Cartaz publicitário da autoria de H''ong Chi Iêng.
In Marcas do passado: cartazes publicitários chineses(1907-1953), Macau, Leal Senado, x1994, p.72.
Ela fora lançada, pelas ondas,
às areias brancas da praia de Cheoc Ván,
naquela noite de tufão içado.
Já madrugada alta,
quando a adamastoresca ventania
se amainava no desenho do horizonte.
Algo parecia desafiar
a capacidade oftalmológica
de um fortuito jogger.
Vagamente vestido de areia,
algo jazia ao pé
de um pequeno amontoado de rochas,
que pela doce pronúncia das suas curvas,
não seria certamente pedra.
A curiosidade fora logo desfeita,
quando o jogger constatou que não era nenhum golfinho."Que chatice,
nunca aparece um golfinho na costa macaense, mesmo que morto"
- teria sido a primeira exclamação silenciosa
do solitário jogger.
Solitário? Já não, porque aquele golfinho morto
que não era, era afinal uma rapariga,
que nem por isso estava morta.
Não se impressionou, o jogger.
"O povo é sereno!" De resto,
nenhum pseudo-atleta
como esse jogger se impressionaria,
como largos milhares dessa nova tipologia psicossocio-lógicaque o mundo viu nascer
- e vê correr, correr só por correr,
para suportar a científica
indústria da indumentária
e de toda a sorte
de apetrechos e acessórios
absolutamente indispensáveis
para a consagração exibicionista
de tal modalidade,
tão urbanamente desejada.
Uma suíte de luxo no melhor hotel da Cidade.
Vistas para o mar.
Decoração sóbria mas bem esgalhada.
Predominância de tonalidades terrosas e ocres.
Penumbra ambiental,
pontualmente derramada de luz indirecta.
Uma jovem senhora
oferecia os seus belos contornos
à carícia de uma poltrona.
Boquilha de jade, vítreo,
imaculadamente verde,
verde solene,
constantemente profanado
pelo vermelho gorduroso
do baton dos seus lábios.
Estes eram indiscritíveis.
E, ostensivamente, eram a tentação.
Não havia cavalheiro
que não pecasse
só em olhar aqueles lábios.
Era a Siu Fong.
Aos dezasseis anos, a sua integridade
fora colocada em hasta pública
para um selecto naipe de cinco candidatos
a colher a orquídea primeira
daquela pobre rapariga.
Um urso de Hong Kong,
um qualquer novo-rico
que ainda ontem
andava com unhas negras
e se perfumava com "Bien-Être",
conseguira o dito concurso.
Pétalas caídas.
Ambiências outonais.
Era a primeira vez.
A primeira noite,
brutal é certo,
mas irreversivelmente iniciática.
O cristal último de Siu Fong
fora quebrado.
O caminho aberto.
A estória, é como sempre,
como todas as outras.
Sem história, de tantas estórias.
As noites eram incontáveis,
a uma velocidade vertigínica.
Rápido, Siu Fong atingiu o estrelado
do anfiteatro noctívago.
Escusado será dizer
que ela era lindíssima
e não-sei-que-e-etcetara,
possuía todos os predicados
para preencher todos os quesitos
do imaginário fantasista
do mais exigente e requintado esteta
ao mais vulgar e inimaginoso tenente
aspirante a executivo.
A sua rectórica corporal
era de tal maneira consistente
que nem a profunda tristeza
que Siu Fong mal conseguia dispersar,
distraía a eloquência do seu encantamento.
Tanto assim, que um abastado chinês
filho de um general
que serviu Sun Yat Seng
de perto,
a avençou definitivamente,
com mensalidade choruda
e luxuoso apartamento
perto das águas da Praia Grande.
E em menos de cinco meses
até lhe propusera casamento,
tal a sedução que ela lhe inspirava.
Siu Fong passaria a ser
a Fok' Tai, ou seja, esposa do senhor Fok
-uma promoção total, portanto:
estatuto marginal
de menina da noite posto de lado,
ou para trás,
porque doravante
era a respeitável Senhora Fok,
utente assídua de ambiências elegantes
e de finas porcelanas: um nome,
um estilo e muitos cifrões,
fazem o respeito
de uma sociedade hipócrita
e ávida de oportunismo.
A sua ascensão social
far-se-ia por uma escadaria
do mais luzidio mármore,
casacos de pele,
pedras preciosas
néctares, conhaques franceses
e todos aqueles tiques habituais
nesse tipo de enquadramento.
Talvez até a felicidade
pela constituição de uma família.
Siu Fong ainda não respondera
ao seu great pretender, cantava-se.
Naquela noite,
voltou mais cedo que o costume
para a sua suíte
com varandas para o mar.
Despiu-se lentamente
e pela primeira vez se demorou
olhando-se ao espelho.
Pela primeira vez
concordou com os milhares de homens e mulheres
que lhe diziam que era bela,
muito bela.
Bela demais para os homens
saberem só nela apreciar o corpo.
Até parecia que Siu Fong não precisava de mais nada,
bastando-lhe, tão-só, ser monumento de carne,
possuir aquele torso de mármore,
aquela cinturinha triangulando,
dos seios firmes
desenhados a compasso,
dois ínclitos mamilos rosáceos,
umas ancas e um baixo-ventre redondinhos
a prenunciarem um par
de pernas estilizadas,
canonicamente bem desenhadas.
E as suas níveas mãos
de gestos de orquídea?
A sua boca-de-fruta-todo-o-ano
a erotizar um lindíssimo rosto
pálido e estilizado,
em forma de kua 'tchi.
Uma boca de pecado.
De doce pecado,
a merecer o melhor
do reino dos céus.
Banhou-se em espumas,
com essências de chá de cerejas.
As suas mãos acariciaram
peles infinitas
suas rotas de seda.
Soltou os cabelos
vastos e densos
como o bambual de Shaolin.
Vestiu o seu melhor cheong sám,
de verde esmeralda
a lhe esculpir a delicadeza curvilínea.
Um dragão de lentejoulas cintilantes
- mil estrelas mitológicas -
enquadrava-lhe os seios
quais pérolas cósmicas
a servir de brincos
ao satisfeito e solene dragão.
Vermelho imperial
nos suculentos lábios
e nas translúcidas unhas.
Saltos de seda igualmente esmeraldas.
Estava pronta.
Olhou uma fotografia
amarelecida e enxovalhada
que trazia sempre consigo.
Era a última e única
recordação que tinha da sua mãe
registada na terra-china
quando Siu Fong
tinha apenas cinco jades
e duas tranças pretas.
Nunca conhecera o pai,
alguém da soldadesca revolucionária
protagonista da violação brutal de sua mãe,
nos cenários da revolução cultural,
porque era a filha mais nova
de uma aristocracia de letrados
e sobrinha de um dos maiores poetas do modernismo chinês,
das mil flores do movimento de maio.
Num segundo,
Siu Fong reviu tudo isso,
mas nem uma única lágrima
se lhe apoderou dos seus vítreos olhos
que a frieza da vida
lhe calejou a capacidade.
Deixou cair, repentinamente,
a sua arcossanta boquilha de jade,
que se desfez em múltiplos pedacinhos
no robusto mármore do pavimento.
O destino estava traçado.
Solenemente, dirigiu-se à varanda.
Olhou, serena, a baía da Praia Grande,
ainda sem luzesno azul-anil daquela madrugada.
Esboçou um sorriso
que pela primeira vez
parecia de plena felicidade.
Simultaneamente,
deixara derramar-se,
daquela varanda,
como música
como água
saída voluptuosa
de uma cornucópia.
E com as primeiras ondas
se foi, nas cristas clepsídricas,
brancas de desejos imensos
nos naperons do madre-mar
a lhe servir de mortalha
num cenário botticelliano,
porém, no inverso,
porque não nasce, inasce.
Naquele dia cinzento
os vespertinos publicaram
a fotografia de uma bela chinesa afogada,
ao lado do anúncio
da missa do sétimo dia
em sufrágio do falecido
jogger de Cheoc Ván
assaltado por um enfarte do miocárdio.
Durante anos, contavam
os pescadores que madrugavam
ter visto uma bela jovem
passeando-se, serena, nas águas
do estuário das Pérolas.
Para eles era a ressurreição
da deusa Kun Iam.
Par o bom do Comendador Fok
nem alucinação era
confinado que estava
aos vazios de sua cela psiquiátrica
para o resto do seu calendário existencial.
A sua única referência nostálgica
é um caco
da boquilha de jade
preso a um robusto fio de ouro
que ele traz no peito,
caco esse roubado
à Divisão Criminal
da Polícia Judiciária,
por suborno a um seu agente.

Cartaz publicitário da autoria de Kâm Siu Fóng.
In Marcas do passado: cartazes publicitários chineses(1907-1953), Macau, Leal Senado, 1994, p.100.
*Arquitecto, licenciado pela ESBAL (Lisboa) com mestrado na Alemanha. Investigador de temas da Antropologia macaense, Arquitectura e Urbanismo, tendo publicado alguns livros e dezenas de ensaios e artigos.
desde a p. 197
até a p.