Atrium

EDITORIAL

Luís Sá Cunha

No Ano Internacional da Mulher, RC dedicou-lhe esta sua edição exclusivamente. Nada mais oportuno e interessante. Fenómeno universal, a assim chamada emancipação feminina convulsionou o Século mais do que todas as guerras e, do Ocidente, confrontou-se no Oriente em transes de maior dramatismo. Era mais fundo, antitético e irredutível o conflito entre a modernidade de valores promanados sobretudo da 1ḁ revolução indus-trial e o quadro tradicional quase intacto de uma ética socio-antropológica própria das grandes civilizações agrárias subsistentes a Oriente. Nas suas múltiplas e inesgotáveis situações de pungente dramatismo, aqui reside o manancial inspirador da riquíssima produção ficcionista e cinematográfica chinesas deste Século, em crescen-do de afirmação desde o 4 de Maio de 1919 e de Lu Xün até Jung Chan e Zhang Yimou, com centenas de mu-lheres a emergirem no universo literário da novelística e do romance, a arguirem a sua sensibilidade na defesa de novo estatuto para a Mulher na sociedade.

Colecção de textos díspares, neste número dedicado à Mulher perpassam e esboçam-se estatutos, vozes e per-fis de mulheres neste Oriente, onde subjaz a especificidade da aventura e da condição feminina nestas paragens, do passado mais longínquo aos tempos actuais.

Número onde o discurso dos textos é acompanhado em paralelo pelo discurso das imagens, na interpretação do "Feminino" que foi solicitada à inspiração dos vários artistas especialmente convidados. Na China, do rígido estatuto confucionista que à mulher destinava a eterna condição ancilar dentro da família patriarcal, — "uma mulher não vale cem patos" — evoluiu-se para a parificação: "a mulher vale metade do Céu". É impossível, aqui, não evocar comovidamente a saga humana de tantas gerações de mulheres que se acolhe-ram no cenário da Cidade do Nome de Deus, ao perpassar pesado dos séculos.

Da África, da Índia, da Malásia, do Arquipélago Indonésio, do Japão, da China, desamparadas da estrutura familiar, passíveis de todos os riscos e desenganos, afrontando o perigo dos naufrágios, das guerras, das mín-guas devastadoras, passando do abandono nas rodas misericordiosas às vicissitudes da prostituição, essas suces--sivas gerações de mulheres macaenses foram protagonistas de pura heroicidade, na constância da fidelidade e do serviço. E uma das maiores manifestações colectivas da adaptabilidade na História, na permanente aco-modação a costumes, hábitos, rituais sociais, padrões morais e religiosos, onde foram criativamente o grande factor de hibridismos que haveriam de caracterizar a socio-cultura identitária de Macau.

Valha, ao menos, este pequeno volume de testemunhos, pela homenagem que justamente lhes devemos.

Nas antigas tradições de quase todo os povos, foi o princípio feminino assimilado ao princípio de revolta, de sedução ou de "queda", imediatamente ao elemento "demoníaco". Na Cabala, a degeneração demoníaca procede do elemento feminino da Díade (o número dois, o que divide = diabolos); no Génesis, a desgraça da "queda" deriva do princípio feminino; no tauismo, do princípio Yin; na tradição egípcia, associa-se à alva Ísis o seu lado obscuro, astucioso e subvertor, como o da bíblica Eva.

Aos vários modos do universal "mito da queda", sob as suas múltiplas declinações e representações, subjaz a ideia de uma subsumissão ou submissão do princípio masculino (ou da unidade) ao princípio feminino (da ma- nifestação ou "cósmico"), originando o perigo das promanações ilimitadas ou caóticas. Na união com a physis, o nous viveria no risco eminente de ser absorvido pela obscuridade, a liquefacção narcísica.

Daí a norma premonitória inscrita em relevo na tradição islâmica como na ocidental: "castiga a mulher".

A nosso ver, foi o entendimento literal, medíocre e superficial que sucessivas gerações humanas tiveram das antiquíssimas mitologias e textos das principais religiões reveladas — o que veio a deflagar no justo castigo que as mulheres inflingiram aos homens no amadurecimento deste Século. Erro na consideração estática dos ele-mentos "masculino" e "feminino". Erro na transferência, do que deveria ser simbólico à percepção ontológica, para o plano moral. Erro na abdicação com que o homem alienou de si o princípio feminino, quando "castigar a mulher" ("castigar" é tornar casto) deveria representar a função sacrificial e operosa de domínio interior daqui-lo que convencionalmente se identificava ao "feminino" — princípio de revolta, de desordem, passividade, su-bordinação aos oceanos volúveis da emotividade ou obscuros do inconsciente.

Houve sempre, de qualquer forma e não é dos nossos dias, uma "guerra de sexos", onde o elemento feminino, demétrico ou afrodisíaco, surgiu como antagonista à superior realização ou iniciação espiritual do homem. Trata-se, porém, a nosso entender, de emergências de um conceito do foro íntimo e individual de certas sociedades iniciáticas, sem projecção possível para o "mundo profano"; e apenas entendíveis e solúveis no quadro geral de doutrinas que em última escatologia apontavam para a superação da "díade sexuada". Como, e a exemplo, na tradição crística, onde se concebia que Cristo nasceu e morreu homem, mas ressuscitou "nem homem nem mulher".

Amais recente evolução da emergência feminina na História, parece corresponder porém, a uma aparente ruptura numa tradição gerada em áureos veios da espiritualidade ocidental. A que vem das "Cortes de Amor" e esplende na "Comédia" do Dante, onde a Mulher (pura encarnação sófica) permite ao Homem a ascen-são do Inferno ao Paraíso. A que se continua, com menos luz, no "II Fausto" de Goethe — a Mulher como "Eterno Feminino", sublimação de cupidez ou desejo humano em vias para a transcendência. A que se continua em Berdiaeff, profeta do papel salvífico da Mulher nas sociedades futuras, não a Mulher tornada semelhante ao homem por desfocagem na corrida da emancipação, mas a que viria reactualizar o "Eterno Feminino". A que passa por Teilhard de Chardin, prevendo no "Amor Cósmico" a fusão do instinto natural com as aspirações à transcendência. A que, por tudo isto talvez, provocou a Aragon o ditado: "A Mulher é o futuro do Homem".

Na pura linha desta tradição ocidental, por que não admitir os tempos próximos em que a Mulher, mais íntima dos segredos da Natureza, ascendendo a graus supernos de consciência cósmica, não venha Ela realizar nos tem-pos a profecia do Florentino, ser a psicopompa dos homens perdidos na noite cada vez mais cerrada, para cuja saída Heidegger só vislumbrava um milagre?

O Director da RC

Luís Sá Cunha

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