Ensaios

D. JULIANA DIAS DA COSTA UMA CRISTÃ NA CORTE MOGUL·** SÉCULO XVIII

Beatriz Basto da Silva*

D. Juliana Dias da Costa-uma cristã na Corte Mogul-século XVIII. In VALENTIN, Francois, Oud en Nieuv Oost-Indien, Amsterdam, 1726, vol.4, parte 2, p.296 (original atribuído a Kettler. embaixador holandês, em 1712-1713, à corte de Baadur-Xá).

PREÂMBULO

"1711 — A 10 de Dezembro um grande aconte-cimento teve lugar em Sarai Khan Khanan, a 3 km de Lahore. Um estrangeiro com um corpo de soldados e al-guns servidores acampou ali, para grande admiração dos aldeões e camponeses das redondezas.

No dia seguinte, outro acontecimento invulgar. Das bandas de Lahore chegou ao lugar e foi prestar ho-menagem ao nobre chegado no dia anterior um outro grupo colorido: era Monsieur Martin, o físico francês do Imperador Mogul Bahadur Shah (em trânsito ele próprio nas imediações de Lahore, depois da sua campanha con-tra os Sikhs) e trinta cristãos de diversas nacionalidades.

O nobre estrangeiro que tinham vindo cumpri-mentar era Johan Josua Ketelaar, encarregado da Com-panhia Holandesa das Índias Orientais em Surrate, e en-viado da mesma Companhia, para obter concessões e fa-cilidades, junto do Imperador Mogul.

Entre os cristãos que acompanhavam o médico francês até Sarai Khan Khanan havia um criado que trouxe ao embaixador holandês um presente de fruta; pêras, maçãs, romãs, etc., que lhe fizeram lembrar a sua terra.

Esses frutos foram-lhe mandados por uma senho-ra portuguesa chamada Dona Juliana Dias da Costa, que ocupava uma posição de confiança no harém do Impe-rador e cuja autoridade na Corte era extraordinária.

No dia 14 do mesmo mês, o embaixador encon-trou-se com Juliana."

Acabamos de traduzir e transcrever parte de um texto do Rev. H. Heras, S. J., com o qual pretendemos criar a necessária expectativa sobre uma mulher — uma dama portuguesa — que deixou, no Século XVIII, um rasto indelével na História de um Reino, algures, a norte da Índia, famoso pela cultura que então perpassava naque-la Corte, e que deixou ao mundo de hoje uma das mais fa-mosas maravilhas que se pode contemplar: o Taj Mahal.

GEOGRAFIA E ENCONTRO

Estamos no Século XVIII, ao Norte da Península Industânica, na região de rios que se entrecruzam e de povos que se encontram. Desde o Séc. XVI que a ban-deira de Portugal circulava já nos mares da Índia, da Chi-na e do Japão. Justamente o acesso ao Mar Arábico, ba- nhando o Golfo de Cambaia, de Bengela e todo o Sul da costa comercial do subcontinente indiano até ao Golfo de Oman, era percorrido, com o à-vontade que Afonso de Albuquerque inaugurou, pela navegação portuguesa. Daí resultaram pequenos estabelecimentos de gente vá-ria de raiz lusíada, entre marinheiros, comerciantes, lei-gos e religiosos, com os fins comuns naquela época; co-nhecimento, proselitismo, aventura e comércio, enuncia-dos altemadamente, conforme a prioridade dos seus agen-tes. A proximidade de Goa — a Lisboa do Oriente — ser-via a todos como referência e protecção tutelar, em caso de necessidade. O vice-rei da Índia gozava de superior prestígio e era conhecido como representante do grande povo português, desde Cochim a Bombaim, de Surrate a Jaipur, Agra, Delhi e Lahore.

Todos os povos em movimento, os recém-chega-dos nómadas dos Himalaias, do Nepal e do Tibete dese-javam aliança com o forte estrangeiro que se tinha esta-belecido em Goa e nos mares que dali levavam a todo o mundo. A fama de Portugal era aureolada pela pompa conhecida da corte vice-real e pela imaginação, alimen-tada por narrativas fantásticas em que o herói era infali-velmente o bravo português.

Nessa ordem de ideias se compreende a presença dos famosos — os portugueses foram os primeiros euro-peus, no Tibete e no Vale do Ganges,1 acedendo ao pedi-do de ajuda do rei Humayun (1538), de Bengala. Dessa movimentação resultou o estabelecimento em Gola (celeiro), futura feitoria de Hugli, onde irá ser comum a passagem e estadia de gente lusa.

DE BABER A AKBAR TEÍSMO ECLÉCTICO E TOLERÂNCIA A GRANDE ABERTURA AO OCIDENTE

Ora era uma vez um tal Baber, descendente de Tamerlão, que também tivera Gengis-Kan como ante-passado e que, projectando-se do Turquestão Russo à frente de soldados turcos e do Irão, sem demora nem de-tença, avança pelo Afeganistão, invade o Norte da Índia e toma Delhi.

Isto passa-se em 1526 e abre caminho a que, corren-do o ano de 1538, tenha lugar o já mencionado encontro dos portugueses com Humayun, filho de Baber e pai de Akbar.

A feitoria de Hugli, onde passámos a deter situação de favor, veio a ocupar o lugar comercial que Satigão ocupou por 15 séculos, o que prova a sua importância estratégica.

Em 1556, sobe ao poder o neto de Baber e filho de Humayun, Akbar, senhor do Tibete e planícies para sul. Ak-bar, culto e profundamente religioso por natureza, mas hesi-tante até ao leito de morte entre o islamismo e o cristianismo, vai ter um percurso de maior interesse para o nosso estudo.

Este verdadeiro imperador seguiu por uma via que poderíamos chamar, com o rev. Dr. B. Videira Pires, S. J., de "teísmo ecléctico", e é ao abrigo dessa confissão muito sua que Akbar entra em contacto com a missão jesuítica de Goa. De acordo com esse gesto, que teve fruto em 1579, e na sequência do mesmo, ocorrem várias embaixadas cada vez mais entusiásticas,2 ao longo deste reinado e seguintes, sempre solicitadas — é bom subli-nhar — pelos monarcas de Moghol ou Mogor.3

Todas elas estão narradas em cartas e relações, enfim, documentação de que a Companhia de Jesus dei-xou sempre precioso rasto.

Com o tempo e a permanência de enviados de par-te a parte, as relações foram-se estreitando. Como sabe-mos, os Jesuítas não perdiam ocasião de evangelizar, sa-tisfazendo que fosse apenas a avidez científica e literária dos interlocutores. Para isso mesmo se haviam preparado.

Na Dinastia Mogor houve sempre, a partir de Ak-bar, um ou mais príncipes de curiosidade insaciável quer no domínio religioso, quer no profano, que abriram aos missionários as portas do palácio e a intimidade das suas almas em permanente insatisfação e busca.4

DE AKBAR A AURENGZEBO BREVE CRONOLOGIA

Dois Jesuítas, Rudolfo Acquaviva e Francisco Henriques, par-ticipando num debate no ibadat-khana, cerca de 1605.

Akbar assumiu a govemação em 1560. Tomou-se poderoso e famoso quando alargou o centro do Afeganis-tão até Orissa e Sinde, criando fronteiras que lhe permiti-ram ser reconhecido como fundador do Império Mogol. E foi o primeiro imperador mogol com quem o português Estado da Índia teve relações directas, (porque começou por nos cobiçar Damão e Baçaim, sem sucesso, seguindo--se um tratado "com satisfação comum"). Daí em diante foi o diálogo amigável por meio de armadas e exércitos, mercadores e enviados, especialmente missionários.

Akbar reinou de 1560 a 1605 e neste longo perío-do salienta-se, logo em 1578, um pedido seu para que dois padres jesuítas de Goa se desloquem com livros sa-grados à corte Mogol para o instruir sobre a lei de Cristo.5

São dele as palavras dirigidas ao Vice-rei da Ín-dia D. Luís de Athaíde, ao Arcebispo Primaz e ao Padre Provincial aos Jesuítas, Rui Vicante:... "saibão que sou seu grande amigo (...).

Eu mando lá a Ebadolà, meu embaixador, e a Do-mingos Pires [mercador português já instalado na corte mogol], a pedir bons padres letrados, e tragão os padres consigo os livros principais da lei e o Evangelho, para saber a lei e perfeição della; porque desejo ter notícia da lei de Jesus Nazareno (...) e saibam que receberei com todas as honras possíveis os padres que vierem (...) e não tenhão receio algum de vir, porque eu os tomo à mi-nha conta." Em boa hora lhe foram enviados os P.es Rodolfo Aquaviva e Francisco Henriques, este conhe-cendo a língua persa, ambos da Companhia de Jesus.

Em resultado, sabemos que cresce em Akbar o respeito pela fé cristã, de modo a fazer reverência "à cruz e imagens sagradas, especialmente às de Cristo senhor nosso e de sua santíssima Mãe; e o mesmo fazião muitos grandes da sua côrte".

A corte, no tempo de Akbar, passou de Delhi pa-ra Agra — a magnífica Akbarabade, na antiga zona dos Patanes — tendo-se preparado como capital futura uma outra cidade cheia de novos palácios, em Fatepur-Sikri, onde foi concebido o tão desejado príncipe Salim, (hoje cidade destruída, em Pompeia da Índia!).

Interessando-nos perceber a sequência desta bri-lhante dinastia que teve Akbar como cabeça, passamos a fornecer uma breve genealogia — cronologia ascenden-te e descendente, perdoando-se-nos a rápida passagem sobre os curiosos reinados dos seus sucessores, pela an-siedade de chegar à época da grande embaixadora por-tuguesa naquela corte, D. Juliana Dias da Costa.

Babur(+1530)6

Hummaium (+1556)

Akbar (c. c. Mariam uz-zamani) (1542-1605)

1573 — Primeiro encontro de Akbar com os por-tugueses

1579 — (XI-17) — A primeira Missão, dirigida pe-lo Padre Aquaviva, S. J., parte de Goa para a corte mogor.

1580 — (II-27 ou 28) — A Missão chega a Fate-pur-Sikri.

1581 — (II-8) — Akbar inicia a expedição contra Cabul, fazendo-se acompanhar do P.e Monserrate, S. J.

1583 — (Fevereiro) — O P.e Aquaviva sai de Fatepur.

(VII-27) — O P.e Rodolfo Aquaviva é martirizado perto de Goa.

1590 — Akbar pede de novo uma Missão.

1591 — A segunda Missão chega a Lahore e re-gressa à Índia Portuguesa pouco depois.

1594 — (XII-3) — Parte de Goa a terceira Missão, sob direcção do P.e Jerónimo Xavier, S. J., chegando a Lahore só a 5 de Maio de 1595.

1597 — (V-15 a XI-13) — O P.e Xavier, S. J., e o Irmão Bento de Góis acompanham Akbar a Cachemira.

1598 — Nos fins deste ano o P.e Xavier, S. J., vai a Agra com Akbar.

1599 — Julho — O P.e Xavier, S. J., acompanha Akbar ao Decão.

1600 — (III-5) — Morte do P.e Monserrate, S. J., perto de Goa.

1601 — Maio — O P.e Xavier, S. J., regressa a Agra com Akbar.

1602—O P.e Xavier, S. J., conclui a Vida de Cris-to em persa.

1603 — (II-24) — O Irmão Bento de Góis sai do Lahore "Em demanda do Cataio".7

1650 — (X-17) — Morte de Akbar.

Jaanguir (Salim) c. c. Nur Jaan(+1646). (1569-1627).

Xá Jaan c. c. Mumtaz Mahal (+ 1619 — célebre túmulo de Agra — Taj-Mahal) (1592-1658).

1657 — Nasce Juliana Dias da Costa.

Extraído de: PIRES, Benjamim Videira, Portugal no tecto do mundo, Macau, ICM, 1988.

D. JULIANA DIAS DA COSTA (1657-1734)

Reina em Agra o Xá Jaan e corre o ano de 1657 quando Agostinho Dias da Costa, português natural de Cochim e levado cativo de Hugli para Agra em 1633, vê nascer uma filha a quem provavelmente deixa como he-rança dois dotes: grande beleza e uma enorme inclinação para a medicina. Do primeiro dom temos notícia clara. Desenhada por Kettler (ou Ketelaar, Johan Josua), em-baixador holandês à corte Mogor em 1712-1713, perce-be-se-lhe, para além da perfeição dos traços, a impo-nência de grande dama e o fino trato.8

Quanto à segunda herança, não se sabe ao certo se lhe vem do pai se do cirurgião com quem veio a casar mas, muito verosivelmente, de um ambiente ligado à arte de curar, uma espécie de "Escola Médica" daqueles tem-pos onde pode ter crescido por mão do pai e conhecido o noivo. Que essa profissão a elevou muito acima do que seria de esperar da filha de um ex-cativo, ele próprio en-tretanto liberto e considerado na corte, isso não há dúvi-da. De facto encontramos Agostinho Dias da Costa como assistente clínico do príncipe Muassam Baadur Xá (14 anos mais velho do que Juliana) e nesse estatuto sabe- mos que morreu, em Golconda, em princípios de 1688. Quanto à mãe da nossa biografada foi escrava de uma begun de Agra e obteve alforria quando morreu a ama, cremos que a tempo de poder acompanhar a filha na sua importante missão na corte, naturalmente servindo-se da prática clínica adquirida como assistente do marido.

D. Juliana Dias da Costa escapa-se ao traçado do seu quotidiano para nos deixar, pelo contrário, um vigo-roso rasto na esfera política e diplomática. Casou em Goa9 ou Delhi e podemos suspeitar de que esta união, que saía um pouco da esfera vulgar, deve ter merecido a bênção dos Jesuítas; em 1727 tinha 7 netos "entre ma-chos e fêmeas", designação ainda hoje corrente na comu-nidade de luso-descendentes de Malaca. Faleceu aos 78 anos (1734). Foi contemporânea, assim, de Xá Jaan (1592-1658), o viúvo inconsolável da bela Mumtaz -Mahal, de Aurengzebo (1618-1707), de Baadur Xá (1707-1712), de Jaandar Xá (1712), de Farrukhsiyar (1712-1719) e de Maomé Xá (1719-1748).

Confirmando o pressentimento de que casara em Goa sob os auspícios e bênçãos dos Jesuítas temos o fac-to de D. Juliana representar uma portuguesa de raras quali-dades humanas, sabendo falar a língua persa, desde crian-ça, o latim, mesmo que fosse apenas o essencial da medi-cina e talvez não só a esse nível, visto ser caprichosa e cul-ta, capaz de receber em nome dos soberanos mogóis as em-baixadas que lhes chegavam do ocidente (cf. nosso Pre-âmbulo — recepção ao encarregado da Companhia Ho-landesa das Índias, em 1711). Saberia também francês, vis-to ter contactos profissionais e sociais com o físico francês do Imperador, Monsieur Martin (cf. o mesmo Preâmbulo). E naturalmente que nunca abdicou do domínio da língua lusa, pelo menos falada. Esta reticência parece-nos poder decorrer de que a nossa dama ditava a correspondência em persa. Não devia ter escriba português e o domínio da es-crita, embora a usasse minimamente, não devia ser muito familiar em nenhuma língua. Não esqueçamos a época e o ensino oral mais acessível como método de acção mis -sionária. Isso mesmo se depreende na correspondência que mantinha com as autoridades portuguesas de Goa e indirectamente com o próprio Rei de Portugal.10

É ainda ao casamento em Goa ou Delhi, o local não influi, que voltamos para imaginar a sua maneira de ser prática, de líder nato, o perfil enérgico que teria dado nas vistas a homens como os responsáveis jesuítas que procuravam para estabelecimento a manutenção dos seus empreendimentos missionários11 assim como os vice-reis. Tiveram então oportunidade de ver nela, uma vez regres--sada à corte mogol, onde era tão bem aceite, o elo de liga-ção para fins superiores do estado laico e religioso, sem-pre necessitados de amparo, diríamos hoje "consular"!

D. Juliana, dotada de forte personalidade, foi sempre um esteio de convicções seguras ao lado dos re-voltos acontecimentos que fizeram suceder os cinco im-peradores seus contemporâneos. O respeito que mereceu a cada um deles a sua presença e conselho deixa adivi-nhar nesta dama portuguesa a trave mestra de grande parte do funcionamento da corte.

Ciente dessa vantagem, D. Juliana não parece sen-sível a benesses próprias, conquanto a saibamos rica, pro-curando sim servir-se da consideração que detinha para interceder pelos negócios do estado português e sobretu-do pela fé. A pena rigorosa dos jesuítas não hesita em te-cer-lhe encómios e agradecimentos pelo favor que lhes grangeou esta dama em pleno "coração" do grão-mogol.

Quanto a el-rei de Portugal, apoiando-se nessas informações, confia a esta Mulher espantosa negócios longínquos e interesses que habitualmente, sobretudo naquela época, andavam mais na mão de validos e gen-tis-homens do que de damas.

D. João V pretendia alimentar e ampliar as boas relações com tão notáveis vizinhos da Índia Portuguesa. Assim o refere na Carta de 3 de Janeiro de 1709 ao Vice-Rei D. Rodrigo da Costa, mencionando que "por este meio não só se adiantarão as negociações que possamos ter com este monarca [refere-se a Baadur Xá, de Mogor, a quem saudáramos recentemente pela subida ao trono], como também é conveniente termo-lo propício para tudo o que tocar a esse Estado por ser o mais poderoso que tem a Ásia, e confinarem os seus domínios tanto com a Índia".

Na carta de 3 de Setembro de 1710 volta a reco-mendar-se ao Vice-Rei que continue as negociações com o Mogol, "com aquela prudência e cuidado que sua Ma-jestade esperava de D. Rodrigo da Costa".

E o agente local dessas negociações era a nossa D. Juliana, uma mulher de estado-médica, uma médica-diplo-mata, uma conselheira-humanista, assim ousamos chamá-la, já que nada a ela parece alheio ou dela desconhecido.

O Império Mogol, a partir da morte de Aurengze-bo (1707) entrou em anarquia e decomposição. Os três fi- lhos herdados lutaram entre si e só restou o tal Baadur Xá que o Vice-Rei da Índia saudou quando foi aclamado e com quem D. Juliana se dava muito de perto, quase fraternalmen-te, visto terem idades próximas e terem crescido juntos. É exactamente ao lado desse Imperador Mogol que D. Julia-na aparece como deus ex-maquina, multiplicando a sua ac-ção na corte e, se assim nos podemos exprimir, no seu "mi-nistério dos negócios estrangeiros". Servindo o meio onde vive e onde goza da situação de "valida de el-rei", é tam-bém o pólo de contacto entre os negociantes, diplomatas e missionários cristãos espalhados pelo Império Mogol e os interesses ocidentais, especialmente portugueses.

A grande dama conta neste reinado, em que real-mente se distingue de forma particular, com o rendimen-to de quatro aldeias, uma casa, um vencimento de mil ru-pias por mês e títulos honoríficos. Acompanha-a um séquito de seis mil pessoas e dois elefantes transportan-do duas bandeiras vermelhas com cruzes brancas.12

Apesar de tudo isto e da permanência por tantos anos na pompa dos palácios orientais, no meio de mou-ros e de contradições religiosas, manteve sempre fama de virtuosíssima para com os pobres, boa cristã, fiel à sua fé.

Sem dúvida que para isso muito contribuiu o convívio diário com a Companhia de Jesus, a quem tam-bém muito ajudava com a sua influência.

O Governo da Índia dizia-se-lhe devedor de "par-ticulares finezas"13 e nosso rei tinha-a na conta de sua fiel Procuradora.14 Procuradora do rei de Portugal era também a designação que lhe aplicavam os ocidentais que chegavam às planícies do Ganges.

D. João V conta com acção dissuasora de D. Ju-liana, quando se esboça a ameaça do rei mogol lançar uma armada nos mares circundantes, o que seria certa-mente prejudicial para a Índia Portuguesa (1710), em ter-mos imediatos e nas relações futuras.

D. Juliana é intermediária e intérprete de corres-pondência, dulcificando agravos, sem diminuir a digni-dade e verdade das missivas do Rei de Portugal e sem trair o Senhor da Corte onde é tão bem acolhida.

Em resultado dessa capacidade de harmonização, el-rei Mogol desiste de fazer o avanço marítimo que tinha em mente e, como prova de não agressão, envia mesmo na fragata Nossa Senhora da Boa Viagem, no ano de 1710, um sagoate (presente real)15 a D. João V.

O Magnânimo igualmente presenteou o seu ho mónimo de Mogor, tendo a recepção da oferta sido noti-ciada em carta oficial de D. Juliana para o monarca por-tuguês, carta essa a que junta uma nota particular "em língua portugueza".

É com perfeita consciência do valor de D. Juliana que D. João V se lhe refere, em carta de 31 de Agosto de 1711 ao Vice-Rei da Índia como "mulher portugueza e ca-tholica que assiste no palácio do Grão-Mogor, de quem o mesmo Rey faz grande caso", pedindo ao seu interlocutor na Índia que mande agradecer a tal dama o "amor e zelo, com que se há nos particulares desse Estado". D. Rodrigo da Costa não hesita em fazê-lo, reforçando na menção a D. Juliana em carta de 25 de Outubro de 1712, o "grande affec-to com que esta molher patrocina todos os particulares in-teresses da nação portugueza", fazendo-a "credora às mercês e congratulações da real grandeza de [Sua] Magestade".

Quanto à superior acção política de D. Juliana, cremos ter dado uma amostra significativa.

O mesmo podemos avançar no campo da sua ge-nerosidade para com os desvalidos, na colaboração que deu sempre à acção missionária. Foi-lhe concedida a mercê de poder comprar, a 2 de Junho de 1713, a aldeia Manory, da jurisdição portuguesa de Baçaim, constituin-do para o efeito como seu procurador o Padre Henrique Pereira da Companhia de Jesus.

Os seus bens materiais puderam de algum modo assegurar-lhe independência e a quantos dela se chegavam, quando se verificou a sangrenta crise de sucessão do Im-pério Mogol, então senhor de todo o Industão, paredes meias com o Estado da Índia Portuguesa. Ainda atacaram, por mãos dos "arabios" de Surrate, um navio português que chegava de Macau, e D. Juliana chegou a conhecer a prisão por dois meses, além de ver os seus bens confisca-dos. Finalmente e após o termo das lutas fratricidas, a vali-da de tantos príncipes é de novo chamada à corte, sendo-lhe restituída a graça do imperador e toda a propriedade que lhe fora alienada, retomando a independência de ma-nobra. O Vice-Rei de Goa autorizou-a a comprar mais uma aldeia a Norte, mandando-lhe passar o respectivo alvará (1714).

Nesta nova fase, e sem deixar de interceder por Goa junto da corte Mogor, D. Juliana tem a seu lado um genro português, D. Diogo Mendes; enfim alguém que nos parece capaz de garantir a continuidade da sua obra, já que é o próprio Vice-Rei de Goa que se mostra pron-to a conceder a este jovem a "mercê do hábito de Cristo".

A ambos são entregues os negócios dos direitos portugueses de Surrate e das Terras de Pondá, em que é in-termediário com a corte de Goa o Padre Joseph da Silva, S. J., D. Juliana, sempre "credora de honras" vê isentada a sua aldeia Manory de toda a pensão e tributo, privilégio nunca antes concedido e em sua roda a família, crescendo, cria uma espécie de matriarcado, singular em tais terras. Por atenção a D. Juliana chovem mercês do Estado da Ín-dia, ou por sua iniciativa junto da própria corte, sobre a ne-ta casada e o neto Joseph Borges da Costa (Hábito de Cris-to em 1717) e restante família que a ela se junta. D. Julia-na mantém até ao termo dos seus dias a preocupação de criar caminhos propícios, na corte Mogor, aos interesses portugueses, não se furtando a gastar grande fazenda pró-pria em "brincos e sagoates".16 Do mesmo jeito o Rei de Portugal encomenda ao Capitão-Geral de Goa que con-serve sempre a "boa correspondência" com a ilustre dama.

Em 1715-16 ainda ela obteve as patentes do dis-trito, fortaleza e terras de Pondá para a Coroa Portugue-sa,17 algumas benesses, a nível de direitos alfandegários, e de alianças com generais e nababos mogores encar--regues de terras fronteiras com as nossas, fazendo ainda oferta pessoal da aldeia de Marquaim ao Estado da Índia.

Juliana Dias da Costa retira-se da cena política em 1719, no final do reinado de Farrukhiyar. Fecha os olhos realizada (1743), deixando um rasto invulgar em qualquer época da História de qualquer Povo.

A concluir e atendendo a que um artigo que se es-creve é um alerta, uma partilha de caminhos quando, con-dicionado ao espaço, não pode ser um ponto de chegada, por ora nos quedamos, esperando ter trazido a este fórum de divulgação o respeito e admiração por uma figura femi-nina da expansão portuguesa, tão notável que ainda hoje, estamos certos, se destacaria do procedimento comum.

BIBLIOGRAFIA

BIKER, Collecção de tratados..., tomo V.

DESIDERI, Hypolito, Manuscrito em italiano, com referên-cias a D. Juliana, existente na Biblioteca Centrale de Florença. O Pe. Desideri foi contemporâneo de D. Juliana e a sua obra tem o título de Il Tibet, tendo a maior parte sido publicada por Carlo Puini sob o mesmo título em Roma, 1904.

EAST and West, rev. Jun. 1903. Bombaim: conferência de Mr. H. Beveridge, feita na Real Sociedade Asiática de Londres.

HERAS, H., Dona Juliana Dias da Costa: her influence in later Mughal history, "The Branda Review", Bandra, Jan. 1929.

HOSTEN, The family of Lady Juliana Dias da Costa, "Journal of the Punjab Historical Society", 1918, pp. 39-49.

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LUCA, Augusto, Nel Tibet ignoto, Bolonha, 1987, p. 61.

MANUCCI, Nicolau, Storia do Magor. Manucci foi arti-lheiro e fundidor, e médico ao serviço do príncipe Dara. Agra, 1658.

PIRES, Benjamim Videira, Portugal no tecto do mundo, Macau, ICM, 1988.

"Times of India", 7 Jan. 1908. Artigo de C. A. Kincaid.

Trecho da Carta amua do provincial da Companhia de Jesus, de Goa, Pe. António de Azevedo, 1714.

VALENTYN, François, Oud en Nieuv Oost-Indien, Amsterdam, 1726.

NOTAS

1 PIRES, Benjamim Videira, Portugal no tecto do mundo, Macau, ICM, 1988, pp.5-12.

2 SOUSA, Francisco de, Oriente conquistado a Jesus pelos padres da Companhia de Jesus da Província de Goa, Lisboa, 1710; GOLD1E, Francisco, The first Christian mission to the Great Mogul, Dublin, 1897.

3 GRACIAS, Ismael, Uma dona portuguesa na corte do Grão-Mogol, Nova Goa, 1907.

4 CATROU, François, Histoire générale de l'empire mogol depuis safondation sur les "Mémoires portugais de M. Manouchi, vénitien", Haye, Guillaume de Voys, 1708.

5 SOUSA, op. cit. II. Rudolfo Acquaviva e Francisco Henriques.

6 Cronologia e genealogia adaptadas de MAGLAGAN, E., Os Jesuítas e o Grão Mogol, Porto, Civilização, [s. d.].

7 I1. Rota do Ir. Bento de Góis em demanda do Cataio.

8 VALENTYN, François, Oud en Nieuv Oost-Indien, Amsterdam, 1726.

9 GRACIAS, op. cit., p. 95.

10Id., p. 119.

11 Livro das monções, n° 79, fl. 331.

12 Esta descrição recolhida em fonte indirecta, bebe a água pu-ra de: GENTIL, J. B. J., Mémoire sur I'lndoustan, Paris, 1882, pp. 374, 367; onde é descrita a marcha de Burhanpur a Delhi com Xá Muazzam.

13 GRACIAS, op. cit., p. 111, carta de 20.10.1710.

14 Id., p. 113, carta de 7.1.1711.

15 Este sagoate é descrito na carta de 27 de Novembro de 1710 (GRACIAS, op. cit., p. 114) e consta de uma jóia a que chamam zaga, que é um penacho de ouro, com oito cadeias também de ouro, trinta e oito diamantes entre grandes e pequenos, cento e seis rubis, doze esmeral das e catorze aljôfres (pequenas pérolas), mais uns perfumes e tecidos.

16 GRACIAS, op. cit., pp. 135-6, carta de 15.1.1715.

17 D. Juliana já não poderia gerir com a mesma eficácia dos seus anos gloriosos e a verdade é que a entrega de Pondá ficou suspensa.

*Licenciada em História (Coimbra); investigadora da História de Macau e da presença portuguesa no Oriente, com vários trabalhos publicados.

**Mogul, mogol, moghor, mogor — expressões equiva-lentes: raça nómada de mongóis: na Índia significa maometano estrangeiro das regiões Oeste e Noroeste, com excepção dos patanes, segundo Hobson — Jobson em Glossary of Anglo-lndian words andphrases. Grão-Mogol — cabeça (rei) dos circuncidados (mongol), segundo o Vocabulário de Bluteau.

desde a p. 27
até a p.