Ficção

MULHER À VARANDA SOBRE O RIO

Fernanda Dias

Na cama, quando fechou os olhos, viu a noite das pálpebras coalhada de estrelas moventes. Não sabia de onde vinham esses astros trémulos, se do cansaço de uma longa e muda solidão, se das tensas palavras estran-guladas no silêncio apático dos dias. Há quanto tempo já não falava nem escrevia. Esticou o corpo nos lençois macios e frescos, trazidos da velha Europa, fiados por mãos desde há muito quietas. Apesar da solidão sentiu o corpo vivo e esguio, no próprio calor encasulado.

Caiu no sono fácil dos que têm o fluir do tempo como aliado. Acordou a meio da noite, levantou-se entorpecida, logo de súbito assaltada por um odor denso, viscoso e maléfico. Encaminhou-se para a casa de banho, a fim de se certificar que sim senhor, vinha da casa de banho, das profundezas dos canos verticais de três andares, vezes quatro moradias por andar, o cheiro inusitado.

Afinal o mostrador da caixa preta do vídeo mar-cava quatro da madrugada. Já um rectângulo de seda pá-lida emergia do rio, subia até à varanda, se colava na larga vidraça, recortando como uma pintura o tufo alto de bambus, a cameleira, os jasmins enfezados.

Não vinha da casa de banho o cheiro pútrido. Parou no meio da sala, a camisa amarfanhada, o cabelo em desalinho, eflúvios de sono tornando-a indefesa e estúpida. Lembrou-se de gravuras antigas, longe, no tempo da infância, pertença de uma tia avó que vivera reclusa em Santa Clara. Lembrou-se das leituras preco-ces nos velhos livros pios, desencantados na poeira e penumbra dos sótãos. Estava estava escrito. Súcubos e íncubos invadiam por vezes, em noites nefastas, os quar-tos de mulheres sós adormecidas. Cheiros pestilenciais de origem incerta denunciavam sempre demónios ocul-tos.

Sacudiu os cabelos e abriu a janela toda, rindo de súbito das crenças mortas que a memória alberga, sem que as acreditemos. Era então isso. Um vento sujo, insi-dioso e baixo, fazia dançar o lixo eterno nas esquinas.. Nas gaiolas de mil varandas os pássaros piavam, como que abafados. Apesar de um Maio avançado, não se vis-lumbrava nem um tímido botão nos ramos das acácias rubras. Vinha crescendo, morno e lento, mais um dia.

Decidiu voltar para a cama. Até às sete ainda tinha quase três horas de sono. Viu-se de soslaio no espelho do quarto. Espelho mágico, este, comprado por cem patacas nos tim-tins, no dealbar do ano do Coelho. Lá estava aquela desconhecida, emoldurada numa gri-nalda ingénua de peónias entalhadas. No espelho da casa de banho, via-se apenas como era: pele baça e rugas precoces. Olhos sumidos pelo olhar-para-dentro, pelo tédio ritualizado. Porém no espelho das peónias os olhos brilhavam como as areias de outras paragens, e tudo naquela imagem lhe trazia à memória as praias, as dunas, os dois infinitos azuis da água e do céu por vezes cortados por asas drásticas e límpidas. Tudo estridente como clarins, por mor daquela impetuosidade divina que se transmudou em beleza lá para os confins do mundo mediterrânico. Onde eu nasci, pensou com nos-talgia voltando para a janela. Olhou longamente as mon-tanhas da China, do lado de lá do Rio das Pérolas. A geometria dos telhados pardos ainda apaziguadora. A renda verde verde fráfil das árvores nalguns raros quin-tais, tudo rasgado pela massa vertical, opressiva dos pré-dios altos, novíssimos, crescendo sempre, como uma esperança que se tivesse transmudado condenação. Amava dolorosamente esta cidade involuntária, feita de camadas de gente diferente. Nascida na fímbria de duas civilizações antagónicas? Bacco e Confúcio? Cristo e Lao-Tsé? Que se lixe a antropohistória, pensou a mu-lher agoniada. À sua volta cresciam os aranha céus de bambu e milhares de pássaros cativos acordavam, gri-tando, trinando ou pipilando, agitando as finas gaiolas ainda embuçadas nas capas brancas nocturnas.

Macau não acorda porque Macau não dorme nunca. Ela também, ultimamente dormia pouco, ansiava pelo amanhecer. Iria então para o trabalho, já ridente e cheirando a sabonete caro, por fora cumprindo os rituais serenos do dia-a-dia, por dentro com o coração tenso dos que vivem atentos ao ritmo secreto de uma ocultaclepsidra.

À tarde iria para a Academia, nova em edifício velho restaurado. Até que por sinal nem o talento do arquitecto versado em Fong-Soi, nem os panchões da inauguração lhe tinham podido esconjurar o fantasma familiar. Ali viveu outrora uma mulher, que ao morrer uma morte de amor traído, se vestiu de vermelho, a fim de assegurar muitos e muitos séculos de assombração. Nem o espelho hexagonal, nem o aquário com peixes doirados postos na entrada a conselho do bonzo, puder-am suster o discreto fluir das coisas estranhas: farrapos de canções do tempo de Ci Xi, perdas, vozes, desen-tendimentos, mansa loucura gradual das mulheres utentes da Casa.

Mas a mulher à varanda na madrugada, nada dis--so receava. Desde criança que se habituara à atmosfera das velhas casas, com as suas lendas e os seus fantasmas. Ali ia regularmente gravar nos cobres a febre controlada dos dias. Por ali cirandava, entre a caixa da resina e a câ-mara dos ácidos, entre o papel molhado e a hierática prensa inglesa. E os outros gravadores, atentos e silen-ciosos. E o professor permanente, melífluo e confuciano, mais confuciano que Confúcio. Fazendo por suas mãos aos submissos alunos principiantes as gravuras desti-nadas a concurso — numa renhida luta de prestígio com os professores de Hong-Kong. Que Confúcio dissera: a cordialidade é mais preciosa que a integridade. Que ele mesmo, escolhido pelos céus para providenciar que ja-mais a Oficina caísse nas mãos dos seus inimigos, não olhará a meios ainda que velados. E ela como uma irmã o devia apoiar em tudo com leal desvelo. E deixar-se de estúpidos escrúpulos morais, descabidos nesta parte do mundo. Teria ela deixado de confiar nele? Pois não lhe tinha sua mãe posto o nome de Valioso Augúrio?

E a mulher voltará a sentar-se no meio deles, e beberá o chá e comerá o arroz. E pato de Cantão e o peixe Wá-Wá. E o cabelo lhe escorrerá pelas costas, liso, e a pele se lhe matisará de marfim velho. E, grata, aprenderá o que se aprende quando se ama, com desati-nado amor, mas lúcido; desencantado, mas tenaz; não uma pessoa, não uma cidade, mas a própria circunstân-cia de existir, respirando, como um bicho ínfimo no meio da multidão. Na qual lenta e inexoravelmente se dilui e se perde o nome e a pessoa.

A manhã sobe, sem explendor nem frescura. A mulher está ainda divagando na varanda. Ah! mas aman-hã choverá vigorosamente e a chuva misericordiosa lava-rá a poeira negra, arrastará o lixo, devolverá o bril-ho e a solene glória às árvores-do-pagode. Ela irá então ao jar-dim Lou Lim Ieoc, e sentar-se-á no Pavilhão Vermelho, vendo os salgueiros aflorar o lago. E então, como nos romances das eras coloniais, há-de vir um homem com um livro, olhos de obsidiana e mãos de calígrafo. E sentar-se-á junto dela, com os finos dedos mostrará os caracteres, e num belo português de timbre antigo, dirá que no ano Cem antes de Cristo, Su Wu compôs este poema. Partia para a guerra com os Hunos, na orla do deserto de Gobi, e as palavras que então escreveu, estão vivas ainda, e flamejam como se hoje as dissera. Com o dedo nas páginas crestadas, e um meio sorriso que é tudo quanto se consentirá, penosamente traduzirá o poema, desculpando-se pela incomensurável inexactidão sua, na árdua busca das palavras mais próxi-mas do sentir, já que próximas da música nunca poderá ser. E lerá:

Desde o dia em que te desposei,

que nos amamos confiantes,

e esta noite ainda, a alegria virá

— saibamos acolhê-la.

Penso na longa estrada

com o olhar aprofundo a noite

— já sumiram Lucifer e Orion

e eu devo também partir.

Não se vislumbra o dia de regresso

por sobre o campo de batalha.

Longos suspiros, mãos que se comprimem,

pesadas lágrimas de adeus.

Guarda a tua juventude,

não esqueças nunca o prazer partilhado.

Vivo, saberei regressar;

Morto, estarei contigo eternamente.

Não, a mulher não está sentada no banco do Pavilhão Vermelho e não está nenhum jovem letrado lendo poemas da dinastia Han. É que a manhã rompeu encordoada de vento sujo, e esta mulher tem a imagi-nação delirante. Que importa isso, bem reais, pela porta do cerco já entram de golfada milhares de vendilhões com seus peixes, porcos, hortaliças, salmouras, galiná-cios e incontáveis rosas frescas, miudinhas, orvalhadas.

Sim, o apaziguamento vem quando percebemos que estamos vivos, transplantados mas vivos, e que esta sensação de ter debaixo dos pés o outro lado do mundo é a mãe de toda a exaltação e de toda a melancolia.

A mulher já desperta deixa a varanda sobre o rio e sai para o trabalho. Vai inocente, não nomeada, na multidão de crianças e pais a caminho da escola, de ve-lhos com gaiolas a caminho dos jardins, de praticantes de Tai-Chi, de floristas apelando docemente maifá, mai-fá, de lavadores de carros de espanadores em riste como D. Quixotes.

Ah! está tudo certo como sempre esteve. — Disse ela para o mendigo impassível que escreve a ocre no passeio os caracteres eternos.

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