Depoimento

MINHA LUTA, MINHA OPÇÃO

YUE DAI YUN*

Lembro-me de, no primeiro ano da escola se-cundária, ter tido pela primeira vez a consciência de ser mulher, quando a guerra de resistência do povo chinês à agressão japonesa tinha acabado de triunfar. A minha terra natal é a cidade montanhosa de Guiyang, então cheia de soldados norte-americanos. Todos os fins de se-mana, quando voltava para casa, que ficava a quinze qui-lómetros da escola, encontrava sempre soldados que, a mastigar chicletes e a espetar o polegar, gritavam: "Very good!" Levando raparigas nos jipes, conduziam como se não houvesse ninguém nas estradas. Frequentemente faziam caretas e gritavam-me: "Bela menina, quer uma boleia?" Sentia-me humilhada. Uma vez, depois de ter-mos nadado em um riacho cristalino, eu e a minha prima estávamos a apanhar sol na ponte que atravessava o ria-cho, quando chegou um grupo de soldados norte-ameri-canos embriagados. De início, só falavam e riam; depois passaram a agredir-nos, chegando a empurrar a minha prima para o rio. Indignado, o nosso primo começou a discutir com eles em inglês fluente. Vendo que ele fala-va inglês, os americanos ficaram um pouco desanimados e, finalmente, viram-se obrigados a pedir desculpa. Tem-pos depois, ocorreu em Pequim o "Incidente de Shen Chong", em que um soldado norte-americano violou uma estudante da Universidade de Pequim, tendo acaba-do por ser repatriado e absolvido, o que provocou grande agitação do movimento estudantil em escala nacional. Em função da minha experiência pessoal, sentia profun-damente a humilhação nacional.

No terceiro ano da escola secundária, tomei a decisão de deixar a cidade do planalto, ladeada de mon-tanhas. Sozinha, fui de boleia para Chong Qing para fazer o exame de admissão à Universidade. Viajei num camião que transportava mercadorias. Sentada entre as caixas de madeira, passei por entre as nuvens e as mon-tanhas íngremes. Durante toda a viagem, estive sempre apavorada com os lugares perigosos, conhecidos por "setenta e duas curvas" e "rochas que penduram cadá-veres"! Vencendo inúmeras dificuldades, cheguei final-mente à antiga sede da Universidade Central, situada em Sha Ping Ba, Chong Qing, onde decorriam os exames. Os alunos universitários já tinham voltado para casa, para passar as férias. De dia, participávamos nos exa-mes com um calor sufocante, de 38 ou 39 graus, e de noite, deitávamo-nos no dormitório vazio, alimentando os percevejos esfomeados. Cada universidade realizava seus próprios exames; levei vinte dias a fazer dois exa- mes de três delas. De volta a Guiyang, soube que havia sido admitida, sem exame, pela Universidade Pedagógi-ca de Pequim, por proposta da minha escola secundária. Logo depois, chegaram-me os avisos de admissão da Universidade de Pequim, da Universidade Central e da Universidade Política Central. Claro que eu fiquei eufó-rica, mas houve uma grande agitação na família! O meu pai opunha-se a que eu fosse para o Norte, alegando que os comunistas ameaçavam cercar a cidade de Pequim, estando iminente a guerra. Para uma menina de dezas-sete anos, viajar assim sozinha seria o mesmo que lan-çar-se a uma fogueira. Ele insistia que eu ficasse em ca-sa. Se quisesse frequentar a escola, iria para a Univer-sidade de Guizhou, ao pé de casa. Após repetidas brigas, súplicas e até ameaças de suicídio, o meu pai acabou por concordar com a minha saída da cidade montanhosa, mas só para frequentar a Universidade Central, em Nan-quim. Se realmente tivesse ido para a Universidade Cen-tral, certamente teria ido para Taiwan, com a escola, al-guns meses depois. Aí a minha vida teria tido uma his-tória inteiramente diferente. Entretanto, eu estava deter-minada a ir imediatamente a Pequim, centro do movi-mento revolucionário estudantil. A minha mãe apoiou-me, dando-me mais de dez moedas de prata e consentin-do que eu fosse para Wuhan, de onde partira para o Nor-te. Mas, diríamos ao meu pai que eu ia para Nanquim.

Cheguei finalmente a Wuhan, onde encontrei o posto de recepção dos estudantes da Universidade de Pequim que queriam ir para o Norte. O nosso chefe, que era aluno do primeiro ano da Faculdade de Física da Universidade de Wuhan, ia agora frequentar voluntaria-mente a Faculdade de História da Universidade de Pe-quim, de novo como aluno do primeiro ano. Fazia-o pela revolução. Fomos de barco até Xangai, pelo rio Yantzé, de onde seguimos para Norte, por via marítima, rumo a Tiansin. Durante a viagem, o chefe ensinava-nos canções das zonas libertadas. Claro que não ensinava publicamente. Talvez porque eu aprendesse depressa, ele gostava de ensinar-me primeiro, para que depois eu en-sinasse aos outros. Em três dias, todos aprendemos as canções que ele conhecia. As canções favoritas eram na-turalmente "O céu das zonas libertadas é brilhante", e outras como "Bom lugar fica além da montanha, com tri-gais amarelos" e "Tu és o farol que ilumina o mar antes da madrugada", etc. Quando os estudantes da Univer sidade de Pequim, empunhando grandes bandeiras, nos receberam na estação ferroviária de Qian Men, nós, sen-tados nos caminhões, cantávamos em voz alta estas canções absolutamente proibidas! Vendo o antigo pavi-lhão com telha verde e o muro vermelho, fiquei emo-cionadíssima e cantei canções que poderiam levar à mor-te. Era como se tivesse chegado à cidade da liberdade, tantas vezes sonhada!

Na realidade, minha "verdadeira" experiência havia sido apenas de cinco meses, mas fora um belo e raro período da minha vida. Nos exames de admissão, havia-me inscrito para a Faculdade de Língua e Literatu-ra Inglesas. Não sabia por que razão é que a Univer-sidade de Pequim me tinha admitido na Faculdade de Língua e Literatura Chinesas. Segundo me disseram de-pois, foi porque o professor Shen Congwen tinha gosta-do da redacção que eu tinha feito no exame. A forte at-mosfera académica e a sabedoria e nobreza dos profes--sores da melhor universidade do País atraíram-me pro-fundamente. As disciplinas do primeiro ano eram: Literatura Chinesa (que incluía redacção), pelo professor Shen Congwen; Análise de Obras Modernas, pelo pro-fessor Fei Ming; História das Línguas, pelo professor Tang Lan; Teoria Geral da Filosofia Ocidental, pelo pro-fessor Qi Liangji; além de Língua Inglesa, do primeiro ano. O ensino na Universidade era inteiramente diferente do da escola secundária. Gostava muito das aulas e foi sempre com seriedade que lia as obras de referência e cumpria os trabalhos extraclasse. Gostava especialmente de ir a pé, cerca de meia hora, ao grande laboratório, na sede central da Universidade, para as aulas de Química.

Gostava das aulas, mas também me preocupava com a revolução. No Outono de 1947, o movimento es-tudantil encontrava-se paralizado. Já passara o auge da "Campanha contra a fome e a perseguição". As autori-dades do Kuomintang perseguiam e prendiam os estu-dantes revolucionários; alguns líderes do movimento estudantil tinham-se retirado para as zonas libertadas. Antes das férias de Inverno, ainda tivemos as aulas nor-malmente; só realizamos uma pequena petição: "Pela sobrevivência, pela vida". Seguindo os demais e empu-nhando uma bandeira, marchei do campus para a sede central da Universidade, situada em Sha Tan, a fim de entregar a petição ao reitor, Hu Shi. A sede central esta-va instalada num pátio tipicamente chinês, denominado Song Gong Fu. Vimos aparecer o reitor Hu Shi na esca-da do salão Jue Min Tang. Com um casaco preto acol-choado, recebeu-nos com simpatia, mas com tristeza. Do que ele disse na ocasião, nada me lembro; mas não me esqueci da expressão resignada do seu rosto. Resultado dessa petição: os alunos que não tinham subsídio de propinas obtiveram-na; os que não tinham roupa de Inverno receberam casacos. O casaco que obtive usei-o até me formar.

Nesse período, ingressei na Associação de Ópera e na Associação de Dança Popular da Universidade, lançando-me de corpo e alma às actividades literárias e artísticas revolucionárias com que nunca havia tido con-tacto. Noite e dia, lia O pacífico rio Don, Como se forja o aço, A mãe (de Gorky) e, ainda, poesias de Maya-kovsky. A nossa Associação de Ópera ensaiava a peça teatral O quadragésimo primeiro, da União Soviética. A minha função era ler as frases nos bastidores para os ac-tores. Uma mulher soldado do Exército Vermelho deba-tia-se entre a revolução e o amor, e no fim tinha de matar o homem "de olhos azuis" de quem tanto gostava — um oficial do Exército Branco que ela havia prendido. Sem-pre que chegava essa passagem, ficava emocionadíssi-ma, com os olhos cheios de lágrimas. A Associação de Dança Popular promovia actividades duas vezes por se-mana. Um aluno veterano, enviado pela sede central da escola, ensinava-nos danças do Xinjiang.

Que falta de harmonia havia entre estas belas danças e canções que cercavam a cidade e criavam uma atmosfera de guerra! No entanto, ambas as coisas se mis-turam naturalmente no meu coração. Nesse período, de dia, eu dançava e cantava; de noite, ia para o telhado do edifício, como sentinela, para proteger a escola, ou con-trolava materiais de propaganda revolucionária. A gráfi-ca da Universidade era contígua ao nosso dormitório. Durante a noite, os operários revolucionários imprimiam documentos secretos e folhetos, e a nossa responsabili-dade era fazer a revisão das provas, sob o luar ou na própria gráfica. Do que revi, o mais importante foi um folheto com a capa da obra Conversa nocturna ao lado da vela, de Zhou Zuoren, como camuflagem. Nele, logo à primeira página, lia-se: "O grande Rio corre dia e noi-te. O sangue do povo chinês corre dia e noite!" O folheto era escrito por um estudante que havia visitado as zonas libertadas, registando o que lá vira, ouvira e pensara. Tratava-se de uma obra profundamente emocionante tanto pelo estilo como pelos sentimentos expressos.

No dia 29 de Janeiro de 1949, o Exército Popular de Libertação entrou triunfante na cidade de Pequim e abriu-se na minha vida uma página inteiramente nova. A primeira impressão que tive da "nova sociedade" veio da literatura e arte revolucionárias, trazidas pelo Conjunto Artístico de Yunan. Desapareceram logo os cantos e dan-ças amorosas do Xinjiang, aparecendo em seu lugar a dança vigorosa Yangé do Noroeste e a ensurdecedora dança de tambores. O Conjunto Artístico enviou pessoal à Universidade para nos ensinar e para organizar grupos. Depois de aprendermos, passamos a apresentar espec-táculos de rua. Às vezes, dançávamos Yangé com uma faixa de seda vermelha atada à cintura; às vezes, apre-sentávamos a dança de tambores cujos sons subiam até aos céus. Os habitantes da cidade assistiam, ora com sor-riso e aplausos, ora com frieza e hostilidade. E nós todos sentíamo-nos satisfeitíssimos, pensando que eramos anjos e heróis que declaravam a ruína da velha sociedade e o advento da nova.

Em 1952, tornei-me na mais jovem assistente da Faculdade de Língua e Literatura Chinesas da Univer-sidade de Pequim, pertencendo à primeira geração dos intelectuais da nova ordem, preparados pelo Partido Comunista após a Libertação. Sentia-me orgulhosa por isso e estava determinada a lutar pela grande causa. Em 1957, os jovens professores da Faculdade já somavam cerca de vinte. Na Secção de Literatura, onde estava co-locada, éramos dez. Naquele tempo, havia pouquíssimas revistas de Humanística e a maior parte delas só publi-cava artigos de professores já de renome; os jovens ti-nham pouca oportunidade de publicar os seus trabalhos. Decidimos editar uma revista académica, destinada ex-clusivamente à publicação dos trabalhos escritos por jo-vens. Tivemos duas reuniões em que determinamos os artigos a serem publicados nos primeiros dois números e definimos até os títulos de cada um. Estávamos anima-dos, pensando que íamos ter a nossa própria revista. Depois das reuniões, começamos a pedir apoios eco-nómicos entre os velhos professores catedráticos, para as despesas. Já estávamos a meio de 1957. O meu profes--sor, Wang Yao, um senhor inteligentíssimo e óptimo avaliador da situação, aconselhou-me a desistir imedi-atamente do projecto. Nós ficamos perplexos, conside- rando tratar-se de um exagero de sua parte, já que ele não depositava confiança no Partido Comunista.

Entretanto, uma "conspiração aberta" foi decla-rada e fez desaparecer todas as ilusões. Os oito organi-zadores da revista foram todos rotulados "direitistas". Isto porque organizar uma revista constituía uma preten-são de se livrar da direcção do Partido Comunista e, quem queria livrar-se da sua direcção, estava a lutar con-tra o Partido! E assim, dos dez jovens que entraram para a Secção de Literatura depois da libertação do País, a maioria tornou-se direitista. Eu, em particular, tornei-me, não sabia porquê, a cabecilha desses direitistas, sen-do rotulada de "extrema direita". Fui expulsa do Partido, demitida do meu cargo e mandada para um campo de trabalho, com apenas 16 yuans mensais de pensão de so-brevivência.

O meu segundo filho tinha então um mês, e a minha filha tinha quatro anos e meio. Até hoje não sei a que dirigente devo agradecer por ter tido pena e ter adia-do a minha partida por meio ano, a fim de poder ama-mentar o bebé. Eu tinha saúde e o leite era suficiente. Mas, com o meu leite, o bebé não se sentia bem. Segun-do os mais velhos, era o meu mau humor que passava "fogo" para o leite. Não sei como passei aquele meio ano! Só me lembro que reflectia repetidas vezes sobre uma série de questões: Quando os filhos fossem maiores, poderiam ingressar na Organização dos Pioneiros Adolescentes e na Liga da Juventude Comunista? Te-riam eles de escrever em todos os papéis e documentos que a mãe era "inimiga do povo"? Poderiam ser rotula-dos de "filhos da contra-revolucionária" e incluídos na lista negra durante toda a vida? Quem é que podia aju-dar-me a responder estas questões? Os meus antigos camaradas já me viam como uma serpente, ou um escor-pião! Vivi sufocada e atormentada por esses problemas. O meio ano passou e chegou o último dia da licença. Na tarde desse mesmo dia, recebi aviso para partir imedi-atamente para o campo. Fiz a mala e parti no dia seguin-te, sem ter tempo para me despedir do meu marido, que trabalhava numa escola dos arredores e só voltava a casa no fim da semana.

Numas montanhas dos arredores de Pequim, transportávamos pedras a fim de construir um reser-vatório. Trabalhava com empenho, chegando a sentir ânimo com o próprio trabalho; além de ter todo o cuida do para não escorregar nem deixar cair as pedras, o cére-bro podia deixar de funcionar. De volta ao dormitório, bastante cansada, deitava-me imediatamente, todos os pensamentos se transformando num sonho. Sentia-me cada vez mais próxima do trabalho braçal e surgia-me um repúdio crescente pelo trabalho intelectual. Nesses anos, havia fome em todo o País; a nossa alimentação eram só folhas de árvores e algum milho grosseiro. Muita gente ficava doente, mas eu continuava de boa saúde porque, por um lado, sabia gozar do alívio e da pureza do trabalho físico e, por outro, beneficiava do facto de ser mulher. Os homens direitistas eram muitos; viviam todos num quarto escuro e húmido que servia de depósito de ferramentas agrícolas. Era eu a única mulher "direitista"; não podia viver com os homens. Assim, a direcção teve de me pôr a morar com uma família cam-ponesa. A família escolhida era um casal de camponeses pobres da maior confiança. Antes da Libertação, o velho tinha passado metade da vida cuidando de animais de carga para uma família de proprietários, pelo que só depois dos cinquenta anos obteve casa e alguma coisa na distribuição da riqueza dos latifundiários. Só então con-seguiu arranjar mulher. O estranho era que o velho casal não distinguia "classes" e tratava-me como uma filha. Por minha vez, também gostei deles. O velho camponês pastoreava ovelhas para a Brigada de Produção, andando pelas montanhas, onde não faltavam nogueiras nem esquilos. Frequentemente, apanhava nozes, amendoins, uma batata doce ou uma espiga de milho. De vez em quando, podíamos saborear esses alimentos preciosíssi-mos. A velha camponesa criava três galinhas. Além dos ovos vendidos ao Estado, podia, segundo os regulamen-tos, conservar alguns para si mesma, de forma que podíamos ter um ou dois "banquetes" de ovos por mês.

Assim, chegou o Outono de 1961. Passara o auge do Grande Salto em Frente e a fome diminuíra aos poucos. Comprovou-se que o reservatório não reservava água alguma; os porcos confiscados foram devolvidos aos respectivos proprietários; e constatou-se ser inútil a construção de abrigos colectivos. O campo ficou calmo, e eu recebi um trabalho mais leve: pastorear quatro por-cos pequenos nas montanhas, pois os dirigentes pre-tendiam fazer o milagre de engordar porcos sem com-prar um grão de cereal. A partir de então, dava início ao meu trabalho quando o Sol se levantava e recolhia-me quando ele se punha. Todas as madrugadas, ia para as montanhas com os porcos. Eram montanhas pontilhadas de nogueiras. Gostava dessa solidão e de estar muito próxima à Natureza. Entretanto, nessas circunstâncias, era difícil deixar de pensar. Projectava a minha vida futu-ra, concluindo que seria melhor encontrar um mosteiro onde pudesse trabalhar para me sustentar. Mas, sem cupão de cereais, sem bilhete de identidade, aonde pode-ria eu refugiar-me? Os templos e igrejas estavam arrui-nados; nem os monges tinham para onde ir. Nunca com-preendera tão profundamente a vida dos camponenses como agora! Eles levavam uma vida miserável, mas sa-tisfaziam-se com facilidade, sem nenhuma ambição, como as árvores, cujas folhas cresciam e caíam, voltan-do finalmente à Natureza. E eu, por que insistia na vida do passado? Ou seja, por que deixava que o passado se projectasse no futuro? Pensando melhor, poderia eu real-mente decidir a minha própria vida? Não passava de um sonho! A tradição cultural chinesa ajudava-me: Sê satis-feito com o destino e acomoda-te ao que encontra. Passei a ter a consciência tranquila. Todos os dias levava os por-cos às montanhas, onde cantava e gritava em voz alta, ou recitava poemas, ou decorava palavras inglesas.

Em fins de 1962, fui mandada de novo para a Universidade de Pequim, onde recuperei o emprego público como trabalhadora na Secção de Obras de Referência. Segundo diziam, para não "envenenar" os estudantes de consciência pura, não podia ter mais con-tacto directo com eles. A minha tarefa era preparar os materiais de ensino, escrever notas de explicação aos poemas clássicos, para os professores que leccionavam. Para mim, era um mal que vinha por bem pois, primeiro, recolhida no escritório, podia deixar de sentir a frieza dos olhares alheios; segundo, tinha que encontrar as explicações exactas para cada palavra, para cada frase, dos poemas segundo as diversas versões, o que consoli-dou consideravelmente a minha base de conhecimentos do chinês clássico; e, terceiro, esses poemas lindíssimos proporcionavam-me um mundo onde a minha alma passeava livremente.

Assim chegou, em 1966, a Grande Revolução Cultural Proletária, "sem precedentes na história" e que "comovia o mundo inteiro"! Das humilhações e injustiças que sofri, não é preciso falar detalhadamente. O mais interresante, acho, foi o que o professor Feng Youlan, filósofo número um da China, diz nas memórias: "Eles puseram-me no palco para criticar e denunciar; as massas estavam excitadas. Mas eu decora-va mentalmente: 'Como árvore, o pipal não existe; o espelho não reflecte; já que não há nada no mundo, por que se levanta a poeira'?" Ao que parece, a tradição cul-tural chinesa, sobretudo as ideias tauistas e budistas, aju-dou efectivamente os intelectuais a vencer os momentos mais difíceis. É talvez incrível o seguinte facto: no início da Grande Revolução Cultural, eu era "direitista" e o meu marido era um "seguidor do caminho capitalista pertencente à camarilha negra". Num abrir e fechar de olhos, nós fomos "deitados por terra e espezinhados por mil pés"; a casa foi vasculhada; todos os dias tínhamos de trabalhar duramente e éramos criticados e denuncia-dos; mas, no fundo do coração, sentíamos que essa "re-volução" era uma esperança para a China. Prevíamos drásticas mudanças no País pois, naquele tempo, a. pro-paganda falava amplamente sobre os princípios da Comuna de Paris, o que significaria que o salário dos dirigentes do Partido e do Estado não poderia ultrapassar o salário máximo dos operários técnicos e significaria eleições gerais; também, igualdade para todos. Pensávamos, se fosse realmente assim no nosso País, que importavam os nossos sofrimentos pessoais, que importava a dor provocada pelo nascimento de uma nova vida? Só passamos a perceber, tempos depois, que se tratava de uma simples camuflagem. Nós tínhamos pago sem obter nada, e o País ficou enfraquecido considera-velmente. A minha maior e irrecuperável tristeza pessoal foi a perda definitiva da minha mãe! Nós morávamos na própria escola, onde os dormitórios dos estudantes cons-tituíam o centro do campo de batalha das diferentes facções. Os lançadores de pedras instalados nos telhados frequentemente feriam e matavam. Os meus dois filhos tornaram-se seguidores dos rebeldes. O rapaz, de nove anos, era muito hábil a subir as árvores para colocar alto-falantes, para uma facção, ou a roubar os alto-falantes de outra (naquele tempo, alto-falantes encontravam-se por toda a parte a transmitir propaganda); a rapariga, de treze anos, estava sempre a criticar o que achava injusto, dis-cutindo e brigando com todos. Naquelas circunstâncias, isso era muito perigoso para eles, porque eram "filhos da camarilha negra"! Tive de enviar os dois filhos para casa da minha mãe, situada entre a Universidade de Pequim e a Universidade de Qinghua. Não imaginava que, dias depois, alguém fosse a casa da minha mãe, ordenando-lhe que deixasse de abrigar os "filhotes da camarilha negra"; se insistisse em os abrigar, teria de atar uma pla-ca negra ao pescoço das crianças, impedindo-as de "pene-trar nas fileiras das massas populares"! De tanto rancor, angústia e medo, a minha mãe sentiu uma dor aguda na cabeça e foi levada para um hospital. Como os médicos experientes tinham sido todos demitidos, um "médico revolucionário" tratou-a, diagnosticando-lhe, como me-ningite, a ruptura de um tumor cerebral. Ela morreu no dia seguinte.

As tempestades da grande revolução cultural tiveram um intervalo. Em 1969, mudamo-nos para a "Escola de Quadros Sete de Maio", no calmo Li Yu Zhou. A filha, que tinha acabado de completar 16 anos, declarou: "Não queremos ser pequenas andorinhas que voam ao redor da casa; queremos ser águias que atingem os céus." Com seus companheiros, foi para Bei Dahuang, na zona fronteiriça contígua à União Sovié-tica, tornando-se soldado do Corpo de Construção de Hei-lonjiang.

Li Yu Zhou era produto do movimento de cercar lagos para criar terras cultiváveis. Ficava ao pé do lago Boyan e ali foi construído um dique. Esse lago, separa-do das águas, era um imenso pântano, sem gente, sem casas. Com as nossas próprias mãos, construímos casas de junco e bambu, de forma a podermos cultivar a terra. Olhando para cima, podíamos ver as velas brancas que navegavam no lago, como grous brancos voando no céu azul. Nesta terra abandonada pelos camponeses, devido aos esquistossomas que ali reinavam, eu, o meu marido e o meu filho vivemos cerca de três anos! Embora morássemos separados, eu numa companhia e meu mari-do na outra, a família podia reunir-se nos feriados. Costumávamos passear na margem do lago, gozando as nossas melhores horas. Quando não havia coisas como "marchas forçadas", "concentrações", "campanhas para descobrir os inimigos de classe profundamente escondi-dos", os dias passavam calmos. Em comparação com as tempestades da luta de classes do passado, podíamos respirar aliviados. Como eu já tinha trabalhado fisica-mente, não achava o trabalho demasiado árduo; pelo contrário, tornei-me "pioneira no transplante de arroz" e "hábil fabricante de tijolos", etc. Já que o futuro era tão vago, que nem se podia imaginar, ninguém pensava. E eu voltei a sonhar no mosteiro isolado, reflectindo na possibilidade de ter uma casa de palha, cultivando feijão e criando galinhas à frente dela, e cultivando abóboras e criando patos; gozando a vida, enfim. Foi nesse tempo que a minha amiga, Peng Lan (que ela durma em paz!), escreveu uma poesia que circulava amplamente: "Mais de trinta anos passaram num ápice, perdemos, tanto os ensaios como a causa; contemplamos o Sol poente, mi-lhões de operários e camponeses entoam canções triun-fais." Penso que todos gostaram do poema, porque ele continha uma indizível melancolia e era uma sátira me-tafórica.

Os nossos "dirigentes" não paravam de nos ensi-nar que devíamos enraizar-nos no campo, ser os "ances-trais do povo de Li Yu Zhou", e eu também pensava em realizar o sonho do "eremita", mas, num dia dos fins de 1972, veio a ordem para que todos os "habitantes de Li Yu Zhou" voltassem imediatamente à Universidade. Não sabíamos por que tínhamos vindo, nem por que iríamos, muito menos se isso significava uma graça ou uma des-graça. Em todo caso, matamos apressadamente todas as galinhas que criávamos; fizemos com elas um "banquete de cem galinhas", e matamos vários porcos. Deixamos as bombas de água, os motores e outras ferramentas agrí-colas que havíamos comprado com muita dificuldade, além das casas de palha que tínhamos construído com nossas próprias mãos. Quando os caminhões que nos transportavam passavam lentamente pelo dique, eu sen-tia uma infinita tristeza. Nesses dois anos, mais de dez dos meus companheiros tinham sido enterrados naquele terreno deserto. Entre eles, seis tinham morrido afoga-dos, quando atravessavam o lago para comprar legumes. Dois perderam a vida em acidentes de trânsito. Três sui-cidaram-se sem se saber porquê. Os outros morreram ví-timas de esquistossomose ou de outras doenças por falta de médico e remédios.

Nunca acreditei no destino, mas a vida de uma pessoa está recheada de possibilidades. Qual delas é que se vai tornar realidade? Pura coincidência. Em meados da década de 70, a Universidade admitiu estudantes estrangeiros, principalmente norte-coreanos e africanos no princípio, e depois europeus e americanos. Ninguém queria dar aulas aos estudantes estrangeiros, porque, além da falta de experiência, os contactos com estran- geiros podiam provocar muitas complicações. Como fazer se eles pusessem questões estranhas? O professor podia até ser rotulado de crimes como "ligação ilícita com o exterior". E era difícil organizar o conteúdo de ensino. Se se explicasse segundo os velhos moldes, os alunos não gostariam; se se quisesse dar algo de novo, receava-se cometer erros. Por isso, ninguém aceitava a tarefa. Mas, como não tinha condições para discutir, tive que aceitar o que me deram. Dessa forma, fui encarrega-da de ensinar Literatura Moderna a uma turma de estu-dantes estrangeiros. A turma contava com mais de vinte alunos, principalmente europeus e americanos, tendo ainda alguns australianos e japoneses. Nem imaginava que os três anos de ensino, nessa turma, ia alterar radi-calmente a segunda metade da minha vida! Para dar aulas aos alunos estrangeiros, tive que romper com os moldes de ensino da Literatura Moderna Chinesa, caso contrário, ninguém ia ter paciência para ouvir as minhas aulas. Para levar os meus alunos a compreender profun-damente as obras dos escritores modernos chineses, tive de estudar ainda mais as relações entre a literatura oci-dental e a literatura moderna chinesa, assim como a difusão da literatura ocidental na China. Este tema, que não era estudado nos círculos académicos há muitos anos, despertou-me um forte interesse. Comecei a estu-dar, sistematicamente, como é que a literatura ocidental vinha sendo assimilada, absorvida, mal-entendida, e deformada a partir de inícios do Século XX. Desde en-tão, passei a ter uma relação inseparável com a literatu-ra comparada. Devido ao apreço que alguns alunos ti-nham pelas minhas aulas, tive uma oportunidade que nun-ca imaginara: um curso de aperfeiçoamento na Univer-sidade de Harvard, Estados Unidos, durante um ano. De-pois disso, estive na Universidade de Berkeley, Califór-nia, como investigadora visitante, durante dois anos.

Tenho sempre saudades dos dias que passei na Universidade de Harvard, sobretudo dos dormitórios dos estudantes. Cada dormitório constituía um grande pátio. O Lowell House, onde eu morava, era um grande relva-do cercado por dormitórios dos quatro lados. Viviam mais de 200 estudantes, graduados e uns poucos profes-sores jovens. Numa pequena sala, os graduados davam aulas auxiliares aos estudantes, orientando-os. A senho-ra responsável fazia todo o possível para criar uma atmosfera familiar. Todas as quintas-feiras, às quatro ho ras da tarde, oferecia-se um chá caseiro com biscoitos feitos pela própria senhora. Um cão descansava pre-guiçosamente na sala. Qualquer morador do dormitório podia lá comer biscoitos, tomar um café, trocar algumas palavras com os professores catedráticos ou com os diri-gentes da escola que comparecessem ao chá. Todas as quartas-feiras à noite, havia um "gelado". No meio da ensurdecedora música, os presentes podiam escolher entre mais de vinte variedades de gelado. Segundo con-taram-me, houve um homem muito pobre que frequen-tava a Universidade de Harvard. Nessa altura, não tinha dinheiro para comprar os gelados de que gostava. Depois de enriquecer, criou um fundo para dar, semanalmente, esse "banquete" aos colegas. No jantar das sextas-feiras, havia mesas altas, isto é, ao redor de uma fileira de mesas cobertas de toalhas brancas, instaladas no palco do restaurante, sentavam-se os professores catedráticos, que haviam morado ali, e os jovens professores, enquan-to do campanário da Lowell House chegava o som suave do sino. Depois do jantar, os professores desciam para conversar livremente com os alunos. Claro que tudo isso não passava de um ritual, mas compreendi que, justa-mente na repetição desses rituais, é que a chamada tradição da Universidade de Harvard se transmitia de geração em geração.

No ano em que estive na Universidade de Har-vard, não consegui fazer bem o meu trabalho de investi-gação. De dia, ia às aulas e, de noite, estudava Inglês nas faculdades nocturnas de línguas. Quanto às aulas, assis-tia principalmente às da Faculdade de Literatura Comparada. Esta disciplina atraiu-me profundamente. O professor catedrático Irving Babitt, um dos fundadores dessa Faculdade, promovia activamente os estudos sobre Confúcio e, sob a sua influência, um grupo de jovens eruditos chineses, como Wu Mi e Mei Guangdi, come-çou a estudar, de novo, a cultura chinesa sob o contexto mais abrangente da cultura mundial. O então director da Faculdade, professor Claudio Guillen, também sustenta-va que, só quando os dois grandes sistemas de poesia, o oriental e o ocidental, se conhecessem um a outro, é que se poderia tratar integralmente a teoria da literatura geral. Eu estava realmente encantada com esta disci-plina, para mim inteiramente nova. Pedi emprestados muitos livros relativos a esta matéria e gastei todo o di-nheiro que podia juntar para comprar outros. Tomei a decisão de dedicar a segunda metade da minha vida à li-teratura comparada.

O tempo voava, passou-se rapidamente um ano, e sentia-me uma principiante. Sobretudo depois de ter participado da X Conferência da Associação Internacio-nal de Literatura Comparada, realizada em Nova Iorque, queria compreender ainda mais profundamente esta matéria. Eis porque, embora a Universidade de Pequim tentasse apressar o meu regresso, estava determinada a prosseguir com meus estudos nos Estados Unidos. Jus-tamente nesse momento, a Universidade de Berkeley ofereceu-me um lugar de investigadora visitante. Esque-cendo todo o resto, fui directamente para o Oeste dos Estados Unidos.

Durante a estadia na Universidade de Harvard, deixei-me "contaminar" pelo seu estilo. Na região da Nova Inglaterra, tudo era tão tradicional e cavalheiresco. No Oeste, parece que experimentei, mais uma vez, uma grande libertação da alma. Lembrava-me de que, quan-do participava nos seminários do professor Claudio Gui-llen, de 45 em 45 minutos, aparecia uma secretária com café: "Professor, café"; começando assim o intervalo. Na primeira aula da Universidade de Berkeley, ouvi um ba-rulho estranho atrás de mim; voltei-me e percebi que era um grande cão! Parece que era comum ir às aulas com um cão. Ao dar aula, o professor sentava-se, às vezes, num canto da mesa e os alunos faziam perguntas quan-do queriam. Professores e alunos brincavam, sem ne-nhum constrangimento. Ao contrário da tranquilidade de Harvard, o campus de Berkeley era animadíssimo. Na pequena praça, havia os que discursavam, os que faziam acrobacia, os que dançavam break, os que, vestidos de amarelo, gritavam. E havia uma poeta, sempre vestida de preto, que aparecia todos os dias, à mesma hora, a soprar bolas de sabão. No portão da escola, havia inúmeras ban-cas que vendiam iguarias de todos os países. Era uma verdadeira feira internacional. Ao que parece, ninguém queria comer no restaurante; traziam, todos, comida para fora, para comer ao Sol. Quando eu falava das "mesas altas", ninguém me ligava. Na realidade, gostei mais de Berkeley, que correspondia mais à minha natureza. Sentia-me ali muito mais à vontade.

Meu conselheiro académico era o professor Siler, da Faculdade de Literatura Transcomparada e da Faculdade de Literatura da Ásia Oriental. Os seus estu dos sobre Lao She e Xu Zhimo, em particular sobre as relações destes dois escritores chineses com a literatura estrangeira, inspiraram-me bastante. Os seus estudos sobre óperas e contos das dinastias chinesas Yuan e Ming proporcionaram-me um horizonte académico inteira-mente novo. Gostava muito de participar nos seminários de Literatura Moderna Chinesa, organizados pelo pro-fessor Siler. A mais profunda impressão que tive foi num desses cursos, sobre a novela Casamento de Xiao Erhei, do escritor Zhao Shuli. Cada um dos colegas expunha o seu ponto de vista sobre as personagens do livro. Uma aluna norte-americana disse que gostava mais de San Xiangu e detestava o quadro dirigente da aldeia. fiquei surpreendida. A opinião comum, no passado, era que San Xiangu era uma mulher má, que, com mais de quarenta anos e viúva, ainda se pintava e provocava os homens. E o quadro dirigente da aldeia defendia a justiça e censurava San Xiangu. A colega norte-americana tinha as suas razões: San Xiangu era uma vítima — era huma--na e, sendo uma pessoa, devia ter o direito de escolher o seu próprio modo de vida; no entanto, era descrimina-da e reprimida pela sociedade. E o quadro dirigente da aldeia metia-se onde não devia, chegando a ditar a quan-tidade de pó de arroz que San Xiangu devia usar; era o modelo da figura tradicional do "mandarim, pai do povo", na China. Compreendi que estas diferenças de pontos de vista demonstravam a disparidade entre valo-res culturais e sociais. Longe de ser prejudicial, esta dis-paridade fornecia vários ângulos para compreender e apreciar as obras. São justamente estas interpretações diferentes que alargam e prolongam a contemporaneida-de das obras. Estes cursos proporcionaram-me muitos exemplos semelhantes, que vieram enriquecer o conteú-do do meu ensino, anos depois, sobre a teoria da estética.

Em Berkeley, escrevi um livro intitulado Intelec-tuais nos romances chineses. Esse foi o compromisso que assumi com a bolsa de estudo nessa escola. O livro foi editado posteriormente, como parte integrante da Colecção de Estudos da Ásia Oriental, da Universidade de Berkeley. Mas, não imaginava que poderia vir a ser editado um outro livro que escrevi em Berkeley. Tratava-se das minhas memórias, dos meus primeiros vinte anos, que deviam ser o melhor tempo da minha vida. Ao es-crevê-lo, eu só pensava em deixar algumas folhas para as gerações posteriores compreenderem que houve na história um período em que os homens chegavam a viver, pensar e sentir daquela maneira! 1982 — ninguém sabia para onde ia a China, nem sabia que consequências acarretariam essas palavras verdadeiras. A minha colabo-radora, Caroline, disse-me que nos bancos norte-ameri-canos havia um serviço que nos permitia alugar uma caixa, para nela depositar segredos com toda a segu-rança. E o serviço não era caro. Além disso, Caroline prometeu-me cuidar da caixa. Talvez o livro pudesse ser editado depois da minha morte. Assim, todas as manhãs, escrevíamos as minhas memórias. Foi um milagre a con-clusão do livro, pois Caroline não sabia nada da língua chinesa e o meu inglês era insuficiente. Dependíamos, talvez, do entendimento dos nossos corações. Caroline não se cansava de perguntar e captava os meus pensa-mentos nas desconcentradas mas cordiais respostas. Como não pensasse numa edição imediata, eu falava livremente, sem nenhum receio. Não imaginava que a China desenvolveria com tanta rapidez. Dois anos depois, parecia desnecessário o projecto da caixa no banco. Em 1984, véspera do meu retomo à China, eu e Caroline decidimos entregar o livro à editora da Universidade da Califórnia, para ser editado sob o título Face às tempestades.

Como eu revelasse meu coração com toda a sin-ceridade, o livro alcançou a simpatia de muita gente. Logo depois da sua primeira edição, em 1985, despertou grande interesse. Mais de vinte jornais e revistas, tais como o "New York Times", "Los Angeles Times" e "Christian Science Monitor", dos Estados Unidos; "Lon-don Gazette", da Grã-Bretanha; e "Frankfurter Abend-post", da Alemanha, publicaram comentários muito fa-voráveis. No ano seguinte, a editora Scherz, da Alema-nha, editou a versão alemã com o título Quando as flo-res deviam desabrochar. No mesmo ano, o livro gran-geou o Prémio do Melhor Livro da Região do Golfo, o maior prémio do Oeste dos Estados Unidos. Acho que isso se deveu principalmente ao belo e fluente inglês de Caroline. O que mais me alegrou foi o facto de que, oito anos depois, este livro chegou a despertar a atenção do famoso sinólogo japonês e professor catedrático da Uni-versidade de Tóquio, Sr. Noboru Maruyama. Sob o seu cuidado pessoal, a sua mulher, Noriko Shiramizu, que havia estudado na turma em que eu ensinava, e que agora leccionava na Universidade de Iocoama, colaborou na tradução do livro para japonês. A versão japonesa foi editada em Janeiro de 1955 pela editora Iwanami. Considero que o valor do livro reside na sua autentici-dade. Como o senhor John Shevens, que trabalhou mais de dez anos na China durante a década de 30, diz, no longo prefácio: "A grandeza deste livro reside no se-guinte facto: longe de ser uma série de anotações de ocor--rências horrorosas, as suas descrições são sinceras e sensíveis. Aos olhos da autora, os erros não estão de um só lado, mas são causados pelas complicadas circunstân-cias históricas, independentemente do indivíduo. Nas duras provas por que passou, a autora, como uma mulher inflexível e cheia de coragem e força, como uma mãe que nunca se dobra, conservou a sua família, os seus fi-lhos e o seu futuro. (...) As suas horrorosas experiências estabelecem um exemplo da inflexibilidade da alma humana, cujo significado excede muito as eras e regiões concretas. Talvez seja difícil comparar os incidentes que ela experimentou com os de outros lugares, mas qual é o país que não tem os seus períodos históricos cheios de intoleráveis violências?" Penso que, justamente devido aos motivos que expõe, é que este livro tem sido esco-lhido como material auxiliar de ensino da História Mo-derna da China em muitas universidades. Até hoje, rece-bo frequentemente cartas de longe, dos estudantes estrangeiros, em que discutem problemas relativos ao assunto.

Os dois anos passaram depressa sob o sol e o céu azul de Berkeley. O meu filho e a minha filha já estu-davam nos Estados Unidos e o meu marido estava de visita àquele País. Na China, decorria uma vigorosa campanha contra a "poluição espiritual", as nuvens ne-gras anunciando o advento de uma tempestade. Tive uma conversa profunda com um amigo íntimo. Acabado o prazo, devíamos ou não voltar ao País? Tratava-se de um problema extremamente difícil que decidiria a segunda metade das nossas vidas. O amigo aconselhou-me a ficar, dizendo que voltar naquele momento seria o mesmo que lançar-se voluntariamente à rede e ser inevi-tavelmente alvo de críticas. Se, por acaso, houvesse mais uma grande revolução cultural, a segunda metade da vida arruinar-se-ia completamente. Ele apreciava muito a liberdade, preferia trabalhar oito horas diárias num restaurante para ter, como recompensa, oito horas de liberdade para escrever. Hesitei muito. A vida era curta. Se me visse obrigada a gastar tanto tempo por dia num trabalho sem proveito e de que não gostava, não seria o maior desperdício? Nessa ocasião, o meu marido ansia-va por voltar ao País. Era um homem conservador, não gostava da comida nem dos programas de televisão dos Estados Unidos. O que o atraía nos Estados Unidos eram apenas as pipocas com leite e as bibliotecas. "A própria casa ainda que de palha é melhor que as dos outros de ouro e prata!" No Outono de 1984, voltamos a Pequim com "elevado moral", aceitando ser criticados. O estra-nho era que na Universidade de Pequim reinava uma calma absoluta; quase ninguém se referia à minha de-sobediência às ordens e à "demora no exterior". Só que-riam que eu prestasse contas para entregar a percenta-gem estipulada das minhas receitas no exterior.

Os tempos tinham mudado realmente. Como um pássaro que acorda após ter dormido toda a noite, não me habituei à luz forte do sol que era a liberdade já obti-da. Mas, o pássaro não demorou muito a abrir suas asas. Nessa altura, estava a ser organizada a Universidade de Shenzhen, na Zona Económica Especial do mesmo no-me. O seu reitor, conhecido pela sua inteligência e pers-picácia, convidou-nos, a mim e ao meu marido, a empreender uma nova causa com ele. Convidou-me a assumir o cargo de directora da Faculdade de Língua e Literatura Chinesas e concordou com a minha proposta sobre o estabelecimento, na Universidade, do primeiro Instituto de Literatura Comparada da China. O meu marido, por seu turno, criou um Instituto da Cultura Na-cional, o primeiro após 1949. Tratava-se da primeira vez em que os intelectuais chineses podiam viajar livremente no seu país, de fazer o que queriam, sem temer os olhares dos outros nem encontrar obstáculos artificial-mente criados! Não nos demitimos dos nossos empregos na Universidade de Pequim, mas viajamos entre Guang-dong e Pequim: um semestre no Sul, outro no Norte. A Universidade de Shenzhen era um local novo, belo, cheio de vitalidade. Foi justamente com esta Universi-dade como base que as diversas associações de Litera-tura Comparada se reuniram em Shenzhen, na soleni-dade de fundação da Associação Nacional de Literatura Comparada, acompanhada de um simpósio internacional académico, assim como do primeiro curso de Literatura Comparada da China. Isso foi no Verão de 1985. O dis-curso inaugural foi proferido pelo professor Ji Xianlin, mundialmente famoso pelos seus estudos de cultura chi-nesa, ocidental e hindu e esteio da restauração da litera-tura comparada na China. Ele assumiu o cargo de Presidente Honorário da Associação e o professor Yan Zhoulan foi eleito o primeiro Presidente. Compareceram ao acto mais de uma centena de pessoas, procedentes de mais de 60 escolas do ensino superior e de editoras. Entre elas, contavam-se o Presidente da Associação Internacional de Literatura Comparada, o Secretário-Ge-ral da mesma entidade, o Presidente da Associação de Literatura Comparada dos Estados Unidos, além de ou-tros professores famosos das universidades de Duke, Princeton, Califórnia, Hong Kong e conhecidos investi-gadores nesta área. Os 130 alunos do curso estiveram presentes como observadores. Muitos destes jovens tornaram-se, depois, importantes estudiosos da Litera-tura Comparada. Além disso, este simpósio lançou as bases do estatuto internacional da Associação de Lite-ratura Comparada da China.

Nos cinco anos que se seguiram, a literatura comparada desenvolveu-se muito. Como disse o profes-sor Ji Xianlin, "A literatura comparada já se tornou numa disciplina. (...) Nos últimos anos, os círculos teóricos da literatura e arte do nosso País demonstraram forte inter-esse pela literatura comparada. Os jovens estudantes têm um amor especial pela literatura comparada." Em 1985, o Ministério da Educação aprovou oficialmente o estab-elecimento do Instituto de Literatura Comparada, na Universidade de Pequim, designando-me sua Pre-sidente. Trabalhando com todo o empenho, sinto um crescente ânimo. Dirigimos e organizamos a colecção de literatura comparada da Universidade de Shenzhen, composta por 12 volumes, e a colecção de literatura comparada da Universidade de Pequim, composta por 18 volumes. Está a ser editada uma série de 10 livros, pro-jecto nosso, sobre literatura chinesa, na França, Japão, Rússia, Coreia, Grã-Bretanha, Alemanha, etc. Já foi edi-tado o Manual de ensino de Literatura Comparada China-Ocidente. Até princípios de 1989, os livros sobre literatura comparada, editados na China, passavam já dos 360, e os ensaios relativos a esta matéria, publicados em várias revistas, atingiam mais de 3.200.

Nos anos posteriores ao meu retorno à pátria, o que vejo sobretudo são a reforma e a abertura; um ver-dadeiro brilho! Embora haja inflação e a vida continue difícil, não levo isso em conta, pois passei por sofrimen-tos muito maiores. Só penso em conseguir algum êxito no terreno académico, fazer todo o possível para pre-parar pessoal qualificado para a China. Prefiro manter-me longe da política. A experiência de cerca de quarenta anos levaram-me a compreender uma verdade: o talento e o tempo de um indivíduo são muito limitados. Sem condições e oportunidades, os receios e esforços, até mesmo o sacrifício da própria vida, não servem para na-da. Uma pessoa como eu, sentimental, vulnerável a pai-xões, inapta em estratégias e táticas, não deve envolver-se em política. Dedico-me inteiramente à leitura e ao ensino, sinto-me satisfeita num ambiente em que possa dedicar-me a estas duas vertentes. Considero que encon-trei o modo de vida que melhor corresponde às minhas condições. Deixe-se a política aos políticos; na sociedade moderna, cada um dos ramos da actividade humana necessita de pessoal especializado. Não nasci para a política.

Entre 1984 e 1989, eu lia e escrevia dia e noite. Havia perdido demasiado tempo, pois em quase vinte anos não tinha podido ler a sério. Limitava-me a pro-duzir tijolos, cultivar a terra ou carregar pedras. E agora, estava toda mergulhada nos livros. Por outro lado, sentia profundamente a falta de uma base sólida para as minhas investigações. Criei novas disciplinas na Universidade de Pequim, tais como Teoria da Literatura Comparada, Tendências Literárias e Artísticas do Ocidente e Análise do Romance Chinês do Século XX, Teoria Literária do Marxismo: Oriente e Ocidente, Poesia Comparada, etc. Todas estas disciplinas foram criadas pela primeira vez na Universidade de Pequim e os alunos nelas matricula-dos passaram dos 150. Eles vinham da Faculdade de Língua e Literatura Chinesas, da Faculdade de Língua e Literatura Inglesas, da Faculdade de Línguas e Literaturas Ocidentais, e de outras universidades. Mudamos de sala de aula várias vezes tantos eram os alunos. O entusiasmo exortava-me a preparar ainda me-lhor as lições, o que, por sua vez, aumentava os meus conhecimentos.

Em 1987 e 1988, sucessivamente, publiquei duas monografias: A Literatura Comparada e a Literatura Moderna da China (editora da Universidade de Pequim) e Teoria da Literatura Comparada (editora da Faculdade de Literatura e Arte de Hunan). Aquela encarna, em ter mos gerais, o processo do desenvolvimento do meu pen-samento e compreende três partes: a primeira parte rela-ta os meus conhecimentos da literatura comparada como uma disciplina académica; a segunda relata as relações entre a literatura chinesa e a literatura estrangeira; a ter-ceira parte pretende dar nova interpretação ao romance chinês à luz das tendências literárias e artísticas do Ocidente. Não deve ter muita coisa nova mas, na sua altura, foi um livro bastante útil. Meu professor, Ji Xianlin, diz no prefácio: "Trata-se de um livro muito útil, de alto nível e bastante oportuno. Du Fu disse numa poesia: 'Boa chuva conhece a estação, cai justamente na Primavera.' Gosto de comparar este livro a uma chuva oportuna que cai na Primavera." O meu mestre, profes-sor Wang Yao, destaca os vínculos desses meus êxitos iniciais no terreno académico com o meu temperamento pessoal. Diz: "Se se escolher o objectivo, o ponto de vista e a metodologia dos estudos segundo sua própria qualidade espiritual, estrutura de conhecimentos, men-talidade, vocação estética, poder-se-á desenvolver sufi-cientemente a inteligência e o talento, e obter êxito. O caminho empreendido pela camarada Yue Dai Yun, no estudo académico, está ligado evidentemente às suas qualidades, ao seu conhecimento e espírito pioneiro. Este caminho pode servir como inspiração, sobretudo no momento presente em que aparecem novas disciplinas e novas metodologias." A Teoria da Literatura Compa-rada aborda géneros literários, poesia comparada, con-formidade interdisciplinar, tendências literárias e artísti-cas do Ocidente, literatura moderna chinesa e outros ramos. Este livro continua a ser adoptado por muitas uni-versidades para o estudo inicial da Literatura Compa-rada. Nesse período, eu era frequentemente convidada para participar em reuniões ou conferências, no exterior. Em 1990, a Universidade de Macmaster, no Canadá, conferiu-me o título de doutor honoris causa em Lite-ratura. Segundo julgo saber, trata-se da primeira vez que se concedeu esta honra a um erudito chinês; aliás, a uma erudita chinesa.

Temos envidado esforços para levar os eruditos chineses a participar nas actividades da Associação Internacional de Literatura Comparada. Na XI Confe-rência Anual da referida Associação, realizada em 1985, o Presidente da Associação Chinesa, professor Yan Zhoulan, foi eleito Vice-Presidente da Associação Internacional. Com o seu desaparecimento, em 1989, fui designada para o substituir no cargo. Na Conferência Anual de Tóquio, em 1991, fui eleita, oficialmente, Vice-Presidente da Associação. Em 1994, fui reeleita. As mi-nhas comunicações apresentadas nas conferências anuais, durante estes dez anos, tais como Dois debates na Europa e na China — György Lukács e Bertolt Brecht, Hu Feng e Zhou Yan (Munique), Metáforas do espelho na China e no Ocidente (Tóquio), Teoria do significado da palavra no ambiente linguístico mundial (Canadá), etc., despertaram grande interesse. Nestes anos, a Associação Chinesa de Literatura Comparada também conseguiu considerável desenvolvimento, contando agora com 862 membros. Foram fundadas sucursais em 16 províncias e municípios. A Associação Chinesa tem agora 12 sociedades de estudo especializado a ela subor-dinadas: de Literatura Comparada Sino-Francesa, de Cinematografia Chinesa e Estrangeira, do Pós-Moder-nismo, de Literatura Biográfica Chinesa e Estrangeira, de Literatura Feminina Chinesa e Estrangeira, de Litera-tura Comparada das Minorias Nacionais, de Tradução... E a nossa Associação Chinesa de Literatura Comparada mantém estreitas relações com as suas congéneres dos Estados Unidos, da França e da Grã-Bretanha.

A Literatura Comparada da China já se tornou, realmente, numa importante força nas fileiras da lite-ratura comparada do mundo. Nas conferências de Munique, Índia, Estados Unidos, Brasil, Veneza, Tóquio e Tunísia, fizemos ouvir a voz da China-Oriente. Em Agosto de 1994, mais de 60 eruditos chineses tiveram seus ensaios qualificados e foram convidados para a XIV Conferência Anual da Associação Internacional de Literatura Comparada, realizada no Canadá. Ao discur-sar no plenário da Conferência, perante mais de 600 pes-soas, sentia-me, por um lado, profundamente orgulhosa pela Pátria e pela sua brilhante cultura. Por outro, com-preendia perfeitamente que ainda não estava à altura dos meus antecessores, como Zhu Guangqian, Qian Zhong-shu, Ji Xianlin e outros verdadeiros eruditos da literatu-ra comparada, profundos conhecedores dos autores mo-dernos e clássicos, tanto chineses como estrangeiros, além de escreverem e falarem várias línguas. A nossa geração perdeu mais de dez anos nas agitações políticas e não foi fácil recuperá-los. Mas eu não estava pes-simista; estava, sim, plenamente confiante na nova ge ração que estava a surgir como uma vigorosa força que nos superaria rapidamente para subir ao palco da história mundial.

Para mim, a cena mais inesquecível passou-se na Conferência realizada no Canadá, quando o represen-tante da Associação de Literatura Comparada formulou, no plenário, o pedido da realização da XVI Conferência Anual, do ano 2000, em Pequim. O jovem professor ca-tedrático Meng Hua, no seu francês fluente, expôs as condições e os motivos do pedido e antecipou as calo-rosas boas-vindas a todos os presentes; num inglês per-feito, o professor Wang Ning, ainda mais jovem, relatou os nossos preparativos concretos, e prometeu que envi-daríamos todos os esforços para arranjar fundos, de forma a que um maior número de eruditos do terceiro mundo pudesse comparecer à Conferência. As palavras de ambos arrancaram bastante aplausos. Segundo a re-solução da Conferência, a reunião da Associação Inter-nacional de Literatura Comparada terá lugar em Pequim, no ano de 1995, e verificará das condições do pedido de Pequim para a realização da Conferência de 2000. Ao mesmo tempo, a Associação Chinesa de Literatura Com-parada e o Instituto de Literatura Comparada e de Cultu-ra Comparada, ambos da Universidade de Pequim, pro-moverão um simpósio internacional sobre o diálogo e os desentendimentos culturais. A possibilidade da realiza-ção da XVI Conferência Anual de 2000 ser em Pequim dependerá da nossa vitória sobre Veneza, Sidney, Brasil e África do Sul, que também formularam o mesmo pedi-do. Isto será decidido na XV Conferência Anual a rea-lizar em 1997, na Holanda. Estamos confiantes na nossa vitória. As ondas do rio Yantzé empurram-se umas às outras. A causa do Século XXI e do futuro pertence aos jovens. Desejo sinceramente que a nova geração progri-da rapidamente, superando a nossa geração em todos os sentidos.

Sessenta anos passaram, não sou jovem. Olhando para trás, não sinto remorsos nem arrependimento. Co-meti erros, fiz disparates, mas sempre amei a vida, nunca fiz nada por maldade, sempre envidei os maiores dos esforços em tudo que podia fazer. Se pudesse ter mais uma vida, tomaria as mesmas decisões em todos os seus tempos-chave.

Traduzido do original chinês por Yu Huijuan.

* Professora catedrática da Universidade de Pequim; pro-fessora conselheira do Instituto de Línguas Estrangeiras de Xangai; professora em acumulação das Faculdades Pedagó-gicas do Nordeste e de Tiansin; professora em acumulação da Universidade de Macmaster, Canadá. Directora da Faculdade de Línguas e Literaturas da Universidade de Shenzhen. Presidente da Associação Chinesa de Literatura Comparada; presidente e vice-presidente do Instituto Chinês e da Associação Interna-cional de Literatura Comparada, respectivamente; membro dos Conselhos da Sociedade de Literatura Estrangeira da China e da Associação de Escritores de Pequim.

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