Ficção

A BOQUILHA DE JADE

Carlos Marreiros*

Cartaz publicitário da autoria de H''ong Chi Iêng. In Marcas do passado: cartazes publicitários chineses(1907-1953), Macau, Leal Senado, x1994, p.72.

Ela fora lançada, pelas ondas,

às areias brancas da praia de Cheoc Ván,

naquela noite de tufão içado.

Já madrugada alta,

quando a adamastoresca ventania

se amainava no desenho do horizonte.

Algo parecia desafiar

a capacidade oftalmológica

de um fortuito jogger.

Vagamente vestido de areia,

algo jazia ao pé

de um pequeno amontoado de rochas,

que pela doce pronúncia das suas curvas,

não seria certamente pedra.

A curiosidade fora logo desfeita,

quando o jogger constatou que não era nenhum golfinho."Que chatice,

nunca aparece um golfinho na costa macaense, mesmo que morto"

- teria sido a primeira exclamação silenciosa

do solitário jogger.

Solitário? Já não, porque aquele golfinho morto

que não era, era afinal uma rapariga,

que nem por isso estava morta.

Não se impressionou, o jogger.

"O povo é sereno!" De resto,

nenhum pseudo-atleta

como esse jogger se impressionaria,

como largos milhares dessa nova tipologia psicossocio-lógicaque o mundo viu nascer

- e vê correr, correr só por correr,

para suportar a científica

indústria da indumentária

e de toda a sorte

de apetrechos e acessórios

absolutamente indispensáveis

para a consagração exibicionista

de tal modalidade,

tão urbanamente desejada.

Uma suíte de luxo no melhor hotel da Cidade.

Vistas para o mar.

Decoração sóbria mas bem esgalhada.

Predominância de tonalidades terrosas e ocres.

Penumbra ambiental,

pontualmente derramada de luz indirecta.

Uma jovem senhora

oferecia os seus belos contornos

à carícia de uma poltrona.

Boquilha de jade, vítreo,

imaculadamente verde,

verde solene,

constantemente profanado

pelo vermelho gorduroso

do baton dos seus lábios.

Estes eram indiscritíveis.

E, ostensivamente, eram a tentação.

Não havia cavalheiro

que não pecasse

só em olhar aqueles lábios.

Era a Siu Fong.

Aos dezasseis anos, a sua integridade

fora colocada em hasta pública

para um selecto naipe de cinco candidatos

a colher a orquídea primeira

daquela pobre rapariga.

Um urso de Hong Kong,

um qualquer novo-rico

que ainda ontem

andava com unhas negras

e se perfumava com "Bien-Être",

conseguira o dito concurso.

Pétalas caídas.

Ambiências outonais.

Era a primeira vez.

A primeira noite,

brutal é certo,

mas irreversivelmente iniciática.

O cristal último de Siu Fong

fora quebrado.

O caminho aberto.

A estória, é como sempre,

como todas as outras.

Sem história, de tantas estórias.

As noites eram incontáveis,

a uma velocidade vertigínica.

Rápido, Siu Fong atingiu o estrelado

do anfiteatro noctívago.

Escusado será dizer

que ela era lindíssima

e não-sei-que-e-etcetara,

possuía todos os predicados

para preencher todos os quesitos

do imaginário fantasista

do mais exigente e requintado esteta

ao mais vulgar e inimaginoso tenente

aspirante a executivo.

A sua rectórica corporal

era de tal maneira consistente

que nem a profunda tristeza

que Siu Fong mal conseguia dispersar,

distraía a eloquência do seu encantamento.

Tanto assim, que um abastado chinês

filho de um general

que serviu Sun Yat Seng

de perto,

a avençou definitivamente,

com mensalidade choruda

e luxuoso apartamento

perto das águas da Praia Grande.

E em menos de cinco meses

até lhe propusera casamento,

tal a sedução que ela lhe inspirava.

Siu Fong passaria a ser

a Fok' Tai, ou seja, esposa do senhor Fok

-uma promoção total, portanto:

estatuto marginal

de menina da noite posto de lado,

ou para trás,

porque doravante

era a respeitável Senhora Fok,

utente assídua de ambiências elegantes

e de finas porcelanas: um nome,

um estilo e muitos cifrões,

fazem o respeito

de uma sociedade hipócrita

e ávida de oportunismo.

A sua ascensão social

far-se-ia por uma escadaria

do mais luzidio mármore,

casacos de pele,

pedras preciosas

néctares, conhaques franceses

e todos aqueles tiques habituais

nesse tipo de enquadramento.

Talvez até a felicidade

pela constituição de uma família.

Siu Fong ainda não respondera

ao seu great pretender, cantava-se.

Naquela noite,

voltou mais cedo que o costume

para a sua suíte

com varandas para o mar.

Despiu-se lentamente

e pela primeira vez se demorou

olhando-se ao espelho.

Pela primeira vez

concordou com os milhares de homens e mulheres

que lhe diziam que era bela,

muito bela.

Bela demais para os homens

saberem só nela apreciar o corpo.

Até parecia que Siu Fong não precisava de mais nada,

bastando-lhe, tão-só, ser monumento de carne,

possuir aquele torso de mármore,

aquela cinturinha triangulando,

dos seios firmes

desenhados a compasso,

dois ínclitos mamilos rosáceos,

umas ancas e um baixo-ventre redondinhos

a prenunciarem um par

de pernas estilizadas,

canonicamente bem desenhadas.

E as suas níveas mãos

de gestos de orquídea?

A sua boca-de-fruta-todo-o-ano

a erotizar um lindíssimo rosto

pálido e estilizado,

em forma de kua 'tchi.

Uma boca de pecado.

De doce pecado,

a merecer o melhor

do reino dos céus.

Banhou-se em espumas,

com essências de chá de cerejas.

As suas mãos acariciaram

peles infinitas

suas rotas de seda.

Soltou os cabelos

vastos e densos

como o bambual de Shaolin.

Vestiu o seu melhor cheong sám,

de verde esmeralda

a lhe esculpir a delicadeza curvilínea.

Um dragão de lentejoulas cintilantes

- mil estrelas mitológicas -

enquadrava-lhe os seios

quais pérolas cósmicas

a servir de brincos

ao satisfeito e solene dragão.

Vermelho imperial

nos suculentos lábios

e nas translúcidas unhas.

Saltos de seda igualmente esmeraldas.

Estava pronta.

Olhou uma fotografia

amarelecida e enxovalhada

que trazia sempre consigo.

Era a última e única

recordação que tinha da sua mãe

registada na terra-china

quando Siu Fong

tinha apenas cinco jades

e duas tranças pretas.

Nunca conhecera o pai,

alguém da soldadesca revolucionária

protagonista da violação brutal de sua mãe,

nos cenários da revolução cultural,

porque era a filha mais nova

de uma aristocracia de letrados

e sobrinha de um dos maiores poetas do modernismo chinês,

das mil flores do movimento de maio.

Num segundo,

Siu Fong reviu tudo isso,

mas nem uma única lágrima

se lhe apoderou dos seus vítreos olhos

que a frieza da vida

lhe calejou a capacidade.

Deixou cair, repentinamente,

a sua arcossanta boquilha de jade,

que se desfez em múltiplos pedacinhos

no robusto mármore do pavimento.

O destino estava traçado.

Solenemente, dirigiu-se à varanda.

Olhou, serena, a baía da Praia Grande,

ainda sem luzesno azul-anil daquela madrugada.

Esboçou um sorriso

que pela primeira vez

parecia de plena felicidade.

Simultaneamente,

deixara derramar-se,

daquela varanda,

como música

como água

saída voluptuosa

de uma cornucópia.

E com as primeiras ondas

se foi, nas cristas clepsídricas,

brancas de desejos imensos

nos naperons do madre-mar

a lhe servir de mortalha

num cenário botticelliano,

porém, no inverso,

porque não nasce, inasce.

Naquele dia cinzento

os vespertinos publicaram

a fotografia de uma bela chinesa afogada,

ao lado do anúncio

da missa do sétimo dia

em sufrágio do falecido

jogger de Cheoc Ván

assaltado por um enfarte do miocárdio.

Durante anos, contavam

os pescadores que madrugavam

ter visto uma bela jovem

passeando-se, serena, nas águas

do estuário das Pérolas.

Para eles era a ressurreição

da deusa Kun Iam.

Par o bom do Comendador Fok

nem alucinação era

confinado que estava

aos vazios de sua cela psiquiátrica

para o resto do seu calendário existencial.

A sua única referência nostálgica

é um caco

da boquilha de jade

preso a um robusto fio de ouro

que ele traz no peito,

caco esse roubado

à Divisão Criminal

da Polícia Judiciária,

por suborno a um seu agente.

Cartaz publicitário da autoria de Kâm Siu Fóng.

In Marcas do passado: cartazes publicitários chineses(1907-1953), Macau, Leal Senado, 1994, p.100.

*Arquitecto, licenciado pela ESBAL (Lisboa) com mestrado na Alemanha. Investigador de temas da Antropologia macaense, Arquitectura e Urbanismo, tendo publicado alguns livros e dezenas de ensaios e artigos.

desde a p. 197
até a p.