Ficção

O VENENO

Fernanda Dias

São sete e meia, é noite cerrada. O céu é de um negro profundo e no entanto, ontem, quando cheguei, todas as estrelas brilhavam, enormes e frias como gemas.

O vento faz gemer os altos coqueiros e crepitar os telhados de palma; e com os lamentos ininterruptos do mar, os guinchos dos macacos domésticos prisio-neiros, o apelo lancinante e periódico de um pássaro desconhecido, o coro dos grilos, cigarras, rãs e sapos, o sono, que tarda a chegar, é inquieto e breve.

Ontem sonhei contigo, sonhos de rompimento e adeus, acordava e não sabia onde estava, a realidade mais estranha que o sonho: ícones nas paredes de madeira, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Sagrado Coração de Jesus, um rosário enorme. O mosquiteiro, caindo do tecto como uma tenda de gaze púrpura, empresta às coisas uma luz tamisada e rósea.

Esta manhã dediquei algum tempo a ver as coisas sobre a mesa: um candeeiro a petróleo de vidro cor de rosa; um romance de Agata Cristie, "Vallon", e o livro do herói nacional, "Noli Me Tangere", com a capa gasta e sebenta; uma revista de arquitectura, um baralho de cartas com ilustrações pornográficas, um terço azul numa caixinha de plástico transparente. Objectos sem avesso, avatares de uma realidade sem símbolos. Coisas umas pertences dos donos da casa, outras abandonadas pelos veraneantes. Tudo tão intrigante e quase hostil. Sobre o plástico com padrão de grandes frutos verde-azulados, com um halo amarelo de impressão distorci-da. Se estivesses aqui me atormentariam como agui-lhões, porque em vão tentaria vê-los como os verias.

Por uma noite vivi aqui e acordei às seis da manhã com o cantar estridente dos galos, choro de cri-anças, vigorosas vassouradas nos caminhos de terra batida, ladrar de cães, palrar dos papagaios nas gaiolas do pequeno restaurante ao cimo da estreita escada empedrada de calhaus rolados. Acordei e senti-me como se definitivamente antes e depois, este sempre tivesse sido o meu quarto, debaixo do tecto de palma de uma palafita, na encosta escarpada sobre o mar, em pleno coqueiral. E esta estranheza que me faz olhar em volta cada coisa, e o precioso bordado do conjunto de todas, se devesse não a ter chegado apenas ontem, mas a uma doença crónica do olhar.

Mar azul, digo comigo mesma. Férias, mar azul, areias brancas, corais e conchas, coqueiros. Montanhas verdes na neblina, barcos esguios cortando as águas, ve-lhas canções do pacífico. Mas com os olhos de vidro fosco vejo tudo baço. Sei que me esperas e ensaias ao espelho as palavras com que me intimarás, da despedi-da tumultuosa só eu ouvirei os ecos no pátio do Peak Garden. A solidão é um mal menor. Se estivesses aqui tudo se transfiguraria. Nem sei como veria o que agora tão simplesmente vejo.

Entrei no quarto ao lado, que julguei desocupa-do. Surpreendeu-me a limpeza rigorosa e um perfume sem nome, quase imperceptível. Entre as duas janelas com cortinas de cassa, um roupeiro de madeira entalha-da com os seus dois espelhos, um longo e estreito, o outro redondo, à altura do rosto, engrinaldado de rosas ingénuas. Na mesa sem plástico, o eterno candeeiro a petróleo. O mosquiteiro branco atado num grande nó, acima da cama. Sobre a colcha branca duas almofadas tecidas com uma barra em ponto de borboto formando um nome cor de mosto sobre o algodão cru: Aida. Numa corda, de trave a trave, no canto onde o tecto se inclina, alguns cabides com roupas. Olho-as sem lhes tocar, co-mo num museu. Umas calças de ganga, estreitas, lon-gas, desbotadas. Uma blusa branca sem outros enfeites que uma fila de botões e algumas nervuras. Uma camisola cor de terra. Um vestido de gorgorão ocre, sem bolsos nem botões, caindo recto. Tudo tão estrito e claramente funcional, penso quase descrente. Mas assim é. Quem aqui vive, ou quem aqui temporaria-mente esteve tem por força o gosto das coisas nítidas e austeras. E a forma e medidas destas roupas claramente in-dicam que um corpo esguio e ágil as habitou.

No calor de frutos maduros, num paraíso cheio de mosquitos e chilreios, alguém vive uma perfeição in-tolerável. Olho tudo em redor, olho muito bem de novo, procuro uma feia mancha naquela claridade, nem sei bem o quê. Um pente com cabelos? Um colar de pechis-beque? Qualquer pequena coisa mesquinha, feminina, que triunfalmente quebrasse aquela harmonia. Mas não vejo nada a não ser estritas coisas imprescindíveis, num halo de rigorosa higiene, duma desafectada, displiscente vida.

Então, lentamente, como quem enverga um c-asaco de chumbo, tomo consciência do meu corpo, enquanto imagino aquela rapariga, que não pode ser senão bela. Pele clara e sã, olhos cor de chá, cabelos cor de violoncelo. O gesto pausado, o sorriso raro e sereno. E uma misteriosa e contida vida para sempre longe doalcance do delírio da minha imaginação.

Uma raiva surda, um pavor visceral me turva a visão. Ajoelho no tapete de retalhos. Como num sonho ouço a tua voz velada pelo desejo de outra. A música do terror ressoa insensatamente aos meus ouvidos, arras-tando farrapos de humilhações passadas. Sei, com uma sabedoria velha de muitos anos, que vou sofrer sem remissão. Dores reais e outras com requinte cruel imagi-nadas. Com um travo amargo na boca, abro a gaveta que range com a inocência dos contos antigos. Só vejo roupa interior branca, sem rendas nem fitas. Fecho a gaveta, atónita de ter podido espreitar aquela intimi-dade. Ao levantar-me o quarto deslisa debaixo dos meus pés, gira à minha volta, a vinheta muda de plano, tudo recém-desenhado por Marreiros, lá fora o coqueiral, o mar azul, um barco na areia chamado "Red Coral".

Volto lentamente para o meu quarto, pego no envelope já endereçado, Rua Nova à Guia, Edif. Peak Garden, Bloco III, 2 B, Macau, rasgo três folhas de letra espalhada, quase ilegível, rasgo o envelope também, remetente Sabang, Puerto Galera. Eu sei que virias, se recebesses esta carta. Imagino-te ao por-do-sol, sen-tado no varandim, bebendo Coca-Cola, ouvindo a tua mú-sica. As pacíficas osgas gordas caçando mosquitos em volta da lanterna. Os mangos e as jacas na fruteira exalando o forte odor nocturno. Um bando de meninas pulando como passarinhos em cima do "Red Coral". Então aquela indefinível rapariga passaria como uma brisa, a caminho da praia. A rapariga que nunca vi. Passaria polida e brilhante como um búzio. Sem pala-vras e sem passado. A noite aveludada do pacífico abrindo no escuro corolas doces como armadilhas. E eu morrendo de novo a morte ignominiosa do ciúme. Mais do que ser traída dói a invenção da traição. Rasguei a carta com lenta determinação. Com ferocidade conside-rei a solidão das brancas noites a haver. Porque não te direi que venhas. Porque o que me intriga te atrairia. Um surdo tambor maligno ressoaria no palmeiral. De pé, atrás de ti, com a mão no teu ombro e a respiração nos teus cabelos, dentro de mim o turvo amor viraria lentamente veneno.

PEQUENOS JUGOS

Fernanda Dias

Gravura

desde a p. 193
até a p.