das mulheres escravas eram timorenses sendo já mais raras as negras, devido às diferenças de preços nas respectivas aquisições. Nessa altura a Cidade estava empobrecida e vivia das viagens a Timor e a alguns portos da Índia, da Insulíndia e da Indo-china, muito longe dos anos de riqueza que empalidece-ram com o fim do Séc. XVII.

É curiosamente nos relatos dos viajantes, princi-palmente nos dos viajantes estrangeiros, que se encon-tram quase sempre referências às mulheres de Macau, embora raramente isentas de forte etnocentrismo.

Que mulheres teriam acompanhado para Macau os primeiros portugueses? Que destino teria sido o das suas filhas e que lugar teriam ocupado estas na sociedade macaense?

Socorrendo-nos das cartas dos eclesiásticos e das Annuas dos jesuítas,3 missionários que fizeram de Ma-cau porto de entrada para a China, bem como dos relatos dos viajantes que demandaram Macau, entre os Séculos XVI e XIX, podemos conhecer alguma coisa acerca des--sas mulheres anónimas, a quem os portugueses tanto ficaram a dever quando se estabeleceram em Macau.

Nos primeiros tempos a vida aventurosa dos por-tugueses nos mares da China, documentada por vários testemunhos coevos tais como as cartas escritas de Can-tão por Cristovão Vieira e Vasco Calvo4 e a própria Pere-grinação de Fernão Mendes Pinto,5 leva-nos a pensar que apenas se faziam acompanhar por escravas ou aven-tureiras ocasionais às quais Fernão Mendes Pinto se re-fere na descrição dum naufrágio. Contudo, segundo esta mesma fonte, em Liampó, estabelecimento que precedeu o de Macau, "avia (...) trezentos casados com mulheres portuguesas e misticas".

Quem seriam estas mulheres portuguesas a que se refere Femão Mendes Pinto uma vez que o Reino proibia o embarque de mulheres europeias para o Orien-te a não ser em casos muito especiais?

Não cremos que mulheres portuguesas do Reino, aportadas a Goa ou ali nascidas, fossem levadas para a China por homens que faziam da vida uma verdadeira aventura. Aliás, quando começaram a ser enviadas para Goa as ditas órfãs do Rei, os seus casamentos, por deter-minação real, deveriam contratar-se apenas com homens escolhidos e "não com soldados em busca de fortuna". Quanto às raparigas nascidas em Goa, filhas dessas mães europeias, seriam as que melhores dotes receberiam e por isso os seus casamentos nunca seriam, também, com ho-mens desse tipo. O mesmo seria de considerar no que res-peita às filhas legítimas de portugueses e de naturais da terra.

Aliás muitas eram as raparigas macaenses que professavam em Goa, no Convento de Santa Mónica, tal-vez porque precisamente os seus pais ou tutores não en-contravam para elas o marido desejável.

De acordo com as fontes históricas, nos primei-ros tempos do estabelecimento dos portugueses em Ma-cau, os homens tinham ali, na sua maioria, residência temporária.

Contudo, em 1563, o Padre Francisco de Sousa, ao descrever uma procissão na povoação de Macau, diz que "estavam as meninas pelas janelas com grinaldas nas cabeças e salvas de prata nas mãos cheias de rosas e re-domas de água rosada que lançavam por cima do pálio e da gente que passava",6 tal como sucedia, pela mesma al-tura, em Goa e possivelmente noutras praças do Oriente. Afirma, ainda, o mesmo eclesiástico que, nesta mesma data, "casaram-se algumas órfãs e muitos cristãos da ter -ra que de largo tempo viviam em pecado. Embarcaram-se para a Índia mais de 450 escravas de preço e na últi-ma nau que partiu para Malaca se embarcaram ainda duzentas que eram as mais perigosas e mais difíceis de se lançarem fora".

A partir deste testemunho parece poder confir-mar-se que as mulheres que acompanhavam os primeiros portugueses que demandaram a China eram escravas compradas nos mercados do Oriente, escravas que os acompanhavam também nas embarcações, à maneira tra-dicional da navegação comercial no Oriente. As órfãs a que o Pe. Francisco de Sousa se referia seriam possivel-mente as filhas dos portugueses, as euro-asiáticas que vi-viam em regime de concubinato.

Difícil era a acção moralizadora dos missionários e os abusos acabaram por ser de tal ordem que na Cons-tituição do Bispado de Goa, publicada em 1568, foi re-gulamentado o casamento dos portugueses nas praças do Oriente, em especial dos homens que eram casados no Reino e que não desejavam, ou não podiam, lá voltar, pa-ra evitar o pecado da bigamia.7

Nas pequenas viagens de comércio as mulheres que acompanhavam os portugueses nos seus barcos e não raramente eram vendidas em portos diferentes, con-tinuavam a ser uma constante, passando em breve a ser levadas chinesas compradas, de Macau para Goa, e pos -sivelmente mestiças suas filhas, além de japoas (as es-cravas mais baratas nos fins do Séc. XVI).

Os abusos escandalizavam a Igreja e as queixas não se fizeram esperar.

Assim, em 1607, foi proibido aos homens por-tugueses transportarem consigo mulheres nos barcos, a menos que aquelas viajassem acompanhando alguma senhora autorizada a embarcar.

Esta proibição foi apregoada em todas as praças da Ásia e, por conseguinte, em Macau, mas a verdade é que o comércio de escravas do Japão, mui chai (chine-sas)8 e depois timoras, e provavelmente o de mulheres de outras etnias continuou a verificar-se durante muito tem-po, talvez até à definitiva abolição da escravatura nos fins do Séc. XIX.

Tal facto pode, aliás, confirmar-se pela leitura de várias disposições quer do Reino quer do Bispado, quer, ainda, das autoridades chinesas, no sentido de reprimir tal comércio. Segundo o P.e Gabriel de Matos, uma das coisas que escandalizavam os mandarins era verem os portugueses "cativar chinesas, comprando-as ou venden-do-as para fora da terra (...) Saíam por vezes (...) para outros reinos embarcações, carregadas de meninos e meninas". Também contra este tipo de escravatura se insurgiu, por escrito, o P.e Caetano Lopes no Século XVII.9

Em 1617, o aitão10 de Cantão fez publicar um decreto do imperador Man Lec (1573-1620) no qual se proibia aos portugueses "comprar súbdito algum no Im-pério chinês". Contudo, por meio de peitas ao mandarim e por tráfico com chineses menos escrupulosos, este de-creto parece nem sempre ter sido cumprido.

Aliás, já no Séc. XVI o Reino interviera na repressão do comércio de escravos no Oriente. E isto porque desde os mercados dos países árabes ao famoso mercado de Goa, os portugueses podiam comprar escra-vas provenientes das mais diversas partes de África e da Ásia, o que incrementou este comércio de tal forma que, desde 1520, foi proibido por D. Manuel "que se levas--sem para a Europa escravos de qualquer casta", proi-bição reiterada em 1571 por D. Sebastião.

Em 1595, na sequência de queixas das autori-dades chinesas contra os portugueses que compravam raparigas daquela etnia para suas criadas e as expor-tavam como escravas, foram estabelecidas sanções tais como: multas de mil cruzados e dois anos de residência fixa em Damão.

No entanto, o comércio das mui chai continuou, abafando muitos homens os seus escrúpulos com a capa de caridosa intenção: tomarem cristãs, pelo baptismo, as raparigas pagãs que eram vendidas. A verdade é que o infanticídio feminino era uma prática corrente na China, e assim muitos chineses pressionados pela miséria, em vez de matarem as suas filhas, vendiam-nas aos portu-gueses. Outros roubavam-nas ou compravam-nas aos seus conterrâneos para as revender em Macau. Este co-mércio de crianças roubadas ou revendidas parece ter si-do o meio mais usado para aquisição de mui chai, por-quanto muitos chineses, talvez até a sua maioria, temiam represálias dos seus Antepassados falecidos, no caso de mudarem os seus descendentes de religião adoptando a dos bárbaros, uma vez que as crianças lhes fossem ven-didas directamente. Surgiram, assim, muitos chineses sem escrúpulos a praticarem este tráfego com os portu-gueses de Macau, que, com ele, auferiam grandes lucros.

Em 1624, o Reino voltou a legislar proibindo a compra de crianças chinesas. Porém, essa lei continuou a ser ignorada em Macau. Aos homens que ali residiam, quase todos ainda ricos e homens poderosos, pouco afectavam as leis do Reino, habituados que estavam a ser praticamente auto-govemados, distantes da jurisdição de Goa, e tendo à frente do seu Senado um grupo de pes-soas nem sempre detentoras das virtudes exigidas a um homem bom."11

Joseph Wick12 diz que no Séc. XVI era comum ouvir-se falar de homens residentes em Malaca, de onde São Francisco Xavier partira sem poder fazer grande sementeira nos seus moradores, que, sendo casados "ti-nham três ou quatro mancebas e muitos meia dúzia".

O mesmo se passava em todas as praças do Oriente, no que se referia à organização familiar da maioria dos portugueses. Em 1715, o Pai dos cristãos (o Bispo de Macau) proibiu, mais uma vez, a compra de escravas e o envio de mui chai de Macau para Goa ou para qualquer outro lugar.

A par das condenações eclesiásticas e da pressão das autoridades chinesas13continuavam a suceder-se as proibições do Reino, na realidade sem grande efeito prático.

No Séc. XVIII, com o comércio decadente e as cres-centes privações, uma das novas fontes de abastecimento de escravas passou a ser Timor, o que levou, em 1747, a nova proibição do Bispo de Macau, relativa ao transporte de "timorenses e de outras mulheres" para a Cidade de Macau. Contra esta proibição eclesiástica pronunciou-se, então, o Senado, cujos componentes se sentiam lesados nos seus negócios e na sua economia doméstica.

Foi finalmente em 1758 que o Marquês de Pom-bal deu o mais profundo golpe na escravatura das rapari-gas chinesas, ordenando que em vinte e quatro horas se desse a liberdade a todas quantas se encontravam ainda cativas.

Esta situação, porém, só veio a resolver-se defini-tivamente mais tarde, pela lei de 23 de Fevereiro de 1869, que levou à extinção da escravatura em todos os domínios portugueses.

Para escapar às múltiplas proibições que impli-cavam punição a quem escravizasse raparigas chinesas, a condição proibida de escravas levou à criação de uma nova categoria na estrutura familiar dos portugueses de Macau — a de criações ou crioulas. Esta categoria man-teve-se por todo o Séc. XIX e continuou a manter-se nas primeiras décadas do Séc. XX. Os criolos, crioulos ou criações, já constavam, aliás, dos testamentos dos por-tugueses de Macau pelo menos nos princípios do Séc. XVIII, como se pode verificar pelos documentos exis-tentes na Santa Casa da Misericórdia de Macau.14

Conhecemos, ainda, naquela cidade, nos anos 60, senhoras macaenses que tinham sido criações ou criou-las de famílias abastadas locais. Não eram escravas mas também não eram completamente livres.

Nessa altura, falava-se ainda, também, em nhins, nhons e nhonhonha, amas ou amás, aias, e bichas, como diferentes estatutos de mulheres macaenses euro-asiáti-cas e chinesas e mesmo de outras etnias que integravam as famílias locais.

As criações eram as crianças compradas ou as fi-lhas e os filhos ilegítimos do Chefe da Família ou dos nhons seus descendentes. Tinham um estatuto que não era bem o da bicha, antiga escrava ou serviçal, mas tam-bém não era o de afilhada, como entendemos o paranin-fato em Portugal e que ainda existe em muitas das nos-sas aldeias.

As mulheres escravas e as suas filhas (que eram escravas também ou podiam ser libertas pelos amos mais generosos) foram, durante muito tempo, muito nume-rosas em Macau, o que provocava um grande desequi-líbro no sex-ratio e levava os viajantes estrangeiros a registarem nos seus escritos comentários bastante des-primorosos em relação às mulheres macaenses.

As escravas eram compradas, herdadas, vendidas ou oferecidas a bel-prazer dos seus amos. As últimas timoras libertas e seus descendentes viviam, nos princí-pios deste século, no bairro muito provavelmente depre-ciativamente conhecido por "Baixo-Monte", paredes meias com chineses na sua maioria refugiados.

Peter Mundy, no Séc. XVII,15 descreveu Macau ainda no seu período áureo e referiu-se às mulheres macaenses e aos quimonos que, por casa, envergavam as crianças das famílias abastadas, anontando as "jóias pre-ciosas e os caros enfeites". E acrescentou: "Neste lugar há muitos homens ricos, trajando à maneira de Portugal. As suas mulheres, como as de Goa, vestem-se com saraças e condês, estes sobre a cabeça e os outros do meio do corpo até aos pés, e andam calçadas de chinelas chatas.16É este o traje ordinário das mulheres de Macau. Só as de melhor categoria são transportadas em cadeiras à mão, como as cadeirinhas em Londres, todas total-mente cobertas, algumas das quais são muito caras e ficas, trazidas do Japão. Mas quando saem sem elas, a patroa dificilmente se distingue da criada ou escrava17 pela aparência exterior, todas inteiramente cobertas, mas os seus sherazees (saraças) são de melhor qualidade(...).

(...) Essas mulheres, dentro de casa, usam exte-riormente uma veste de mangas muito largas, chamada kamono ou kerimono japonês, por ser o traje ordinário usado pelos japoneses, havendo muitos que são ele-gantes, trazidos de lá, de seda tingida, e outros tão caros como aqueles, feitos aqui pelos chineses, de rica bor-dadura colorida e oiro (...)."

Este quimono deve corresponder ao quimão ou baju, que, as mulheres macaenses das famílias ricas, mandavam fazer em tecidos não transparentes, caros e vistosamente bordados ou ornamentados com rendas, e as menos favorecidas costuravam em pano elefante listrado18 ou em algodão, como ainda os vimos em Macau, nos anos 60, usados por senhoras luso-descen-dentes idosas.

Quando saíam, as mulheres iam encerradas nas suas cadeirinhas, transportadas aos ombros, e envolvidas nas suas saraças ou véus, o que é testemunhado pelos desenhos com que Peter Mundy ilustrou a sua narrativa e que se podem ver num dos mais antigos mapas de Macau, desenhado por Theodore de Bry e publicado na Alemanha em 1598.

Comparando a descrição de Peter Mundy, relati-va a Macau, com outra contemporânea, que o médico francês Dellon nos legou também no Século XVII, rela-tivamente ao traje das mulheres de Goa, parece poder inferir-se que os velhos bajus de influência islâmica pre-dominavam na Índia e em Malaca, enquanto em Macau as mulheres dos comerciantes mais abastados os preteri-am pelos quimonos de modelo japonês ou mesmo chinês. No entanto, este vestuário característico das mu-lheres portuguesas do Oriente, tão diferente do das mu-lheres do Reino, parece apontar para a predominância de mulheres mestiças e de várias etnias não europeias em Macau. A favor desta hipótese advoga o facto de ter o traje dos homens evoluído no tempo, acompanhando a moda de Portugal com ligeiras variantes, de influência indiana, como os banianes e calças-mouras usados pelos homens, principalmente pelos nhons, no-Verão cálido de Macau. Eram estes nhons e nhonhona os descendentes dos portugueses do Reino, sendo as nhim as senhoras casadas, e geralmente de estatuto socioeconómico desafogado. Havia, ainda, as aias, mu-lheres também luso-descendentes de classe social menos favorecida, que eram contratadas para damas de com-panhia das filhas das famílias mais ricas e que as acom-panhavam quando estas se casavam, passando a fazer parte da sua nova família. Além das aias, cada criança de família macaense rica, tinha a sua amá chinesa, que podia aleitá-la ou não, mas que era por ela responsável. Muitas destas amás ficavam incorporadas nas grandes famílias até morrerem, se o desejassem, sendo algumas catequizadas e baptizadas, por vezes quando já muito idosas.19

No Séc. XVIII, estando a cidade empobrecida, começaram a afluir degredados e aventureiros, indivídu-os sem escrúpulos, fugidos de Goa. E a degradação moral acompanhou depressa a degradação económica.

Sir Alexander Hamilton, por exemplo, no primeiro quartel do Séc. XVIII,20 registou: "Em toda a cidade havia cerca de 200 homens (...) e cerca de 1 500 mulheres, muitas delas muito prolíficas para gerarem fi-lhos sem marido."

Outros viajantes que demandaram Macau no mesmo século como, por exemplo, o mareante Nicolau Fernandes da Fonseca (1774), fizeram, aliás, igual juízo crítico.

Por esta mesma altura, os magistrados Tcheong Ü Lam e Ian Kuong Iam, já atrás citados, que visitaram e permaneceram algum tempo em Macau no Século XVIII, registaram, numa curiosa monografia xilografa-da,21 desenhos ricos em pormenor, representando tipos portugueses e referiram-se às diferenças de estatuto so-cioeconómico dos portugueses de Macau, afirmando: "Os homens e as mulheres das famílias ricas sentam-se e comem (o que significa viverem na ociosidade). Os po-bres são soldados ou mareantes que trabalham nos bar-cos ao serviço de outrem. As mulheres bordam lenços e cintos e fazem bolos e doces como meio de vida".

Entre estes desenhos destaca-se a figura de uma nhonha (fig. 1) cujo traje, pelo seu exostismo, lhes deve-ria ter despertado a atenção, traje que corresponde, per-feitamente, aos desenhos que nos legou Peter Mundy no seu livro e o traje usado pelas mulheres goesas e malaias cristãs, ainda nos fins do Século XIX.

A descrição destes viajantes chineses continua exaltando o luxo e extravagância dos portugueses que, à semelhança dos grandes senhores asiáticos, continuavam a sair de cadeirinha ou machila, a pé ou a cavalo, mas sempre protegidos por guarda-sóis transportados por escravos. "O mesmo faziam as mulheres, acompanhadas por escravas, quase todas vestidas da mesma maneira, apenas se diferenciando o traje pela qualidade dos teci-dos." Tcheong Ü Lam e Ian Kuong Iam registaram, ainda, que os homens não podiam manter em casa mais de uma esposa, porque a mulher se queixava ao Bispo e eles eram castigados. Referem-se, como é óbvio, à proi-bição da bigamia. Esta visão é puramente sinocêntrica, porquanto um chinês rico podia manter em harmonia, em sua casa, várias esposas, sendo, no entanto, a primei-ra quem gozava das regalias de dona-de-casa e de mãe de todos os filhos. A moral confucionista mantinha, assim, o casamento monogâmico exigindo, no entanto, à mulher absoluta fidelidade ao marido mas não exigindo recipro-cidade. Daí, mostrarem-se os magistrados chineses cho-cados por "não ser proibido às mulheres portuguesas te-rem mais homens". E isto porque, naquela altura, o esta-do de miséria moral e económica da cidade chegara a tal ponto de degradação, que os próprios chefes de família cediam as mulheres e as próprias filhas aos estrangeiros para obterem algum lucro. As raparigas macaenses cri-adas, de certo modo, num ambiente de harém, no meio de escravas numerosas, não podiam ter, como é evidente, conceitos morais semelhantes aos das raparigas cristãs da Europa, nem uma visão igual da castidade.

A vida das mulheres macaenses era uma vida ociosa, no caso de pertencerem às classes mais favoreci-das, e francamente orientalizada em maior ou menor grau, em razão inversa das respectivas classes sociais.

Contrariamente às nhins (senhoras casadas das classes mais favorecidas) e suas filhas e parentes próxi-mas, as mulheres das classes menos favorecidas ocupa-vam-se em trabalhos de costurinha mutri e escarrachada22e na confecção de doces e confeitos e na arte de batê saia23 ou arranjavam um lugar de aia, senão reputação de boas daias ou chacha-madrinha,24 dando assistência às famílias portuguesas em competição com as parteiras chinesas.

Em defesa do mau juízo que os portugueses do Reino e os estrangeiros faziam da moral das mulheres macaenses há que ter em conta as condições socioeco-nómicas e o ambiente familiar em que desde a fundação da Cidade multas delas tinham sido criadas. E isto já para não falar no comportamento esperado das numero-sas escravas quer antes quer depois de libertas.

Se é verdade que a mentalidade orientalizada das mulheres euro-asiáticas as levava a menosprezar, de cer-to modo, alguns valores da moral judaico-cristã das clas--ses burguesas da Europa do seu tempo, apesar de os ma-ridos portugueses serem considerados ciumentos e bru-tais, certo é que a culpa do comportamento dissoluto de algumas delas se deve imputar aos homens com quem viviam. Em meados do Século XVII, quando a cidade empobreceu por falência do comércio com o Japão, mui-tos foram os homens portugueses que deixaram Macau e não poucos abandonaram, ali, sem recursos económicos, as suas famílias. Fácil é de admitir que teria sido a misé-ria material, aliada à mentalidade de harém, que os por-tugueses mantinham nas cidades do Oriente onde vivi-am, o factor principal que levou, então, muitas mulheres, principalmente criações e escravas forras, à vida dissolu-ta que todos os viajantes do Século XVIII lhes apontam.

Em meados do Século XIX, as ideias liberais que, em Portugal, se expandiram pelas cidades ultramarinas e, depois da fundação de Hong-Kong, a influência da ética vitoriana, imprimiram à sociedade macaense uma nova feição. A moral familiar, tão desprezada nos sécu-los anteriores, tornou-se de rigor na alta sociedade, o que a abolição definitiva da escravatura, em 1876, veio re-forçar. As famílias extensas, que correspondem sempre a períodos de expansão burguesa, começaram a desapare-cer. E as raparigas macaenses passaram a desfrutar de uma certa independência, principalmente em relação ao casamento, por ter sido abolido o dote. Assim o registou, por exemplo, José Ignácio de Andrade (1835) nas suas Cartas escritas da Índia e da China.25

Depois de inauguradas as carreiras de barcos a vapor, maior foi o número de mulheres europeias que se aventuraram às grandes travessias e demandaram Ma-cau. A rivalidade que então separou estas mulheres das mulheres macaenses acentuou-se, paradoxalmente, há poucos anos, quando ondas de europeus de ambos os se-xos invadiram o território em busca de lucro fácil.

Hoje, quando já não tem sentido o eurocentrismo do Séc. XIX, altura em que a ngau pó ou fei pó26 era olha-da como a mulher gorda de buço, grande nariz e grandes pés pelas macaenses, e a mulher local, olhada como ca-ra-bolacha, olhos em bico ou menosprezada pelo seu português-crioulo, a rivalidade subsiste embora talvez não expressa tão ostensivamente como dantes. Porquê?

Conhecemos senhoras macaenses de todos os grupos etários e de todas as classes sociais. Com elas convivemos, e aprendemos a admirá-las. A sua delicade-za natural, o bom gosto e a elegância no vestir, a forma cordial e polida como nos recebem nas suas casas, deco-radas com móveis e bibelots em estilo hibridado, acom-panhada sempre dum sorriso, são o bastante para nos cativar. Inteligentes, astutas, apagadas, ou garridas quan-do querem, com personalidade bem definida e muita ter-nura por detrás daquele mistério próprio de quem inten-cionalmente se não desvenda, são elas que dominam, realmente, o grupo familiar, porque os maridos se lhes rendem incondicionalmente.

Mulheres macaenses tão mal conhecidas entre nós, euro-asiáticas, algumas sem ascendência chinesa próxima, mas a quem quase todos confundem com chi-nesas e às vezes insultam ou menosprezam.

Mulheres bonitas e delicadas que muitos europeus amavam e com as quais casavam e traziam para Portu-gal, mas que outros olhavam ainda, nos anos 60-70, com os olhos que reflectiam a sua mentalidade etnocêntrica, como levianas, não entendendo a sua precoce emancipa-ção, por influência das comunidades estrangeiras de Xan-gai e de Hong-Kong.

Mulheres mal compreendidas, capazes de muito amarem, confiantes nas palavras enganosas dos ngau,27 mulheres que, em muitos casos, em pleno Séc. XX, fica-vam solteiras em Macau, como ficaram solteiras e órfãs, nos Séculos XVII e XVIII multas outras, com a debanda-da de quem só procurava naquela cidade o lucro e o prazer.

No porto-cais de Macau ouvimos, numa tarde dos anos 60, o grito angustiado duma criança que partia: — "Mammie!"

E vimos o vulto crispado da mulher macaense, envolvida no seu mip-hap carmesim, que ficava tentan-do esconder atrás de um sorriso a sua frustração de mal amada por tão mal conhecida.

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SEM TíTULO

Elsa César

Colagem

A NOIVA MANCHU

Nuno Barreto

Fragmento; 118 X 164 cm

Propriedade da Fundação Oriente, Lisboa

NOTAS

1 Supomos que os naturais da terra, nestes numeramentos, sejam os chineses cristãos, uma vez que nhons era o nome dado aos filhos de pai e mãe euro-asiáticos.

2 TCHEONG Ü Lam; IAN Kuong Iam, Ou Mun kei leoc = Monografia de Macau, trad. de Luís Gonzaga Gomes, Macau, 1950.

3 Manuscritos da Biblioteca da Adjuda, Jesuítas na Ásia (cód. diversos).

4 CARTAS dos cativos de Cantão Cristóvão Vieira e Vasco Calvo (1524?), introdução, leitura e notas de Rui Manuel Loureiro, Macau, ICM, 1992.

5 PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas couzas..., Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1614.

6 SOUSA, Francisco de, Oriente conquistado a Jesus Cristo..., red. em 1563, publ. em Lisboa, 1710.

7 CONSTITUIÇÃO do Bispado de Goa, publ. em Goa em 1568 (Ms. Az. da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa).

8 Mui chai significa, em cantonense, irmãzinha mais nova. É um tratamento carinhoso que oculta a situação de criança chinesa do sexo feminino, adquirida geralmente por compra.

9 Manuscritos da Biblioteca e Arquivo Distrital de Évora. Cód. CXV, fl.81-89.

10 Cargo oficial, correspondente a mandarim do mar.

11 Exigia-se a um homem bom que fosse de sangue limpo, maior de 35 anos, casado em Macau e que tivesse posses para man-ter o decoro na sua família.

12 WICKI, Joseph, Documenta Indica, Roma, 1948.

13 No Tribunal do Magistrado de Mong-Há foi colocada, no Séc. XVIII, uma lápide, réplica da que no século anterior (1613 e depois em 1617), fora colocada no Senado e na qual estavam gravados vários artigos de legislação concernentes tanto a chineses como a portugueses, um dos quais era precisamente a proibição do tráfico das mui chai.

14 Mulheres escravas de diferentes etnias, que não chine-sas.

15 MUNDY, Peter, Travels of Peter Mundy (1608-1667), Londres, Hakluyt Society, 1919, pp. 15-316.

16 Este traje mítico deve ser a saraça-baju, que desde a Índia, passando por Malaca até ao Sudeste da China, as mulheres asiáticas usavam como vestuário. Consistia num pano da cintura para baixo e num corpinho de pano finíssimo a que Linschoten, nos fins do Séc. XV (1593-95), também se refere, ao retratar as mu-lheres dos portugueses de Goa.

17 É de notar aqui as diferenças estabelecidas entre cri-ações e escravas. É possível que fossem também contratadas criadas entre as mulheres euro-asiáticas das classes sociais menos favoreci-das, como sucedia, ainda, em Macau, no Séc. XIX. Era deste estra-to que saíam geralmente as aias (damas de companhia) que acom-panhavam uma rapariga macaense abastada para casa do marido e/ou sogro, quando esta se casava.

18 Pano elefante era o nome local dado ao tecido de algo-dão importado de Goa e cuja marca era um elefante. Comercializava-se pano elefante branco (fino), pano elefante grosso (semelhante a pano cru) e pano elefante listrado.

19 Cf. Diário do macaense Francisco António Pereira da Silveira. Maço 15 do Espólio de José Feliciano Marques Pereira da Secção de Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

20 HAMILTON, Alexander, A new account of the East Indies, London, Foster, 1930.

21 TCHEONG; IAN, op. cit.

22 Mutri — nome dado às missangas; escarrachada — nome local dado ao bordado a lentejoulas.

23 ANDRADE, José Ignácio de, Cartas escritas da Índia e da China, nos anos de 1815 a 1835, Lisboa, 1847.

24 No caso de serem idosas, as parteiras macaenses (luso-asiáticas) recebiam este nome carinhoso, que ainda ouvimos pro-nunciar nos anos 60. Chacha significa senhora idosa em patuá macaense.

25 ANDRADE, op. cit., vol. II.

26 Fei pó — mulher gorda em tradução literal.

27 Ngau — simplificação de ngau sôk (cheiro de bovídeo), nome depreciativo dado, em Macau, aos homens portugueses.

*Doutorada pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa; professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas, Departamento de Antropologia. Membro de várias instituições internacionais, v. g. a "International Association of Antropology".

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